segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Uma rajada de balas


Durante muito tempo ouvimos dizer que as cinematografias do Brasil e dos Estados Unidos reproduziam na tela as obsessões de suas respectivas sociedades. Enquanto a América dissecava a violência, nós nos dedicávamos a glorificar a safadeza. Enquanto eles tinham Dirty Harry, Bonnie & Clyde e aqueles impiedosos desejos de matar do Charles Bronson (depois substituído por Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger e Jean-Claude Van Damme), a gente se deliciava com as estripulias inconseqüentes de Vadinho em Dona Flor e seus Dois Maridos, a ninfomania traumática de Sonia Braga em A Dama do Lotação ou o liberou geral de Rio Babilônia. Um tempo bom, sem dúvida. Mas um tempo que acabou.

Hoje a realidade é outra, e o Brasil que se vê na tela reflete o Brasil que se vê nos jornais e na rua. Cultuamos a violência com um grau de brutalidade que nem o discurso fascista de Tropa de Elite ou a radiografia certeira de Cidade de Deus são capazes de dar conta – e suponho que nem Salve Geral, recém-indicado a uma vaga no Oscar, também seja. Há milhares de Capitães Nascimentos espalhados pelas grandes cidades, mais ou menos corruptos, mais ou menos truculentos. Assim como há milhares de Zé Pequenos promovendo execuções em massa nas favelas, dando forma a um cenário tosco, sem resquícios de um certo romantismo que em outros tempos embalava produções como Pixote ou Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia. Não há mais causas ou conseqüências, apenas o ato em si, abjeto e sem sentido.

Por mais que o cinema brasileiro contemporâneo tente reproduzir a realidade de forma verossímil, falta desvelar o principal – que talvez apenas Sergio Bianchi, em seus delírios niilistas, tenha percebido: o estado de coisas em frangalhos que presenciamos todos os dias é resultado direto das atitudes e posições equivocadas que tomamos ao longo de décadas. Um exemplo prático: tivemos, há cerca de quatro anos, a oportunidade de desarmar a população, mas optamos por manter os cidadãos de bem com armas em casa, no carro e na cintura. O resultado está aí, bem à nossa frente: os tais cidadãos de bem matam por quase nada em discussões de trânsito ou brigas de bar, por não aceitarem fechadas, buzinas ou olhares indiscretos em direção a seus pares. É uma gente estúpida e amoral, que cultua fuzis AR-15 e submetralhadoras Uzi, vibra com os combates do UFC e venera carros tunados. Traficantes e policiais são de certa forma espelhos dessa gente, com suas rajadas de balas que matam mulheres e bebês e transformam o cotidiano de gente comum num filme de terror B, sem final feliz ou morte do vilão.

