De tempos em tempos, volto à série Jazz, de Ken Burns. Uma produção com mais de 12 horas de duração espalhadas por quatro DVDs, que reconstitui a trajetória do mais relevante e complexo gênero musical surgido no século 20, do nascimento aos dias atuais, passando pela era do swing, o bebop, o cool, as experimentações do avant-garde e a decadência quase seguida de morte, quando o rock tomou conta do mundo a partir de meados dos anos 60. Adoro rever sobretudo o último DVD, que aborda o jazz moderno, pós-swing, aquele que Charlie Parker, Thelonious Monk e Dizzy Gillespie erigiram e Miles Davis e John Coltrane elevaram ao Olimpo.
Assistir à série nos permite enxergar o jazz não apenas como um gênero musical, mas também como um fenômeno político, comportamental e sobretudo social. Estão lá a barbárie da Segunda Guerra, a nova conquista do oeste por americanos endinheirados, as manifestações pelos direitos civis e contra a guerra do Vietnã e principalmente o racismo exacerbado e institucionalizado, que cindia a sociedade americana entre anglo-saxões descendentes de ingleses e irlandeses e os que carregavam na pele a descendência de escravos africanos. Algo fundamental para se entender uma música essencialmente de negros, sendo alguns deles os homens e mulheres mais talentosos e singulares do seu tempo. Mas essa é uma observação retrospectiva, despida do calor da hora, da tensão racial do período. Na época, era comum associar músicos de jazz à escória, ao lado selvagem dos bares enfumaçados cheios de viciados e bebuns, onde moças e rapazes de boa família não entravam.
Daí ser impossível dissociar, por exemplo, o sofrimento atátivo na voz de Billie Holiday ou o ensimesmamento agressivo de Miles Davis do contexto racial no qual eles estavam inseridos. Toda a dolorosa vida pregressa de Lady Day e de seu povo está presente na sua obra: basta ouvi-la cantando Strange Fruit, metáfora macabra para os negros enforcados em árvores, das quais pendiam como frutas estranhas. Já Miles tinha muitos motivos para ser um cara durão: chegou inclusive a ser agredido por um policial branco ao sair para fumar no intervalo de um show do qual era a grande estrela. Miles não aceitou o “circulando”, tão comum até hoje nas cidades brasileiras, e foi coberto de pancadas.
Tudo isso está em em Jazz, assim como algumas histórias lindas, que guardam um pouco daquelas pessoas para a posteridade. Lembro agora de algumas delas: o pai de Miles, ao receber em casa o filho que tentava se livrar do vício da heroína, dizendo: “Tudo que posso lhe oferecer é o meu amor”. A resposta de Coltrane, que morreria dentro de alguns meses, ao ser perguntado sobre os seus planos para os próximos anos: “Pretendo me tornar um santo”. Dave Brubeck explicando como sugeriu a Paul Desmond que juntasse dois temas criados em separado para dar forma a Take Five, uma das grandes composições da história do gênero. Louis Armstrong desbancando os Beatles em plenos anos 60 com Hello Dolly, no último suspiro do gênero nas paradas de sucesso. Histórias trágicas também, como a reação aturdida de Charlie Parker ao saber da morte da filhinha Pree, e dos telegramas que passou em sequência para a esposa Chan, cada um mais desconexo do que o outro. Os momentos que antecedem a morte do próprio Bird – drogado, bêbado, depressivo e com o corpo em frangalhos.
A série nos faz acompanhar angustiados ou com um sorriso cúmplice todas essas passagens, ao mesmo tempo em que constrói um rico painel da América, mostrando suas contradições, sua opulência e o fascínio coletivo que o jazz exercia sobre jovens, adultos e velhos naqueles tempos politicamente sombrios e musicalmente solares. O mais importante, no entanto, é perceber que a música nascida em guetos negros, tocada por ex-ladrões e ex-prostitutas, se tornou o gênero americano por excelência e, o principal, a música clássica do século 20.
Uma música que ouço todos os dias, sem cansar, e que descubro a cada novo artista, a cada novo disco desenterrado em lojas ou na internet. O fascínio de um solo quase se evaporando de Lester Young. O dedilhado infinito de Oscar Peterson. A ascese espiritual e musical de Coltrane. A força vital de Blue Mitchell, Lee Morgan, Kenny Dorham. O lirismo de Clifford Brown, que foi embora tão cedo. A sonoridade que se assemelha a um dry martini nos solos de Paul Desmond. A alegria incontida na voz de Louis, que joga por terra qualquer melancolia. A loucura sagrada de Monk. A chama gélida nos solos de Miles, que adoro acima de todos os outros e que ouço agora, nesta noite preguiçosa de domingo.
Uma música que ouço todos os dias, sem cansar, e que descubro a cada novo artista, a cada novo disco desenterrado em lojas ou na internet. O fascínio de um solo quase se evaporando de Lester Young. O dedilhado infinito de Oscar Peterson. A ascese espiritual e musical de Coltrane. A força vital de Blue Mitchell, Lee Morgan, Kenny Dorham. O lirismo de Clifford Brown, que foi embora tão cedo. A sonoridade que se assemelha a um dry martini nos solos de Paul Desmond. A alegria incontida na voz de Louis, que joga por terra qualquer melancolia. A loucura sagrada de Monk. A chama gélida nos solos de Miles, que adoro acima de todos os outros e que ouço agora, nesta noite preguiçosa de domingo.
2 comentários:
Essa série é sensacional. Quando assisti pela primeira vez, fiquei ouvindo jazz por uns seis meses direto. Dica: já viu a série Blues, idealizada pelo Scorsese? São oito filmes, tem Scorsese, Wenders, Mike Figgs, só coisa fina.
Gosto demais da série. Revejo sempre que dá vontade.
Conheço a série Blues, mas nunca a vi, tinha até uma cópia de serviço em VHS de Piano Blues, o capítulo de Eastwood, se não me engano, mas com as mudanças tecnológicas acabei deixando de assistir. Pretendo comprar no futuro.
abs
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