sábado, 23 de junho de 2012

Ritos de passagem



Uma amiga virtual – que conheci através deste espaço e da paixão comum por Scott Fitzgerald – escreve um blog no qual se dedica a contar histórias para sua filha ler quando for adulta. Creio que Este Lado do Paraíso também é, de certa forma, um lugar onde minha filha vai encontrar, quando crescer, uma faceta diferente do pai que sente por ela uma espécie de veneração. Um cantinho aconchegante, no qual minha voz chegará a ela através do silêncio cúmplice ou de revelações nunca ditas quando era a criança que ainda é. Devaneios, muitas vezes singelos, de um homem que tateia no escuro em busca de uma lanterna, um lastro no qual apoiar seus questionamentos vãos, seus sentimentos aflorados ou latentes, suas dúvidas cada vez mais avassaladoras.

Por mais disparatados que sejam os assuntos contidos aqui no blog, algo os une e se expressa nas entrelinhas: uma obsessão em deixar um legado, um pequeno rol de princípios morais que sirvam de farol para a pessoa que mais amo, por mais que a luz desse farol esteja em alguns momentos opaca e oculte as pedras sob a maré. Há um mundo por desbravar lá fora, e ela já ensaia alguns olhares para além do ninho, como deve ser. Achei que esse momento me assustaria, o do rito de passagem da infância para as dores e delícias da juventude, mas me vejo tranquilo, observando a lenta metamorfose se operando sobre o seu corpo – hoje mais esguio e sinuoso, com ossatura mais saliente – e sobre o rosto que já desvela a mulher que ela se tornará, por mais que ainda conserve a doçura infantil e os dentes de leite que ainda teimam em amolecer e cair – e que eu mesmo extraio, me revelando um improvável dentista.

Em minha filha, o ritual de iniciação não vem se manifestando como ruptura, antes como um processo harmônico e natural, ao contrário do meu, que foi de certa forma traumático. Gosto de assistir a essa transformação, assim como gosto de sentir o cheiro dos seus cabelos quando a beijo na testa e a aninho junto de mim. Ou quando brinco com seu gosto musical, fazendo troça dos seus artistas preferidos, e ela sorri, dizendo que são muito melhores que “esse tal de Miles Davis”. São mesmo. Nada como os ídolos da juventude, os primeiros espelhos, só que inatingíveis, para que possamos desenvolver a própria identidade, firmar nossos pés no mundo que se anuncia. Então chegará a vez de a vida envolvê-la e lançá-la em território desconhecido, como faz com as jovens leoas, águias e tartarugas. Eu estarei aqui, espero, observando encabulado o curso natural da existência e escrevendo textos como este, meio tolos e derramados, que com os anos ganharão um tempero extra de saudade. Saudade de um tempo em que fomos muito felizes.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Carrascos?



Às vezes, caio de pára-quedas em rodas de conversas com pessoas mais ou menos conhecidas, para cumprir obrigações sociais. Nessas ocasiões (nas quais meu lado introspectivo sofre como um goleiro diante do pênalti), costumo ouvir coisas que provocam em mim uma aversão imediata. São frases do tipo "tem que matar mesmo" ou "por mim, bandido tem mais é que morrer". Essa aversão é fruto do meu caráter racional e humanista, cultivado ao longo de décadas, nas quais edifiquei meus próprios princípios. O problema é que esses princípios estão assentados em terreno movediço. Sujeitos, portanto, a abalos eventuais.

Afinal, como não pensar em rever nossos conceitos quando nos deparamos com episódios plenos de barbárie, como aquele envolvendo a mulher que matou e esquartejou o marido? Ou o pai que estuprou as filhas gêmeas de dois anos e matou uma delas? Ou, ainda, a quadrilha que enforcou um casal de trabalhadores para roubar 6 mil reais, no velho golpe da venda de um imóvel inexistente? O que merecem pessoas assim? Pergunto a mim mesmo, sem que a resposta adquira a convicção das frases que ouço nas tais rodas de conversa. Mas, por outro lado, também não me entusiasmo com minha própria convicção de que criminosos devem pagar de acordo com as leis frouxas do país.

Sou, filosoficamente, a favor da pena de morte. Mas, repito, filosoficamente. Em um país ideal, imune a ingredientes como miséria maciça, acesso fácil a armamentos, justiça suspeita e corrupção desenfreada. Num cenário como esse, o fato de alguém matar deliberadamente outro ser humano deveria ser passível de punição máxima, afinal, é uma vida que foi tirada, muitas vezes por motivos esdrúxulos. Um exemplo claro? Anders Behring Breivik, que assassinou 77 pessoas em uma das sociedades mais avançadas do mundo. Lá, ele teria (como está tendo) um julgamento justo e sem pressão popular exacerbada. O que ele merece? Para mim, sem sombra de dúvida, uma execução. Da mesma forma que Timothy McVeigh, outro maníaco de extrema direita, que explodiu um prédio em Oklahoma e recebeu em troca uma injeção letal nos Estados Unidos.

Mas... e quanto aos criminosos brasileiros que listei acima? A resposta, sincera e claudicante, é: não sei. Temo um estado de barbárie, onde a justiça comece a ser feita com base no clamor das ruas. Até porque a nossa sociedade permite, mesmo que de forma escamoteada, a execução sumária de milhares de pessoas a cada ano. Acima de tudo, desprezo o sentimento que vislumbro nas frases tipo "tem que morrer devagarzinho, sob tortura". A vingança é um estado de espírito alterado, constituído de um prazer sádico que não compreendo. Mas é um dilema de difícil solução, no qual nosso lado racional convive em permanente disputa com o que temos de mais primitivo: o sentimento de preservação da espécie. Quando alguém mata, sobretudo uma criança, está invadindo um território sagrado da humanidade, daí as reações tão instintivas. Dostoievski e Camus já trataram desse tema com muito mais propriedade e profundidade em Crime e Castigo e O Estrangeiro.

Enfim, não gosto de convicções sedimentadas, porque tendem a virar dogmas e adquirir a forma de preconceitos. É o caso dos paladinos do justiçamento, os carrascos midiáticos ou não que vêem no bandido apenas uma deturpação da espécie, uma aberração que deve ser extirpada da civilização. Uma visão simplista, preguiçosa e obtusa. Mas por que, em alguns momentos diante de um jornal ou de uma tela de tevê, nós nos pegamos pensando de um jeito parecido? O que atiça em nós o ódio irracional? O que nos faz bradar como bárbaros, pedindo a morte de tipos abjetos como o casal Nardoni ou o goleiro Bruno? Talvez seja pelo fato de que a existência, assim, como a vida em sociedade, não é algo homogêneo, sem meios-tons, com lados bem definidos. Compartilho aqui essas dúvidas justamente por isso. Porque meus princípios também possuem seus meios-tons, sua ética própria, que avança e retrocede ao sabor da maré.