sábado, 24 de outubro de 2009

Cem páginas de solidão


Escrever é uma forma de renúncia. Com raras exceções, um autor necessita – além de talento, concentração e disposição para o trabalho – da mais vasta solidão para se embrenhar nos desvãos da própria mente e voltar à tona com quilos de palavras meticulosamente enfileiradas. Como numa pesca submarina, ou melhor, como num sono profundo, no qual a permanência prolongada na zona abissal do inconsciente é responsável pelos sonhos e pesadelos mais complexos e devastadores. Um mundo arrebatador, sem dúvida, mas a que custo? O que a solidão oferece ela tira em dobro, e sabemos que a solidão vai mudando de sabor e textura à medida que envelhecemos. Num dos meus momentos de maior solidão – justamente o momento em que cheguei mais próximo de me tornar um escritor – pus na boca do personagem de um romance inacabado a seguinte observação: “Solidão é uma praga. Quando a gente é jovem, ainda acha que ela tem um sabor agridoce. A partir dos trinta a solidão se torna amarga. Aos sessenta, que é o meu caso, o gosto é pior que o de cocô”. A frase é dita por um escritor bissexto e recluso ao principal personagem do livro, um jovem jornalista que trabalha na editoria de cultura do maior jornal de São Paulo e aspira se tornar um novo Scott Fitzgerald.
Esse livro, que se chama Puppy, começou a ser escrito entre agosto e outubro de 2002, e nunca consegui terminá-lo. Ele tomou forma quando passei quatro meses em Fortaleza, trabalhando na campanha política de um dos candidatos a governador do Ceará. Fui sozinho, deixando minha mulher e minha filha em Salvador, e nos últimos dois meses praticamente não havia mais trabalho. Tinha que ficar de sobreaviso caso meus serviços – era uma espécie de repórter investigativo que fuçava os podres dos adversários – fossem novamente requisitados, o que se tornou cada vez mais raro. Sozinho num flat que ficava de frente para a praia de Mucuripe, no 12º andar, eu passei a me dedicar à construção do Puppy (o título é uma homenagem ao barzinho que considerava meu paraíso particular quando morava em São Paulo, e onde tinha cadeira cativa e uma cerveja invariavelmente gelada à minha frente). Tinha basicamente tudo de que precisava em mãos para me tornar eu mesmo um novo Scott Fitzgerald (exceto o seu talento, obviamente): notebook, cigarros – que comprava a qualquer hora da madrugada na barraca de praia à frente do edifício –, uísque e uma solidão avassaladora, acentuada pela saudade. Costumava começar lá pelas 10 da noite e trabalhava até cinco, seis da manhã. Uma vez fui até as onze horas sem parar. Posso dizer que era uma experiência agradável ficar na varanda escrevendo e de vez em quando desviar a vista para observar os madrugadores caminhando no calçadão, o céu se impregnar pouco a pouco das cores do novo dia e as velas do Mucuripe, ancoradas ali na frente, protegidas por uma barra, saírem para pescar, levando suas mágoas para as águas fundas do mar. Em dois meses, cheguei às cento e dez páginas do Puppy, um romance de arquitetura um pouquinho complicada, pois precisava dar conta de quatro personagens, todos eles com voz em terceira pessoa, mesclando fluxos de consciência com sutis observações do narrador. Em maior ou menor medida, Matheus, Renato, Bóris e Daniel eram inspirados em colegas da faculdade de jornalismo da Cásper Líbero e, principalmente, em mim mesmo. Apesar de ficção, havia muito conteúdo autobiográfico ali, o que representava um desafio adicional: até onde a ficção deveria ser sobrepujada pela realidade? A tendência era invariavelmente apelar para a narrativa memorialística, deixando de lado a criação propriamente dita.
Mas, enfim, o fato é que passados os dias em Fortaleza, voltei ao convívio da minha família e consegui retomar o trabalho no jornal, de onde só fui sair em 2007, e um ano depois entrei na agência de propaganda onde estou hoje. Infelizmente, não consegui retomar o Puppy, por mais que tenha escrito um ou dois capítulos, depois perdidos quando meu computador quebrou. Algo ficou pelo caminho, e não me senti disposto a voltar aos dias de solidão. Seria um custo alto demais a pagar pela conclusão do romance, que está aqui arquivado há sete anos, esperando ser retomado. Quem sabe um dia, quando minha filha deixar de entrar no meu gabinete para conversar comigo e interromper meus textos ou minha leitura, me enchendo de uma alegria terna e silenciosa, eu volte e finalmente o conclua. De vez em quando, releio alguns trechos, mexo em outros e no geral aprecio o que tem ali, embora saiba que se trata ainda de um trabalho em progresso, um prédio sem acabamento e com tijolos faltando, muito longe da entrega das chaves.

sábado, 17 de outubro de 2009

A incompletude do desejo


Ao amor – e, por conseqüência, à felicidade – não é dada a possibilidade de ser vivido em plenitude. Em Desejo e Perigo, como antes em O Segredo de Brokeback Mountain, Ang Lee enxerga as relações humanas como engrenagens defeituosas, formadas por peças que não se encaixam umas nas outras. Ou talvez como avassaladoras forças da natureza situadas em campos opostos e contidas por uma barreira sólida e intransponível. Na relação entre Ennis Del Mar e Jack Twist, a incompletude do amor se dava pela incapacidade de superar o preconceito – não apenas de uma sociedade reacionária e brutalizada, mas também do próprio íntimo.

