quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Acasalamento




Quando nos embrenhamos em um novo livro, estamos de certa maneira nos envolvendo em um ato de sedução – que pode se consumar ou ficar pelo caminho. É como um ritual de acasalamento. Pode ser quase instantâneo, como o sexo entre coelhos, ou um processo lento e particularmente tortuoso, como os que praticam algumas espécies de répteis e insetos. Essa analogia sem pé nem cabeça me veio à mente na noite de ontem, quando enfim a autobiografia de Ingmar Bergman, Lanterna Mágica, conseguiu me seduzir. Até isso acontecer, precisei enfrentar umas quarenta e tantas páginas sem conseguir me concentrar ou me envolver, abstraindo ou inventando desculpas para pôr o livro de volta à mesa de cabeceira.

Esse talvez seja o grande prazer da literatura: nos envolver paulatinamente até o momento em que nos deparamos com o delírio silencioso. Ao atingirmos esse estágio, não há mais páginas à nossa frente, mas sim um muro no qual são projetadas nossas angústias, convicções e idiossincrasias. Ali elas ricocheteiam, ficando mais fortes ou virando pó. No meu caso, algumas seduções foram imediatas. Lembro que aos 15 anos me deixei levar feito uma moça sonhadora do interior após ler a frase: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía se lembraria do dia em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Quem já leu, vai identificar de imediato o início de Cem Anos de Solidão. Há bem menos tempo, ocorreu algo parecido: sentei na cadeira do meu gabinete, abri um livro espesso de capa verde, pego displicentemente na estante, e quase não consegui parar para dormir e trabalhar no outro dia. O livro era Conversa na Catedral.

Outras obras demandam tempo e profunda dedicação. Mas, quando então o acasalamento se consuma, dão em troca uma paixão avassaladora. Grande Sertão: Veredas é assim. Nele, não lemos um livro, desbravamos um universo. Há ainda aquelas que, como mulheres complicadas ou vinhos raros, exigem um mínimo de maturidade para ser apreciadas. Precisei me aproximar dos 30 anos para enfim compreender O Sol Também se Levanta e Suave é a Noite. Já outras, mesmo quando ostentam nomes célebres na capa, como um atestado antecipado de prazer, acabam ficando pelo caminho. Recordo agora de três: Auto-da-Fé, O Legado de Humboldt e Retrato do Artista Quando Jovem. Foram como um tipo de amor que não pode dar certo na luz da manhã: modorrentos, longos, incapazes de envolvimento fugaz ou duradouro. Permanecem na estante violados pela metade.

Quem lê o que escrevo neste blog já conhece as minhas obsessões, os ídolos que cultivo como flores de inverno, os romances que alicerçaram a minha formação. Eles fazem parte de quem eu sou, do afeto que devoto a esses volumes de papel, muitos deles amarelados e envoltos em poeira e nostalgia. A cada mês chegam novos títulos, e tento dar conta de conhecê-los e me reabastecer de fascínio. De vez em quando, algo que li em uma revista ou jornal detona o desejo de ler algo que permanece na estante há muito tempo e nunca ganhou oportunidade. Ou mesmo de reler o que um dia me marcou. Sei também que outros continuarão sem chance, atolados pelo excesso de páginas e pela escassez das horas. Prossigo assim, em busca do tempo perdido, como os volumes de Proust que venho comprando aos poucos para um dia, quem sabe, me deixar levar por minha própria madeleine.   

terça-feira, 10 de setembro de 2013

No dia de hoje dez anos atrás


No dia de hoje dez anos atrás
sindicalistas gritavam nos megafones
ali em frente, no prédio dos Correios.
A realidade nos alcançava, nos invadia.
No dia de hoje dez anos atrás
havia em casa uma celebração invertida
uma algazarra de silêncios.
Eu gritava para dentro, chorava pelo avesso.
Me extinguia também, um pouco.
No dia de hoje dez anos atrás
o vácuo tornava-se rotina, como
um tronco oco, um hiato perene.
Uma queda contínua, sem chão,
esboço do meu próprio fim.