Ao amor – e, por conseqüência, à felicidade – não é dada a possibilidade de ser vivido em plenitude. Em Desejo e Perigo, como antes em O Segredo de Brokeback Mountain, Ang Lee enxerga as relações humanas como engrenagens defeituosas, formadas por peças que não se encaixam umas nas outras. Ou talvez como avassaladoras forças da natureza situadas em campos opostos e contidas por uma barreira sólida e intransponível. Na relação entre Ennis Del Mar e Jack Twist, a incompletude do amor se dava pela incapacidade de superar o preconceito – não apenas de uma sociedade reacionária e brutalizada, mas também do próprio íntimo.
Em Desejo e Perigo, a barreira é a história, a caudalosa história da civilização, que traga qualquer individualidade e une e separa o senhor Yee e a jovem Wong, durante a ocupação japonesa na China, na Segunda Guerra Mundial. Yee faz parte do alto escalão do poder colaboracionista, que tem como principal função reprimir focos de rebelião contra os invasores e matar sem compaixão compatriotas envolvidos na luta armada. Um canalha, em suma, mas também um peixe grande, que deverá ser pescado pela espiã Wong, integrante de um grupo de estudantes ligados ao movimento subversivo.
Essa é a grande história. A pequena, que realmente interessa a Ang Lee, é a do desejo arrebatador, que vem antes do amor e é seu principal combustível. Yee e Wong estão em lados contrários no espectro político, mas quando se juntam são carne em brasa. Para ele, o sexo é uma espécie de libertação. Penetrar, praticamente violentando a amante, arrancando dela sangue e gritos, faz com que se sinta vivo e deixe por um breve tempo o lamaçal cotidiano no qual está permanentemente imerso. Não há alma em Yee, talvez apenas um espírito retorcido, esmagado pela brutalidade, mas que renasce com a chegada de Wong. Para ela, o sexo é um abismo, mas igualmente libertação: da rotina sem perspectivas, da ausência paterna, do olhar niilista sobre a vida.
Louis Malle também já havia tratado da insanidade do desejo em Perdas e Danos, e Bertolucci tangenciou o assunto em O último Tango em Paris. Em todos, fica a certeza da incompletude. Não há futuro possível para Yee e Wong, para além das convenções sociais. São inimigos, e se ele a destrói fisicamente, ela corrói os resquícios de espírito que ainda se manifestavam nele. A chama se extingue. Dali por diante, Yee não será mais capaz de se emocionar com uma canção de amor entoada para ele pela mulher amada, nem de esboçar ternura ao vê-la colocando um diamante no dedo. Será um homem oco, cujo único propósito será matar, matar e matar. Até a grande história se voltar novamente contra ele, com a derrota japonesa e o fim da grande guerra.
***
Desejo e Perigo não seria o magnífico filme que é sem seus protagonistas. Conhecia Tony Leung de Amor à flor da pele, Herói e outros trabalhos, e já tinha me dado conta de que é um ator na acepção clássica do termo. Mas Yee é uma construção soberba, e seria um reducionismo atroz defini-lo como um vilão. Há uma espantosa diversidade de sentimentos – terríveis e sublimes em igual medida – latejando por debaixo do seu olhar, como que pedindo para sair. Já Wei Tang – uma veterana em seu longa de estréia – dialoga de igual para igual com Leung, fazendo com que a escalada de Wong da inocência ao desalento comova e se insira de forma permanente em nossa memória. Regendo os dois, um diretor que merece respeito e admiração.
Em Desejo e Perigo, a barreira é a história, a caudalosa história da civilização, que traga qualquer individualidade e une e separa o senhor Yee e a jovem Wong, durante a ocupação japonesa na China, na Segunda Guerra Mundial. Yee faz parte do alto escalão do poder colaboracionista, que tem como principal função reprimir focos de rebelião contra os invasores e matar sem compaixão compatriotas envolvidos na luta armada. Um canalha, em suma, mas também um peixe grande, que deverá ser pescado pela espiã Wong, integrante de um grupo de estudantes ligados ao movimento subversivo.