Em Desejo e Perigo, a barreira é a história, a caudalosa história da civilização, que traga qualquer individualidade e une e separa o senhor Yee e a jovem Wong, durante a ocupação japonesa na China, na Segunda Guerra Mundial. Yee faz parte do alto escalão do poder colaboracionista, que tem como principal função reprimir focos de rebelião contra os invasores e matar sem compaixão compatriotas envolvidos na luta armada. Um canalha, em suma, mas também um peixe grande, que deverá ser pescado pela espiã Wong, integrante de um grupo de estudantes ligados ao movimento subversivo.

Essa é a grande história. A pequena, que realmente interessa a Ang Lee, é a do desejo arrebatador, que vem antes do amor e é seu principal combustível. Yee e Wong estão em lados contrários no espectro político, mas quando se juntam são carne em brasa. Para ele, o sexo é uma espécie de libertação. Penetrar, praticamente violentando a amante, arrancando dela sangue e gritos, faz com que se sinta vivo e deixe por um breve tempo o lamaçal cotidiano no qual está permanentemente imerso. Não há alma em Yee, talvez apenas um espírito retorcido, esmagado pela brutalidade, mas que renasce com a chegada de Wong. Para ela, o sexo é um abismo, mas igualmente libertação: da rotina sem perspectivas, da ausência paterna, do olhar niilista sobre a vida.

Louis Malle também já havia tratado da insanidade do desejo em Perdas e Danos, e Bertolucci tangenciou o assunto em O último Tango em Paris. Em todos, fica a certeza da incompletude. Não há futuro possível para Yee e Wong, para além das convenções sociais. São inimigos, e se ele a destrói fisicamente, ela corrói os resquícios de espírito que ainda se manifestavam nele. A chama se extingue. Dali por diante, Yee não será mais capaz de se emocionar com uma canção de amor entoada para ele pela mulher amada, nem de esboçar ternura ao vê-la colocando um diamante no dedo. Será um homem oco, cujo único propósito será matar, matar e matar. Até a grande história se voltar novamente contra ele, com a derrota japonesa e o fim da grande guerra.

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Desejo e Perigo não seria o magnífico filme que é sem seus protagonistas. Conhecia Tony Leung de Amor à flor da pele, Herói e outros trabalhos, e já tinha me dado conta de que é um ator na acepção clássica do termo. Mas Yee é uma construção soberba, e seria um reducionismo atroz defini-lo como um vilão. Há uma espantosa diversidade de sentimentos – terríveis e sublimes em igual medida – latejando por debaixo do seu olhar, como que pedindo para sair. Já Wei Tang – uma veterana em seu longa de estréia – dialoga de igual para igual com Leung, fazendo com que a escalada de Wong da inocência ao desalento comova e se insira de forma permanente em nossa memória. Regendo os dois, um diretor que merece respeito e admiração.

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Segue abaixo crítica de O segredo de Brokeback Mountain publicada no Correio da Bahia na época do lançamento do filme:


