Quando nos
embrenhamos em um novo livro, estamos de certa maneira nos envolvendo em um ato
de sedução – que pode se consumar ou ficar pelo caminho. É como um ritual de
acasalamento. Pode ser quase instantâneo, como o sexo entre coelhos, ou um
processo lento e particularmente tortuoso, como os que praticam algumas
espécies de répteis e insetos. Essa analogia sem pé nem cabeça me veio à mente
na noite de ontem, quando enfim a autobiografia de Ingmar Bergman, Lanterna
Mágica, conseguiu me seduzir. Até isso acontecer, precisei enfrentar umas quarenta
e tantas páginas sem conseguir me concentrar ou me envolver, abstraindo ou
inventando desculpas para pôr o livro de volta à mesa de cabeceira.
Esse talvez
seja o grande prazer da literatura: nos envolver paulatinamente até o momento
em que nos deparamos com o delírio silencioso. Ao atingirmos esse estágio, não
há mais páginas à nossa frente, mas sim um muro no qual são projetadas nossas
angústias, convicções e idiossincrasias. Ali elas ricocheteiam, ficando mais
fortes ou virando pó. No meu caso, algumas seduções foram imediatas. Lembro que
aos 15 anos me deixei levar feito uma moça sonhadora do interior após ler a
frase: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel
Aureliano Buendía se lembraria do dia em que seu pai o levou para conhecer o
gelo”. Quem já leu, vai identificar de imediato o início de Cem Anos de
Solidão. Há bem menos tempo, ocorreu algo parecido: sentei na cadeira do meu
gabinete, abri um livro espesso de capa verde, pego displicentemente na estante,
e quase não consegui parar para dormir e trabalhar no outro dia. O livro era
Conversa na Catedral.
Outras obras
demandam tempo e profunda dedicação. Mas, quando então o acasalamento se
consuma, dão em troca uma paixão avassaladora. Grande Sertão: Veredas é assim.
Nele, não lemos um livro, desbravamos um universo. Há ainda aquelas que, como
mulheres complicadas ou vinhos raros, exigem um mínimo de maturidade para ser apreciadas.
Precisei me aproximar dos 30 anos para enfim compreender O Sol Também se
Levanta e Suave é a Noite. Já outras, mesmo quando ostentam nomes célebres na
capa, como um atestado antecipado de prazer, acabam ficando pelo caminho. Recordo
agora de três: Auto-da-Fé, O Legado de Humboldt e Retrato do Artista
Quando Jovem. Foram como um tipo de amor que não pode dar certo na luz da
manhã: modorrentos, longos, incapazes de envolvimento fugaz ou duradouro.
Permanecem na estante violados pela metade.
Quem lê o
que escrevo neste blog já conhece as minhas obsessões, os ídolos que cultivo
como flores de inverno, os romances que alicerçaram a minha formação. Eles
fazem parte de quem eu sou, do afeto que devoto a esses volumes de papel,
muitos deles amarelados e envoltos em poeira e nostalgia. A cada mês chegam
novos títulos, e tento dar conta de conhecê-los e me reabastecer de fascínio. De
vez em quando, algo que li em uma revista ou jornal detona o desejo de ler algo
que permanece na estante há muito tempo e nunca ganhou oportunidade. Ou mesmo de
reler o que um dia me marcou. Sei também que outros continuarão sem chance,
atolados pelo excesso de páginas e pela escassez das horas. Prossigo assim, em
busca do tempo perdido, como os volumes de Proust que venho comprando aos
poucos para um dia, quem sabe, me deixar levar por minha própria madeleine.