Em Pedaço de Mim, Chico Buarque define a saudade como o revés de um parto. Pior do que o esquecimento, pior do que se entrevar. Nela, o compositor fala da mais devastadora de todas as formas de saudade: a do filho perdido. A minha é mais comum, já que diretamente ligada ao curso natural da vida, esse rio caudaloso que nos leva a lugar nenhum e mesmo assim fazemos questão de continuar navegando nele. É como se sentir manco, talvez. A consciência ininterrupta de que está faltando algo. Em vários momentos da minha vida eu me vi às voltas com essa forma de desamparo. Uma sensação muitas vezes imperceptível, mas que se tornou palpável a partir de 2003, quando meu pai morreu. Mesmo tendo passado dos 40 anos, ainda me defronto com um vácuo infantil, algo até certo ponto habitual entre os que perdem as pessoas que amam. Afinal, não existe limite máximo de idade para o sentimento de perda, muito menos o de orfandade. Somerset Maugham, de quem estou lendo as Confissões, conviveu por oito décadas com esse sentimento, e quando morreu, aos 91 anos, tinha ao seu lado a foto da mãe, que perdera aos oito.
Meu pai era um lastro, uma âncora, embora não num sentido clássico. Foi ele quem me direcionou, ainda jovem, para os prazeres da leitura e do cinema. Lembro bem do dia em que me falou de A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Eu devia ter uns 11 anos, e estávamos subindo a escada para chegar ao nosso apartamento. Aquele nome (que de imediato associei a uma fantasia de Julio Verne ou coisa do tipo) ficou encerrado como um pequeno tesouro que eu deveria descobrir mais tarde – ele apenas me deu o mapa. Não sei nem se meu pai leu esse livro, é possível que não. Mas ele estava ali para citá-lo, para me mostrar que a grande literatura não era feita, digamos, de um Harold Robbins. Também me ensinou a gostar dos filmes de Paul Newman, a amar o Flamengo e, mais tarde, a perceber que o vinho era muito mais do que uma bebida, e sim um amigo engarrafado, como diria Vinicius.
Acho que uma parte de mim ainda não se deu conta da perda de meu pai. É como se o inconsciente cobrasse a sua presença no meu cotidiano. Talvez por isso, sonhe com ele com alguma freqüência. Da última vez, foi um sonho ruim: recebia a notícia de que ele tinha se jogado de um avião em pleno vôo. Acordei com um gosto amargo e um certo alívio. Outros foram mais agradáveis. Num deles, jogávamos bola numa praia à noite. Uma praia estranha, precariamente iluminada por postes na rua, que ficava num porto ou algo parecido, com a água muito parada, a faixa de areia estreita e um muro na parte de cima. Eu era ainda criança, e minha mãe esperava sentada nos observando. Já o capítulo que deu origem à série provocou em mim sentimentos ambíguos: descia a escada que levava ao village de veraneio que nós tínhamos e minha mãe me recebeu dizendo: “Olha quem está aqui”. Então olhei para o lado e vi meu pai sentado numa cadeira. Ele me olhou e tentou falar, mas sua boca não se abria, e seus olhos deixaram entrever uma angústia enorme.
Nossa relação, quase sempre sem sobressaltos, foi marcada mais por silêncios que por colóquios. Passávamos horas um ao lado do outro trocando pouco mais do que meia dúzia de palavras, bebendo e observando a noite. Seu silêncio escondia um ensimesmamento, uma busca de tranqüilidade através da introspecção que acabei herdando. Enfim, era um silêncio que me acalentava, como um sopro numa ferida. Gostaria de ter dito tudo isso a meu pai, mas o meu próprio silêncio também era abissal. Uma vez, quando ele já estava doente, demos um passeio pela Cidade Baixa e paramos no Bonfim. Minha mãe entrou na igreja com minha mulher e minha filha e nós ficamos lá fora, encostados na balaustrada observando a vista. Sabia que não o teria por muito mais tempo, e pensei em dizer alguma coisa. Mas não consegui e ficamos conversando amenidades. Poupamos no essencial, como no poema de Brecht. A forma de me redimir é escrever textos como este, entre muitos outros que já escrevi sobre ele. Afinal, como disse o dramaturgo Mario Viana, nossa eternidade tem a duração da memória de quem nos ama.