segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Alumbramento perdido



Sem que me desse conta, a poesia foi aos poucos se afastando de mim. Não foi uma escolha deliberada, e sim um afastamento natural, como ocorre com nossos amigos de juventude. Deixamos de nos encontrar, compartilhamos poucas afinidades e, com o passar dos anos, percebemos que nada mais justifica uma reaproximação. Uma pena, porque na maior parte dos meus anos de formação, poesia e prosa conviveram lado a lado, como variações de um mesmo alumbramento. É fato que sempre preferi os romancistas aos poetas, mas grande parte da minha produção juvenil foi construída com versos. Versos livres, sem preocupação formal, muitas vezes se derramando por páginas e mais páginas, livres de qualquer busca por concisão ou aprimoramento estético. Apenas frases caudalosas, que deixavam entrever as entranhas do jovem que fui, tão afeito a silêncios, tão impregnado de uma dor da qual desconhecia a origem.

Desse conjunto de frases caudalosas saíram três livros: A Canção Nômade, Dias Estranhos, Noites Solitárias e Olhos na Estrada Aberta. Nenhum deles publicado, nenhum deles conhecido para além do meu círculo de amizades, que tratava aqueles poemas como animais raros que obviamente eles não eram. E, aos poucos, os livros deixaram de ser uma necessidade para se tornarem apenas uma expressão do passado. Nos anos seguintes, ainda escrevi alguns versos, que permanecem guardados em caixas abarrotadas de inutilidades. O último poema que escrevi, quando minha filha nasceu, pode ser considerado meu canto de cisne.

Também deixei de ler versos. Raramente compro livros de poemas – o último foi Em Alguma Parte Alguma, de Ferreira Gullar, que não me encantou como seus trabalhos anteriores. A última descoberta que realmente mexeu comigo foi a poesia de Manoel de Barros, quando ainda morava em São Paulo, lá se vão quase 15 anos. Mas tenho o costume de reler coisas antigas para perceber o efeito que elas têm sobre mim hoje, muitos anos depois de tê-las lido pela primeira vez. Alguns versos provocam em mim um instante de luminosidade, outros me entediam.

Guardo muitos deles na mente: “Sua voz quando ela canta me lembra um pássaro. Mas não um pássaro cantando. Lembra um pássaro voando” (Gullar). “Eu faço versos como quem chora, de desalento, de desencanto” (Bandeira). “Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura” (Ginsberg). “Numa noite fria, nessa terra crua, cada qual leva a morte que é sua. Cada homem certamente amou a vida, coberto por palmos de terra batida” (Brecht). “Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios” (Quintana). “Que fazer, com o inferno no peito?” (Maiakovski). E muitos, muitos outros versos que me habitam como espectros de outras eras numa casa mal-assombrada.

Não me dou por vencido. De vez em quando, pego um volume de poesias na estante e o folheio. Não consigo entender Pound, mas me encanto com alguns versos avulsos de Eliot, Dylan Thomas, Rimbaud. Pessoa me fascina de um modo particular. Mas a verdade é que nada parece me fazer ser fisgado de volta. Outro dia, depois de muito tempo, reencontrei uma antiga namorada. Ela me chamou de Paulinho Poeta e perguntou se eu ainda escrevia versos. Sorri intimamente, e percebi que falávamos de um tempo que ruiu, atropelado pela cinza das horas.

O que aconteceu? Será que minha mente, exaurida por tanta brutalidade e insensatez e sempre às voltas com preocupações e compromissos cotidianos, não se permite um pouco de lirismo? Será que perdi a conexão com uma forma de literatura que parece extirpada diretamente do que temos de mais íntimo e obscuro? É possível. Ou talvez todo aquele desassossego que havia em mim tenha enfim repousado. Hoje, livre daquelas rajadas de angústia que me faziam viver em constante estado de turbulência, já me permito não escrever mais poesia. E ler alguns versos alheios quase como um gostoso passatempo, não como uma necessidade.

6 comentários:

Karla disse...

Paulinho, você continua sendo poeta. Não conheço os seus poemas, mas, em todos os seus textos, vejo poesia. Beijos

Rodrigo Brasil disse...

Talvez devêssemos voltar a escrever poemas, don Paulón. seria interessante ver como ficaria nossa escrita com o amadurecimento ao longo dos anos. Abraço!

Paulo Sales disse...

Nossa, Karla, muito obrigado pelo elogio, mesmo. Fiquei todo prosa (rsrsrs). Uma vez postei aqui no blog um poema escrito nessa época. Chama-se Sinto um gosto amargo (pelo título, dá pra ver que o negócio é barra pesada). Se tiver interesse, procure pelo título no mecanismo de busca.
Um beijo e mais uma vez obrigado.

Paulo Sales disse...

Talvez seja uma boa idéia, Profético Rodrigón. Mas acho que ficaria tão preso à forma que não deixaria o conteúdo se expressar livremente. E, claro, não tenho o seu talento para escrever versos. Lembro até de algumas coisas que você me mandou não faz muito tempo por e-mail, mais experimentais. Coisa fina.
Grande abraço, meu velho.

Unknown disse...

Muito bom esse seu blog está de parabens
que tal fazer uma parceria.
Veja http://www.grupoalemay.com.br

Abraços

Paulo Sales disse...

Muito obrigado, meu caro.
Vou dar uma olhada no seu site também.
Um abraço.