Esta
semana, quando levava minha filha para a escola, Joshua Bell começou a tocar um
dos Noturnos mais conhecidos de Chopin no som do carro. Aos poucos, aquela
melodia tão poderosa foi nos invadindo, avançando sobre nossa consciência e
criando uma espécie de transcendência, uma bolha onde nos abrigamos do
congestionamento e do barulho dos carros e motos. Permanecemos silenciosos
durante os pouco mais de três minutos em que o violino de Bell quase nos
desmanchou (a mim, pelo menos). Foi uma ligeira epifania, uma pequena amostra de
beleza absoluta. Chopin morreu em Paris no dia 17 de outubro de 1849, aos 39
anos, mas 163 anos depois ele aparecia para nós, no início de uma tarde quente
de outono, nos deixando ensopados de fascínio.
Deixei
minha pequena na escola e voltei para casa pensando em Chopin, Joshua Bell e na
capacidade que o homem tem de, como disse Caetano, erguer e destruir coisas
belas. Um Noturno de Chopin é a prova inequívoca do valor da existência. Diria
até que é a prova inequívoca de que podemos vingar como espécie, por mais que a
travessia até aqui tenha sido tão penosa. Não foram poucos os percalços, e para
isso basta lembrar que Joshua Bell dá prosseguimento a uma longa tradição de
geniais violinistas judeus. E que uma das razões pelas quais o violino virou um
instrumento judeu por excelência é a sua praticidade. Em outras palavras, um instrumento
fácil de carregar quando o anti-semitismo tornava-se insuportável e uma existência
nômade, de um canto a outro da Europa, se fazia necessária.
Fiquei
sabendo disso ao ler um texto de Arthur Dapieve para a revista Bravo, no qual
ele também falava sobre a restauração de violinos enterrados nos campos de
concentração nazistas. Talvez não exista imagem mais adequada para personificar
o “erguer e destruir coisas belas”: um instrumento capaz de tocar um Noturno de
Chopin escondido no âmago de uma máquina concebida para dizimar seres humanos
em escala industrial. Dói pensar naquelas vidas sem nome com seus violinos enterrados, provavelmente homens e mulheres de talento inimaginável, aniquiladas pelo que de mais estúpido e
devastador a humanidade produziu. Quantos gênios o nazismo transformou em nada?
Sabe-se que 6 milhões de judeus morreram na Segunda Guerra (número que se torna ainda mais absurdo se incluirmos os mortos de outras nacionalidades), o que dá uma idéia,
ainda que vaga, do que perdemos.
Hoje mais
cedo assisti a Um Método Perigoso, de David Cronenberg, e já no final, pouco
antes de subirem os créditos, apareceram as informações sobre o destino dos personagens
principais do filme, todos eles reais: Sabina Spielrein, mulher inteligentíssima, que de paciente
com sério desequilíbrio e amante de Jung se tornou uma brilhante psicanalista,
foi fuzilada pelo exército nazista junto com as duas filhas, em 1942. Como pôde
o mal invadir de tal forma o território da civilização? Como uma aberração como
Hitler chegou tão longe? Os mortos são muitos, mas vale recordar de alguns talentos
que sobreviveram para tentarmos mensurar o alcance da insânia nazista: lembro
de cara dos escritores Primo Levi, Imre Kertész e Elie Wiesel e do músico Wladyslaw Szpilman, que teve sua epopéia particular reconstituída
por Roman Polanski em O Pianista. Ao final do filme, já livre e de volta aos
estúdios de gravação, Szpilman toca justamente o Noturno de Chopin que ouvi no
carro com minha filha. Talvez não exista antídoto mais eficaz contra a
barbárie.