Essa é a grande história. A pequena, que realmente interessa a Ang Lee, é a do desejo arrebatador, que vem antes do amor e é seu principal combustível. Yee e Wong estão em lados contrários no espectro político, mas quando se juntam são carne em brasa. Para ele, o sexo é uma espécie de libertação. Penetrar, praticamente violentando a amante, arrancando dela sangue e gritos, faz com que se sinta vivo e deixe por um breve tempo o lamaçal cotidiano no qual está permanentemente imerso. Não há alma em Yee, talvez apenas um espírito retorcido, esmagado pela brutalidade, mas que renasce com a chegada de Wong. Para ela, o sexo é um abismo, mas igualmente libertação: da rotina sem perspectivas, da ausência paterna, do olhar niilista sobre a vida.
Louis Malle também já havia tratado da insanidade do desejo em Perdas e Danos, e Bertolucci tangenciou o assunto em O último Tango em Paris. Em todos, fica a certeza da incompletude. Não há futuro possível para Yee e Wong, para além das convenções sociais. São inimigos, e se ele a destrói fisicamente, ela corrói os resquícios de espírito que ainda se manifestavam nele. A chama se extingue. Dali por diante, Yee não será mais capaz de se emocionar com uma canção de amor entoada para ele pela mulher amada, nem de esboçar ternura ao vê-la colocando um diamante no dedo. Será um homem oco, cujo único propósito será matar, matar e matar. Até a grande história se voltar novamente contra ele, com a derrota japonesa e o fim da grande guerra.
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Desejo e Perigo não seria o magnífico filme que é sem seus protagonistas. Conhecia Tony Leung de Amor à flor da pele, Herói e outros trabalhos, e já tinha me dado conta de que é um ator na acepção clássica do termo. Mas Yee é uma construção soberba, e seria um reducionismo atroz defini-lo como um vilão. Há uma espantosa diversidade de sentimentos – terríveis e sublimes em igual medida – latejando por debaixo do seu olhar, como que pedindo para sair. Já Wei Tang – uma veterana em seu longa de estréia – dialoga de igual para igual com Leung, fazendo com que a escalada de Wong da inocência ao desalento comova e se insira de forma permanente em nossa memória. Regendo os dois, um diretor que merece respeito e admiração.
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Segue abaixo crítica de O segredo de Brokeback Mountain publicada no Correio da Bahia na época do lançamento do filme:
Um estudo sobre a infelicidade
Ang Lee imerge no amor impossível entre dois cowboys em ‘O segredo de Brokeback Mountain’
Paulo Sales
Há uma cena que simboliza de forma exemplar o sofrimento vivido pelos homens de O segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, EUA, 2005). É quando Jack Twist (Jake Gyllenhaal) sugere a Ennis Del Mar (Heath Ledger) que eles poderiam ser felizes juntos, tocando a vida num rancho cheio de animais. Só os dois. Ennis rebate. Diz ser impossível. E lembra que, quando criança, foi levado pelo pai para ver um sujeito ser morto de forma violenta por ser homossexual e morar com o companheiro num rancho. Por fim, diz ao amante que não há muito o que fazer, que eles precisam continuar se encontrando secretamente, enquanto suas vidas desmoronam.
Quando esse encontro acontece, já na metade final da narrativa, Ennis e Jack são homens de meia-idade, casados e com filhos. Apaixonaram-se muito antes, ainda jovens, quando pastoreavam ovelhas na montanha Brokeback. Ao idílio inicial se seguiram a separação, os casamentos e as vidas em paralelo, intercaladas por encontros furtivos. Mais do que um romance gay ambientado no coração da América rural dos anos 60, o filme de Ang Lee é um estudo sobre a infelicidade. Ou, para ser mais preciso, sobre a impossibilidade do ser humano de encontrar, na sua curta passagem pela Terra, momentos que signifiquem algo além do nascer, crescer, envelhecer e ir embora.
