Há duas epidemias de cólera em curso em dois países da América Latina. A primeira é no Haiti, onde uma população recém-saída do devastador terremoto de janeiro agora se vê dizimada pela doença. Já são mais de mil mortos e 18 mil infectados, e esses números são preliminares. Como quase sempre acontece no Haiti, as proporções das tragédias são estratosféricas, e a elas se seguem invariavelmente o caos e a explosão de desordem. A outra epidemia de cólera acontece no Brasil. Mas não se trata da mesma enfermidade presente no pequeno país centro-americano ou daquela que serve de pano de fundo para O Amor nos Tempos do Cólera, o belo e caudaloso romance de García Márquez. O Brasil padece de cólera moral.
Não há nenhuma novidade em dizer que temos uma sociedade doente, cindida por sintomas que na verdade são variações de um mesmo diagnóstico. Mas é curioso que a epidemia de cólera – ou de raiva, ira, preconceito, racismo ou qualquer outro termo que se queira usar – tenha se externado justamente agora. Como se um fato contaminasse outro e assim por diante. Há 15 dias, escrevi sobre as manifestações de preconceito contra nordestinos na internet, lideradas por um grupo de estudantes de classe média. Esse já é um episódio datado, mesmo que ainda atual. Datado porque a ele se seguiu uma onda de ódio que parece não ter fim: ódio contra pobres, ódio contra gays, ódio, enfim, contra o que é diferente – ou o que soa diferente a corações e mentes acostumados a um mundo sem matizes.
O problema, para pessoas assim, é que a civilização é dinâmica. E a pirâmide social brasileira – que durante muito tempo se configurou como um corpo letárgico, com castas rigidamente depositadas umas sobre as outras – presencia uma mobilidade inédita. Hoje, cada vez mais gente anda de carro, para desespero de pessoas como o jornalista Luiz Carlos Prates, comentarista de uma emissora de tevê catarinense, que esbravejou contra os “miseráveis” motorizados e atribuiu a eles a culpa pelos graves acidentes ocorridos no último feriado nas estradas de Santa Catarina. Gente, segundo ele, que “jamais leu um livro, mora apertado numa gaiola que hoje chamam de apartamento, não tem nenhuma qualidade de vida, mas tem um carro na garagem”. Coincidentemente, também peguei a estrada no feriado e vi muitos motoristas cometendo barbaridades, sendo que muitos deles dirigiam automóveis de luxo, não os habitualmente adquiridos pelos “desgraçados” a que se refere Prates, quase derramando saliva pelos cantos da boca.
E, como a doença está se alastrando sem controle país afora, não podiam faltar outras demonstrações de cólera, como a ocorrida domingo em São Paulo, na Avenida Paulista pela qual caminhei tantas vezes nos finais de noite da minha juventude. Desta vez um fato ainda mais grave, porque nele o destempero verbal veio acompanhado do destempero físico: um adolescente armado de uma lâmpada de escritório e respaldado por outros adolescentes investe contra três rapazes vindos em sentido contrário. Vi as imagens hoje e foram elas que me motivaram a escrever este texto. Foi um ato gratuito e covarde, como costumam ser os atos dessa natureza: o sujeito pára, se posiciona sorrateiramente e desfere o golpe na cabeça do rapaz, como se empunhasse um sabre de luz do filme Guerra nas Estrelas. Não satisfeito, golpeia novamente e só então o outro revida.
Mais tarde, através do advogado de defesa dos jovens, ficamos sabendo o motivo: as vítimas seriam homossexuais, e quem sabe até "teriam paquerado os agressores", que obviamente se viram obrigados a exibir toda a sua virilidade. Ah, então existe uma motivação, o que talvez faça muitos respirarem aliviados. Os rapazes não são, portanto, um equivalente paulistano dos delinquentes de Laranja Mecânica, que agrediam por agredir, sem qualquer propósito ou justificativa. Não, eles têm uma causa. Assim como o sujeito que matou um rapaz na saída da Parada Gay, na mesma São Paulo, há alguns meses. Assim como o estuprador que só estupra porque a mulher está com um vestido curto demais, colado demais, sedutor demais. Assim como Hitler, para quem judeus, ciganos, deficientes físicos, homossexuais e outras minorias não cabiam na sua utopia particular. E por aí vai.
O fato é que quando a motivação de uma pessoa para agredir outra está na não-aceitação do que essa outra pessoa é – não o que ela pensa ou defende – então estamos caminhando por um território sombrio. É o mesmo campo minado habitado por israelenses e palestinos, já que um não aceita a existência do outro, embora a convivência pacífica entre ambos fosse a alternativa mais viável. Ou seja: não basta odiar o outro; é preciso acabar com ele. É preciso acabar com os pobres que compram carros, acabar com os gays que andam nas ruas e deveriam voltar aos guetos, acabar com os nordestinos que votam em Dilma Rousseff. O que me leva a pensar que nossa epidemia talvez não seja de cólera, seja de demência mesmo.
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