Um estudo sobre a infelicidade
Ang Lee imerge no amor impossível entre dois cowboys em ‘O segredo de Brokeback Mountain’
Paulo Sales
Há uma cena que simboliza de forma exemplar o sofrimento vivido pelos homens de O segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, EUA, 2005). É quando Jack Twist (Jake Gyllenhaal) sugere a Ennis Del Mar (Heath Ledger) que eles poderiam ser felizes juntos, tocando a vida num rancho cheio de animais. Só os dois. Ennis rebate. Diz ser impossível. E lembra que, quando criança, foi levado pelo pai para ver um sujeito ser morto de forma violenta por ser homossexual e morar com o companheiro num rancho. Por fim, diz ao amante que não há muito o que fazer, que eles precisam continuar se encontrando secretamente, enquanto suas vidas desmoronam.
Quando esse encontro acontece, já na metade final da narrativa, Ennis e Jack são homens de meia-idade, casados e com filhos. Apaixonaram-se muito antes, ainda jovens, quando pastoreavam ovelhas na montanha Brokeback. Ao idílio inicial se seguiram a separação, os casamentos e as vidas em paralelo, intercaladas por encontros furtivos. Mais do que um romance gay ambientado no coração da América rural dos anos 60, o filme de Ang Lee é um estudo sobre a infelicidade. Ou, para ser mais preciso, sobre a impossibilidade do ser humano de encontrar, na sua curta passagem pela Terra, momentos que signifiquem algo além do nascer, crescer, envelhecer e ir embora.
Lançado inicialmente em poucas salas nos Estados Unidos, O segredo de Brokeback Mountain foi aos poucos conquistando o público, inclusive nos bolsões mais conservadores do país, a mesma região onde a trama é ambientada. Há uma provável razão para esse êxito: o filme é profundamente americano. Nele, se revela a América da música country, dos rodeios, da vastidão e das belas paisagens solitárias, desbravadas por homens rudes e mulheres submissas.
Não há espaço para o amor de Ennis e Jack nesse lugar. Um amor que se manifesta fisicamente, como na primeira separação, quando o personagem de Ledger se contorce de dor nas entranhas e esmurra uma parede por não conseguir reprimi-la. Marcados por uma infância de carências afetivas e materiais, ambos se vêem obrigados a construir uma imagem de masculinidade e autonomia que se torna insustentável com o passar dos anos. Casado com Alma (Michelle Williams, mulher do ator também na vida real) e pai de duas filhas, Ennis tem seu segredo logo descoberto pela esposa, que demonstra imensa dificuldade em lidar com a situação, agravada pelas dificuldades financeiras do casal.
Jack teve um pouco mais de sorte, ao menos no aspecto econômico, ao se casar com a filha de um homem rico e arrogante, que o trata como um serviçal. Fracassou como cowboy de rodeio e seu casamento é também um malogro, embora não tanto quanto o do amante. Mas, à medida que os dois precisam lidar com a própria homossexualidade, incluindo explosões de virilidade sempre que são feridos, fica evidente o quanto são frágeis. Sufocados por um amor que não ousa dizer o nome, para usar as palavras de Oscar Wilde, Ennis e Jack acabam confinados à amargura e ao desalento.
O afeto é a principal argamassa utilizada por Ang Lee para edificar sua história, baseada em conto da norte-americana E. Annie Proulx. Seu olhar sobre os conflitos vividos pelos cowboys é invariavelmente revestido de ternura e compreensão. Com esses elementos, o cineasta taiwanês subverte a mitologia criada ao longo de décadas em torno do western, assentada na bravura, na vingança e na lavagem da honra com as próprias mãos. Mesmo ambientado na segunda metade do século 20, quando a revolução sexual promovida pelo movimento hippie começava a invadir as grandes cidades da América, O segredo de Brokeback Mountain é embebido da atmosfera do gênero que celebrizou John Wayne. O país que se vê no filme está bem mais próximo dos tempos da conquista do oeste selvagem que do psicodelismo dos centros urbanos.
Parte dessa atmosfera se deve à soberba fotografia de Rodrigo Prieto, que capta as majestosas paisagens do Canadá, onde o longa foi rodado (substituindo o Wyoming original). Jake Gyllenhaal está impecável. Totalmente amparada no olhar, sua atuação é tão intensa que eclipsa o trabalho de Ledger. Este recorreu a uma interpretação de caráter naturalista, popularizada pelo lendário Actor’s Studio, a mais conceituada escola para atores dos EUA. É impossível não perceber semelhanças com o trabalho de Marlon Brando (principal cria da entidade fundada por Elia Kazan) em O poderoso chefão, sobretudo na fala engasgada. Mas com a diferença de que o discípulo dificilmente atingirá a estatura do mestre.
O tema da homossexualidade já havia sido tratado por Ang Lee - com o mesmo grau de sutileza, embora de forma mais amena - em O banquete de casamento. Outros filmes do diretor, como Razão e sensibilidade, Tempestade de gelo e mesmo um trabalho de entretenimento como Hulk, também imergiam, em maior ou menor medida, na inadequação dos personagens ao meio em que viviam. Mas O segredo de Brokeback Mountain vai mais longe. A frustração, o desnorteio e a desesperança de Ennis e Jack produzem um travo amargo. Principalmente porque deixam claro que na vida, ao contrário do que se pode pensar em instantes de felicidade passageira, não existe espaço para a redenção.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Receita para fazer um vilão


