O argentino Juan
Gelman é um dos grandes poetas vivos da América Latina. E é admirável que tenha
conseguido escrever versos tão amorosos e cheios de lirismo após o ano de 1976,
quando a sua vida passou a ser ditada por uma busca – ou melhor: por três buscas.
Marcelo e Maria Claudia, filho e nora de Gelman, foram assassinados pelo
aparelho repressivo da brutal ditadura militar argentina. Durante 13 anos,
Marcelo foi dado como "desaparecido", até que finalmente seu corpo
foi achado e o pai pôde dar a ele uma sepultura digna. O corpo de Maria Claudia
ainda não foi encontrado, mas é bem provável que seja dela uma ossada
encontrada no mês passado em um quartel no Uruguai. A terceira busca se
encerrou em 2000, quando Macarena, a filha de Marcelo e Maria Claudia, foi
finalmente encontrada. Ela vivia com pais adotivos, simpatizantes do regime, a
quem fora entregue ainda bebê, e não sabia nada do seu passado.
Lembrei da
via-crúcis de Juan Gelman quando assisti na semana passada a O Dia em que não
Nasci, de Florian Cossen. Um filme espesso, doloroso, que tem seu ponto de
partida quando uma jovem alemã, Maria Falkenmayer, fica presa numa conexão em
Buenos Aires antes de chegar a Santiago, onde participaria de um torneio de
natação. Maria não fala espanhol, mas enquanto esperava a chamada para o vôo,
ouviu uma mãe cantar uma canção de ninar para o seu bebê. Uma canção em
espanhol. Maria reconheceu de imediato a letra e o seu significado, e aquilo a
intrigou a ponto de mal se conter em lágrimas. No decorrer da narrativa, Maria
vai descobrir que é mais uma das centenas de crianças cujos pais foram
assassinados pela ditadura e que acabaram adotadas. No caso dela, por um
sujeito que manteve estreita colaboração com o regime de Jorge Videla. Um
sujeito que, até então, ela amava e chamava de pai.
O Dia em que
não Nasci (o título original, em alemão, é Das Lied in Mir, algo como A Canção
em Mim) aborda um episódio de clara conotação política, mas o que mais me
comoveu nele foi a tragédia individual. Maria teve a sua infância – e, portanto, a
sua existência –
sonegada da maneira mais torpe. É como se tudo que ela viveu estivesse
assentado em um terreno pantanoso, sem vida própria. Apenas um simulacro de
memórias, como se ela fosse um daqueles andróides de Blade Runner, que guardam
fotos de crianças que não foram e lembram de acontecimentos que não
vivenciaram. A tragédia de Maria, desencadeada pelo que havia de mais íntimo
nela, o seu inconsciente, me fez lembrar de uma cena tristemente linda da
animação Enrolados, quando Rapunzel descobre que todos os desenhos que fez
quando estava presa na torre continham uma estrela, escondida entre outros traços e desenhada de maneira inconsciente. A mesma estrela que via
quando criança no palácio dos pais verdadeiros.
Já escrevi
aqui no blog sobre como a tragédia coletiva de uma ditadura pode levar a reboque
quem orbita em torno dela, e como é importante que um país reviva o seu
passado, exponha-o em carne viva para exorcizar o sofrimento de seu povo. Mas
aqui avanço sobre outro território: o quanto de nossa existência, de nossas
memórias mais remotas, nos é sonegado por nossos pais ou por aqueles com quem
convivemos? Até que ponto nossas memórias são realmente nossas e até que ponto
nos foram incutidas? O que nos gerou: um ato de amor ou um ato de desespero? Há
algo que não sabemos, que ficou trancado na bruma do passado ou que nos poupam
de conhecer? Quem somos, afinal? O fato é que quanto mais avançamos rumo ao
passado, mais nos perdemos em névoa espessa e desconhecimento de nós mesmos.
Uma vez
minha mãe me falou de uma senhora já idosa e doente que queria reencontrar a
filha que entregou para uma outra família, por não ter condição de criá-la. Ela
só guardava na memória a cena da garotinha sendo levada em um cavalo. Tentou
por meio de pessoas comuns encontrar a filha, mas depois eu fiquei sabendo que
a mãe adotiva, ao saber da procura, entrou em pânico e disse que a moça jamais
poderia saber que era filha adotiva e que passava por um momento pessoal delicado.
Com isso, o reencontro acabou não acontecendo, e à velha mãe verdadeira restou
apenas a imagem da garotinha no cavalo, indo embora. Aquilo me doeu, tanto que permaneceu
aqui guardado todo esse tempo. Voltando a Juan Gelman: uma vez eu o entrevistei
e ele, no meio de uma das respostas, afirmou que "uma infância feliz é a
pátria mais invulnerável". Pode ser. Mas até que ponto nossas infâncias
foram verdadeiramente felizes? No caso da Maria de O Dia em que não Nasci e da
neta do próprio Gelman, a pátria invulnerável se esfacelou ao ser invadida pela
verdade.
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