Eu hoje acordei meio deprimido sem saber exatamente o motivo, como acontece de vez em quando. Algo se processa em minha mente enquanto durmo e de manhã percebo o estrago. Então lembrei que, pouco antes de dormir, tinha lido a notícia de que a garotinha de cinco anos estuprada e torturada na Índia havia morrido no hospital. Aquilo doeu de uma forma estranha, como se houvesse uma implosão em algum ponto do meu corpo. Devo ter dormido com esse fato provocando pequenas incisões nos meus sentimentos, e acordei com uma desesperança, um desalento e uma constatação óbvia: o mundo é um monstro.
Na semana passada, sonhei que vi da
varanda do meu apartamento uma briga de trânsito que culminou numa execução.
Foi um pesadelo muito real: dois carros (curiosamente de modelos antigos)
fechando-se mutuamente, os xingamentos e por fim um dos carros invadindo a
calçada, um dos sujeitos saindo do carro e descarregando o revólver no outro.
Lembro com nitidez do corpo já inerte, encostado num muro, enquanto as balas
ainda iam em sua direção. Lembro de ter pensado em ligar para a polícia, mas permaneci
paralisado pelo pavor. Então acordei, o corpo tremendo, suando, como se acabasse
de presenciar um assassinato de verdade.
Para mim ficou claro: minha mente
processava naquele momento o estado de torpor, medo e impotência em que
vivemos. Um estado latente, que se exacerbou em sonho, mas que nos deixa em
permanente alerta quando estamos acordados. Temos motivos para isso,
como os animais da savana que ficam o tempo todo de olhos, nariz e ouvidos
atentos a qualquer balançar de arbusto ou arrastar de patas no solo. Somos como
zebras, tentando proteger a nós mesmos e a nossas crias do ataque iminente, da
banalidade do mal. Curioso como é oportuna nos dias atuais essa expressão criada
por Hannah Arendt para explicar o que sentiu durante o julgamento do nazista
Adolf Eichmann. De acordo com Hannah, os
atos de Eichmann não eram desculpáveis, muito menos ele era inocente. Mas não
foram atos executados por um ser dotado de imensa capacidade de crueldade, e
sim por um funcionário burocrata dentro de um sistema baseado em atos de
extermínio. Um sujeito
banal, em suma.
O que percebo hoje é que o mal –
sistemático, gélido e praticado em escala industrial – serve não a um regime,
mas a toda uma civilização. Padecemos de uma enfermidade moral, que ora se
expressa no estupro absurdo de uma criança, ora num assalto que termina com a
vítima incendiada sem qualquer possibilidade de defesa. Ou também em uma bomba
dentro de uma panela de pressão, detonada por rapazes com feições angelicais e,
num estágio acima, em um avião não-tripulado que despeja bombas e transforma
famílias em escombros. É como se todos os princípios morais e humanistas
sedimentados durante séculos tivessem evaporado. O tudo é permitido de que
falava Dostoievski finalmente chegou. Vivemos em um mundo pré-iluminista,
pré-renascentista. Um mundo à beira da pré-história.
Pergunto a
mim mesmo como o ato tão extremo e tão profundo de matar pode ser cometido com
tamanha regularidade e das formas mais prosaicas. Que mecanismo se processa em
nós e nos transforma em assassinos? Não busco aqui explicações sociológicas, já
que a profunda desigualdade social de países como Índia e Brasil é diretamente
responsável pela violência urbana, mas não necessariamente por atos gratuitos
de crueldade. Gostaria de compreender como é gestado um assassino potencial,
até para não me sentir tão vulnerável diante de um, dos tantos que habitam o país
onde vivo. Mas a chave está mesmo com Hannah Arendt: o mal é banal, e não comporta
compaixão, piedade ou remorso.