Acabo de ler uma reportagem que relata os crimes de Hildebrando Pascoal, aquele sujeito que lá no Acre tinha o costume de se armar de uma motosserra para dar cabo de seus desafetos ou qualquer um que cruzasse indevidamente o seu caminho. A trajetória de Hildebrando é exemplar: nos anos 80, ele comandou um grupo de extermínio responsável por mais de 60 assassinatos no estado – foi nessa época que se diplomou com louvor no curso de operador de motosserra – e pouco depois já manejava seus tentáculos por todo o poder público acreano, além de diversificar seus negócios com o tráfico de drogas. Isso antes de ser eleito deputado federal, o que acabou coroando uma carreira em franca ascensão. Mas depois de todo auge vem a derrocada: hoje ele está preso, e a soma de suas penas chega a 106 anos. Entre tantos crimes, o mais conhecido foi o assassinato de um homem inocente e de seu filho de 13 anos. Repito: 13 anos. Para isso, utilizou seu instrumento favorito, com o qual amputou braços, pernas e pênis. Não foi tudo: o homem ainda teve os olhos arrancados e um prego enfiado na testa, antes de receber no mínimo quatro tiros na cabeça. Sua viúva, que testemunhou contra Hildebrando no Tribunal do Júri do Acre, vive escondida com os outros filhos do casal em paradeiro desconhecido, após ter fugido apavorada de Rio Branco. Não reproduzo esses detalhes por prazer mórbido, mas para tentar exorcizar o sentimento de impotência e indignação que me toma como uma febre. E, também, para repensar minhas convicções e dividi-las com quem lê este texto. Afinal, o que merece um homem assim? Devemos nos igualar ao nobre deputado Hildebrando e cortá-lo em pedacinhos? Matá-lo com instrumentos perfurocortantes em meio a um discurso verborrágico, como um personagem de Tarantino? Deixar que apodreça na cadeia? Ou aceitar passivamente que no Brasil as leis só permitem a um condenado passar no máximo três décadas encarcerado? Deixo com vocês.
O que mais me intriga em casos como o de Hildebrando Paschoal é de que forma pessoas como ele – estúpidas, embrutecidas e intrinsecamente más – conseguem acumular tamanho poder, afora o fato de exercerem o terror em escala industrial como estratégia de intimidação. A verdade é que o mal seduz e inebria, e a trajetória humana sobre a Terra está aí para comprovar isso. Ou que outra justificativa haveria para que milhões de seres humanos aceitassem passivamente que um homem, apenas um, ordenasse e pusesse em prática um genocídio? Com sua motosserra covarde, Hildebrando é apenas uma piabinha no oceano habitado por grandes vilões da civilização, que tem em Hitler o mais corpulento dos leviatãs que já singraram esses mares. Hitler, porém, não está sozinho. Nem preciso ir até a estante e consultar um livro intitulado Tiranos para citar de cor nomes como Pol Pot, Pinochet, Stálin, Milosevic, Hussein e Idi Amin, para ficar apenas no século 20 e nos mais altos postos de comando. Como eles chegaram a tanto? E, numa escala reduzida (não de perversidade, obviamente), como Hildebrando pôde chegar a tanto, mesmo matando, torturando, aterrorizando e intimidando tanta gente? Ou seria exatamente por isso que ele chegou a tanto? Não há um padrão, um molde preciso para o êxito do mal, embora a apatia, a indiferença e o medo sejam talvez os principais ingredientes dessa receita – ingredientes fartos na maior parte do mundo, vale ressaltar. Enfim, as perguntas que me faço a cada dia, a cada novo fato repulsivo que salta dos jornais e das telas de computador, são sempre as mesmas. De onde vem o mal? Qual é a sua natureza? Como ele se processa em nossos corações e mentes? Que tipo de centelha permite que ele deixe o estado latente e se manifeste? Por que é tão poderoso? Penso que nem Hildebrando, no exato momento do abate de inocentes, seria capaz de respondê-las.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Companheiros de geração


