Uma amiga
virtual – que conheci através deste espaço e da paixão comum por Scott
Fitzgerald – escreve um blog no qual se dedica a contar histórias para sua filha ler quando for adulta. Creio que Este Lado do Paraíso também é, de certa forma, um lugar onde minha
filha vai encontrar, quando crescer, uma faceta diferente do pai que sente por
ela uma espécie de veneração. Um cantinho aconchegante, no qual minha voz
chegará a ela através do silêncio cúmplice ou de revelações nunca ditas quando era
a criança que ainda é. Devaneios, muitas vezes singelos, de um homem que tateia
no escuro em busca de uma lanterna, um lastro no qual apoiar seus
questionamentos vãos, seus sentimentos aflorados ou latentes, suas dúvidas cada
vez mais avassaladoras.
Por mais disparatados que sejam os assuntos
contidos aqui no blog, algo os une e se expressa nas entrelinhas: uma obsessão em
deixar um legado, um pequeno rol de princípios morais que sirvam de farol para
a pessoa que mais amo, por mais que a luz desse farol esteja em alguns momentos
opaca e oculte as pedras sob a maré. Há um mundo por desbravar lá fora, e ela
já ensaia alguns olhares para além do ninho, como deve ser. Achei que esse
momento me assustaria, o do rito de passagem da infância para as dores e
delícias da juventude, mas me vejo tranquilo, observando a lenta metamorfose se
operando sobre o seu corpo – hoje mais esguio e sinuoso, com ossatura mais
saliente – e sobre o rosto que já desvela a mulher que ela se tornará, por mais
que ainda conserve a doçura infantil e os dentes de leite que ainda teimam em amolecer
e cair – e que eu mesmo extraio, me revelando um improvável dentista.
Em minha filha, o ritual de iniciação não
vem se manifestando como ruptura, antes como um processo harmônico e natural,
ao contrário do meu, que foi de certa forma traumático. Gosto de assistir a essa
transformação, assim como gosto de sentir o cheiro dos seus cabelos quando a
beijo na testa e a aninho junto de mim. Ou quando brinco com seu gosto musical,
fazendo troça dos seus artistas preferidos, e ela sorri, dizendo que são muito
melhores que “esse tal de Miles Davis”. São mesmo. Nada como os ídolos da
juventude, os primeiros espelhos, só que inatingíveis, para que possamos
desenvolver a própria identidade, firmar nossos pés no mundo que se anuncia. Então chegará a vez de a vida envolvê-la e lançá-la em território desconhecido, como faz com as
jovens leoas, águias e tartarugas. Eu estarei aqui, espero, observando encabulado
o curso natural da existência e escrevendo textos como este, meio tolos e derramados,
que com os anos ganharão um tempero extra de saudade. Saudade de um tempo em
que fomos muito felizes.