Lançado inicialmente em poucas salas nos Estados Unidos, O segredo de Brokeback Mountain foi aos poucos conquistando o público, inclusive nos bolsões mais conservadores do país, a mesma região onde a trama é ambientada. Há uma provável razão para esse êxito: o filme é profundamente americano. Nele, se revela a América da música country, dos rodeios, da vastidão e das belas paisagens solitárias, desbravadas por homens rudes e mulheres submissas.
Não há espaço para o amor de Ennis e Jack nesse lugar. Um amor que se manifesta fisicamente, como na primeira separação, quando o personagem de Ledger se contorce de dor nas entranhas e esmurra uma parede por não conseguir reprimi-la. Marcados por uma infância de carências afetivas e materiais, ambos se vêem obrigados a construir uma imagem de masculinidade e autonomia que se torna insustentável com o passar dos anos. Casado com Alma (Michelle Williams, mulher do ator também na vida real) e pai de duas filhas, Ennis tem seu segredo logo descoberto pela esposa, que demonstra imensa dificuldade em lidar com a situação, agravada pelas dificuldades financeiras do casal.
Jack teve um pouco mais de sorte, ao menos no aspecto econômico, ao se casar com a filha de um homem rico e arrogante, que o trata como um serviçal. Fracassou como cowboy de rodeio e seu casamento é também um malogro, embora não tanto quanto o do amante. Mas, à medida que os dois precisam lidar com a própria homossexualidade, incluindo explosões de virilidade sempre que são feridos, fica evidente o quanto são frágeis. Sufocados por um amor que não ousa dizer o nome, para usar as palavras de Oscar Wilde, Ennis e Jack acabam confinados à amargura e ao desalento.
O afeto é a principal argamassa utilizada por Ang Lee para edificar sua história, baseada em conto da norte-americana E. Annie Proulx. Seu olhar sobre os conflitos vividos pelos cowboys é invariavelmente revestido de ternura e compreensão. Com esses elementos, o cineasta taiwanês subverte a mitologia criada ao longo de décadas em torno do western, assentada na bravura, na vingança e na lavagem da honra com as próprias mãos. Mesmo ambientado na segunda metade do século 20, quando a revolução sexual promovida pelo movimento hippie começava a invadir as grandes cidades da América, O segredo de Brokeback Mountain é embebido da atmosfera do gênero que celebrizou John Wayne. O país que se vê no filme está bem mais próximo dos tempos da conquista do oeste selvagem que do psicodelismo dos centros urbanos.
Parte dessa atmosfera se deve à soberba fotografia de Rodrigo Prieto, que capta as majestosas paisagens do Canadá, onde o longa foi rodado (substituindo o Wyoming original). Jake Gyllenhaal está impecável. Totalmente amparada no olhar, sua atuação é tão intensa que eclipsa o trabalho de Ledger. Este recorreu a uma interpretação de caráter naturalista, popularizada pelo lendário Actor’s Studio, a mais conceituada escola para atores dos EUA. É impossível não perceber semelhanças com o trabalho de Marlon Brando (principal cria da entidade fundada por Elia Kazan) em O poderoso chefão, sobretudo na fala engasgada. Mas com a diferença de que o discípulo dificilmente atingirá a estatura do mestre.
O tema da homossexualidade já havia sido tratado por Ang Lee - com o mesmo grau de sutileza, embora de forma mais amena - em O banquete de casamento. Outros filmes do diretor, como Razão e sensibilidade, Tempestade de gelo e mesmo um trabalho de entretenimento como Hulk, também imergiam, em maior ou menor medida, na inadequação dos personagens ao meio em que viviam. Mas O segredo de Brokeback Mountain vai mais longe. A frustração, o desnorteio e a desesperança de Ennis e Jack produzem um travo amargo. Principalmente porque deixam claro que na vida, ao contrário do que se pode pensar em instantes de felicidade passageira, não existe espaço para a redenção.
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