Cazuza tinha 32 anos quando morreu, em 1990. Eu estava com vinte na época, e ter 32 anos me parecia algo remoto, como um ponto vagamente luminoso no céu escuro. Renato Russo morreu em 1996, aos 36 anos. Eu estava com 26 e, mesmo nessa época, ter 36 anos me parecia algo distante, como um lampejo do que queríamos ser quando éramos adolescentes. Mas agora, ao ler o texto de um amigo sobre John Lennon, me dei conta de que ele morreu aos 40 anos. E esse número não me remeteu a um ponto vagamente luminoso ou mesmo a um lampejo do passado. Lennon morreu com a idade que terei daqui a quatro meses. Percebo então, com a clarividência dos ignorantes, o quanto somos novos, por mais que o relógio insista em dizer a cada segundo, como num filme de Mario Peixoto: “Menos um, menos um, menos um”. Quase três décadas após sua morte, nos tornamos enfim, Lennon e eu, companheiros de geração. Enquanto eu dei a sorte de caminhar sem olhar para trás, as quatro balas que se alojaram em seu corpo fizeram dele uma estátua de sal, como na maldição divina imposta à mulher de Ló, que se virou para contemplar a Sodoma destruída.

Lembro de uma cena em Antes do Amanhecer que até hoje me comove: é quando Céline está com Jesse num cemitério em Viena que ela havia visitado quando criança, e lá vê o túmulo de uma garota morta aos 13 anos. Enquanto Céline chegou aos 20, a garotinha permanece com 13. Ou seja: algo muito precioso lhe foi roubado. Como foi roubado de Lennon quando Mark Chapman descarregou o revólver em cima dele. Já escrevi aqui no blog uma bela frase de Scott Fitzgerald, na qual ele diz: “Aos 18 anos, nossas convicções são colinas de onde contemplamos o horizonte; aos 45, são cavernas em que nos escondemos”. Bem, vou fazer 40 anos, e ainda não me vejo encerrado numa caverna, embora as minhas convicções estejam em grande parte sedimentadas de forma definitiva num maciço geológico. Duvido que tenha sido diferente com Lennon. Em dezembro de 1980, pouco antes de se virar para atender ao chamado do seu assassino, o mundo devia se apresentar para ele como um sofisticado e bem equipado laboratório de experiências existenciais. Ou, para ser mais direto, um lugar do qual ele não gostaria de se despedir tão, mas tão cedo.

sábado, 3 de outubro de 2009

Plenitude

A lua gorda e branca banhando o meu corpo, a rede e a varanda neste início de noite. O vento frio nos meus pés e no meu peito. Um avião passando com luzes vermelhas e azuis. A lembrança de um período particularmente feliz da minha vida. E a voz de anjo de Teresa Salgueiro cantando: “Eu tenho um amor bem escondido, num sonho que nem sei contar, e guardarei sempre comigo”.

“À vida falta uma porta”


É possível entender a morte como uma conseqüência da vida. Um curso tão natural quanto o do rio que deságua numa cachoeira ou no mar, se perdendo a partir daí. Essa passagem compulsória que todos fazemos de um estágio para o outro – um plano superior para a maioria, o nada para uns poucos – é tratada com placidez e a delicadeza inerente aos orientais em A Partida. Não que o filme de Yojiro Takita descarte a catarse que acompanha o dramático ritual de despedida entre os que ficam e os que vão. Ela está lá, claro, mas não se constitui num estorvo, e sim num processo de autoconhecimento e descoberta de sentimentos obscuros, trancados há muito tempo em algum canto de nós. O deparar-se com a morte se torna, enfim, uma espécie de compreensão silenciosa da condição humana, e é legítimo pensar a vida como uma epopéia particular com início, meio e fim.

Mas, então, o que pensar quando a epopéia não se completa? Quando a vida é abruptamente retirada de um corpo ainda em formação e não preparado, portanto, para o fim? Toda a harmonia que poderia existir se pulveriza quando há uma ruptura no curso natural das coisas. Ao ler nos jornais tantos casos de assassinatos, muitos deles envolvendo crianças como o bebê baleado em Osasco, sinto um irreprimível sentimento de vazio, de ignorância em relação à minha condição de ser vivo. Como um improvável Silvio Brito eu grito em silêncio: pare o mundo que eu quero descer. Olho o meu corpo, as mãos que escrevem este texto, as veias sob a tênue camada de pele, os pelos, a respiração, a textura do rosto. Está tudo aqui, mas um dia vai sumir, junto com a minha consciência. Como entender e, principalmente, aceitar isso? Afinal, eu não sou um rio.

