Outro dia, conversava com um amigo sobre a projeção que as discussões envolvendo bullying vêm alcançando dentro e fora do ambiente escolar. Para ele, tudo agora é bullying. Até mesmo uma prosaica discussão entre colegas seguida de um palavrão é recebida pelos pais como um atentado à dignidade do filho. "É a moda do momento. Se uma criança tropeçar no pátio da escola, estará sofrendo bullying por parte da pedra". Talvez ele tenha razão. Afinal, o bom senso anda escasso nessas discussões chatíssimas presentes em reuniões de pais e mestres. Principalmente no caso de pais que costumam parar em filas duplas e lançam os filhos para fora dos carros sem se importar se as suas mochilas estão pesadas ou se eles gostariam de companhia no trajeto até a sala de aula. Talvez estejamos diante de mais um sinal dos tempos. Tempos em que não cabe mais o bullying, mas por outro lado cabem a indiferença, o desapego e a falta de tempo e paciência para lidar com as crianças.
Entendo a preocupação do meu amigo com os exageros que vêm envolvendo essa questão (que hoje serve de justificativa para todo tipo de atitude, incluindo até um massacre numa escola). Nesse sentido, é possível que a longo prazo o combate indiscriminado a todo tipo de zombaria acabe destruindo a imunidade natural da criança, que teoricamente precisaria desenvolver uma couraça para se virar na escola. Mas, e quanto aos que não conseguem desenvolver essa couraça? Ficam à míngua? Transformam-se em adultos retraídos e atemorizados – ou, pior, violentos? É por isso que acho válido o combate ao bullying. Acho válido até mesmo que esse cotidiano imemorial de intimidações, maltratos e humilhações escolares tenha ganhado um nome, por pior que ele seja. Já fui criança, já fui adolescente e conheço bem o poder de destruição da violência moral (e às vezes física) praticada por alunos contra colegas que carregam, como chagas, algumas características que os tornam particularmente vulneráveis à insânia coletiva. Sofri (e também pratiquei) bullying, e acho que me saí relativamente incólume dessa experiência, mesmo acreditando que a timidez que manifesto até hoje tenha se exacerbado nos tempos de escola.
Tudo isso me veio à mente após assistir ao filme As Melhores Coisas de Mundo, de Laís Bodanzky. Poucas vezes vi o universo adolescente retratado com tamanha fidelidade. Nele, o bullying representa um dos papéis capitais, e nos faz perceber o quanto podemos passar de algozes a vítimas em questão de semanas. É o caso de Mano, o personagem principal. Sua vida desaba ao saber que seu pai acaba de largar a mãe para assumir um romance com um homem. Até então, Mano transitava com certa habilidade entre a turma dos "populares" e a dos "nerds" (utilizo aqui expressões que minha filha usa ao se referir a alguns de seus colegas de escola). Com a nova situação a que se vê exposto, tudo que ele mais teme é a descoberta desse segredo na escola. Em desespero, ele confessa ao irmão mais velho: "Se o pessoal da escola descobre que nosso pai é viado, a gente está fodido". Bem, o pessoal descobre. Apesar do tema, As Melhores Coisas de Mundo é um filme alto-astral, divertido e bem dirigido, que mostra também o lado bom de ser adolescente, que pode simplesmente não existir para alguns deles.
Tive colegas de escolas que foram muito humilhados. Lembro de um deles: Lisédino. Nome estranho, muito magro, introspectivo ao ponto de parecer invisível. Mas não era. Por ser física e emocionalmente muito frágil, era costumeiramente sacaneado, e mudou de escola. Encontrei-o uns dois anos depois na escola para a qual também mudei, e ele continuava do mesmo jeito e continuava sendo sacaneado, até se transferir novamente. Lembro de uma vez em que ele precisou ir até a frente da sala cantar uma música, como parte de um trabalho valendo pontos. Era Fruto do Suor, do grupo Raíces de América, mas acho que só eu e ele a conhecíamos. Ele cantava muito mal, a voz rouca e sem ritmo saía após exaustivo esforço e concentração. Os outros alunos riam, e eu fiquei meio encabulado, porque afinal percebia que havia algo de mim em Lisédino. Admirei e me apiedei dele naquele momento. Era só um garoto, mais culto e inteligente do que a maioria, mas incapaz de se valer de alguma forma dessas virtudes. Não fiquei amigo dele, até porque, na nossa estúpida ética adolescente, não era uma atitude recomendável se juntar a "perdedores".
Talvez o grande problema do bullying seja gestar visões de mundo que mais tarde se revelarão profundamente equivocadas. Preconceito é um troço terrível, e é na adolescência que ele desabrocha, após passar anos sendo inoculado em nós por nossos pais ou pelas pessoas com quem convivemos. Opiniões de cunho racista, homofóbico, misógino ou de discriminação social ouvidas na infância se manifestam mais tarde em comportamentos imbecilizados, mas que - dependendo de quem os ostenta - tornam-se profundamente admirados no ambiente escolar. Talvez por isso a adolescência seja o paraíso dos fascistas. A prática do bullying apenas reverbera tudo isso em forma de agressão, causando lesões por maltrato repetitivo na mente e no corpo de centenas, talvez milhares de meninos e meninas.
4 comentários:
Achei o texto muito bom! Só achei ruim você ter falado de mim, citado minha frase e não falar o meu nome.
Pra mim isso é bullying.
Abraços
Relaxe, Dádiva. Bullying seria eu pegar sua frase e dizer que fui eu quem tinha criado aquela brilhante reflexão sobre a pedra e o tropeção.
abs
O grupo por vezes é cruel. Sempre foi assim, em qualquer lugar. Mas acho que em alguns casos o bullying vem sendo usado com muleta, para encobrir, por exemplo, uma relação pais-filhos mais esclarecedora do que repressora. Aí fica fácil dizer que o filho sofre bullying. Claro, há casos em que o grupo extrapola, mas somente nesses casos acho que o termo deveria ser aplicado. O resto, como escreveu Ruy Castro hoje, é bule-bule.
Concordo, principalmente quando você fala em muleta. A educação dos pais - e eu percebo isso na forma como alguns deles se comportam no colégio de minha filha - está capenga, seja por falta de tempo ou de maturidade. Mas às vezes é difícil estabelecer esse limite onde termina a brincadeira e começa o bullying de fato. Depende muito de quem sofre, e cabe à família e aos professores ter bom senso para lidar com isso.
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