Ferreira Gullar já escreveu que “não há soluço maior que despedir-se da vida”. É o nosso choro mudo, nossa revolta derradeira. Gullar diz muito mais. Diz que “à vida falta uma porta” ou que “onde a vida cessou começa o abismo”. Muito mais velho e sábio do que eu, ele tateia da mesma forma no escuro, buscando uma explicação, ínfima que seja, para a tragédia de se extinguir. E – talvez por ignorância ou pela incapacidade de pensar como um oriental – ele também não consegue enxergar beleza na ausência.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Bonzinhos e maldosos


Nada como uma sociedade reacionária e estulta para permitir o florescimento de anomalias comportamentais e culturais. No caso específico da nossa era, uma dessas anomalias é a disseminação do politicamente correto. Vivemos uma avalanche de conservadorismo e pretenso bom-mocismo, e é nesse território pálido e amorfo – e, por isso mesmo, confortável – que germina o excesso de pudor, minando o surgimento e o intercâmbio de pensamentos originais e radicais – no bom sentido, é claro. Philip Roth reflete sobre isso de forma aguda em A Marca Humana, sobre um professor decano de uma universidade tradicional americana que é demitido após se referir a dois alunos faltosos como “spooks”, termo que em inglês significa tanto “fantasmas” quanto “negros”. Um detalhe: ele não sabia que os alunos eram negros nem que a expressão tinha esse segundo significado.

Mas não queria ficar aqui apenas condenando o politicamente correto, e gostaria de tentar entender o processo que levou à sua proliferação. Deve-se, antes de tudo, tratá-lo como um legado amargo do século 20 – e, em menor medida, dos séculos que vieram antes dele. Por mais hipócrita que seja, todo esse cuidado no trato com a diferença e as minorias talvez seja uma pedido inconsciente de desculpas. Ou seja, tentamos reparar com eufemismos o que fizemos com balas. É difícil concordar com a prática de evitar ou censurar expressões como “humor negro” ou “judiar” para não ferir suscetibilidades das etnias a que elas remotamente se referem. Mas, de certa forma, essa prática não é compreensível?

Por outro lado, a aversão ao politicamente correto vem provocando um efeito colateral igualmente indesejável: apreciar tudo que vai de encontro a ele. Como se ser politicamente incorreto – incluindo aí emitir opiniões racistas, sexistas ou puramente polêmicas, mesmo que vazias – fosse um antídoto para a mesmice, um comportamento de guerrilha contra o status quo. Esta semana, li no blog do repórter Geneton Moraes Neto uma entrevista com o historiador Paul Johnson, na qual ele desfila uma sucessão de sandices sobre tudo quanto é assunto, de religião a arte moderna. Ao ler os comentários dos leitores, vi que quase todos saudavam Johnson como o legítimo combatente de uma cruzada contra o politicamente correto. E por quê? Porque ele disse, entre outras coisas, que Picasso foi um artista medíocre por ter sido stalinista, e que sua obra não tinha um propósito moral, como toda arte deve ter. Mas por que toda arte deve ter um propósito moral? Um propósito estético certamente, mas um propósito moral?

Engraçado que o blog traçou um paralelo entre Johnson e o finado jornalista Paulo Francis, pela forma como ambos expressam suas opiniões polêmicas de forma destemida, enfrentando a tudo e a todos. Bobagem. Francis foi um excelente articulista, capaz de tratar de temas espinhosos com um coloquialismo sedutor, e foi também um memorialista arguto e sensível, como se pode comprovar em O Afeto que se Encerra e Trinta Anos Esta Noite, dois livraços. Isso era o que ele tinha de melhor (o que é muito), e não a tendência a emitir de tempos em tempos opiniões descabidas e preconceituosas que minavam sua credibilidade. Vejo uma coisa parecida na forma como alguns cronistas saudam um filme como Brüno, de Sacha Baron Cohen, que seria um petardo contra o politicamente correto. Petardo? Qual o valor prático de fazer piadinhas gratuitas sobre autismo e discriminação racial? O pior é que o filme ainda é chato, bobo e extemporâneo – o pessoal do Planeta Diário e da Casseta Popular fazia o mesmo com mais competência vinte anos atrás. Enfim, para ter incorreção é preciso ter substância, ou ficamos apenas na vala comum da ofensa gratuita.