Tenho um interesse muito peculiar por cidades soterradas
pelo tempo. Fico intrigado ao ver programas de tevê que mostram expedições arqueológicas
desvendando segredos de civilizações ancestrais, encobertos por camadas e mais
camadas de terra e concreto. Gosto de saber da existência dos guerreiros de terracota, milhares de estátuas em tamanho natural que guardavam o mausoléu do imperador Qin, na China, e que só foram descobertos na década de 1970. Ou que em cidades como Cairo e
Alexandria, no Egito, qualquer obra subterrânea – seja uma extensão do metrô ou
uma instalação de tubulações de gás ou esgoto – acaba sempre revelando porções generosas
de passado. Antigos objetos de uso doméstico, afrescos, vestígios de antigas residências
ou mesmo corpos mumificados dentro de esquifes de ouro.
Assim como cidades são soterradas com o passar dos séculos, sociedades
inteiras também são. É uma parcela enorme da humanidade que deixa o mundo paulatinamente
para dar lugar a uma nova era. Mas não me refiro aqui às velhas civilizações da
idade antiga. Falo das pessoas que viveram há pouco menos de 200 anos em
cidades relativamente parecidas com estas em que vivemos. Tenho pensado nelas
ao ler os primeiros livros de James Joyce, Os Dublinenses e Retrato do Artista
quando Jovem. Seja nas desventuras em série do adolescente Stephen Dedalus ou
na festa de confraternização das velhas irmãs do conto Os Mortos, Joyce fala de
um mundo extinto: a Dublin de fins do século 19. São pessoas, comportamentos,
objetos e formas de lazer e diversão soterrados pela modernidade. Por um mundo
habitado por aviões a jato, telefones celulares, festas movidas a música
eletrônica e drogas sintéticas, computadores com internet, pendrives com
centenas de músicas e filmes e nada menos que seis bilhões de pessoas
espalhadas pela Terra.
O curioso de tudo isso é que, daqui a 200 anos, todos esses
seis bilhões de seres humanos estarão literalmente soterrados. Incluindo eu,
você e os bebês que acabam de nascer neste exato momento, seja em Roma, Porto
Príncipe, Tóquio ou num povoado esquecido do Sri Lanka. A dita modernidade de hoje dará
lugar a um mundo radicalmente diferente do nosso, que será relembrado por
alguém no futuro – do mesmo modo que faço agora – como um tempo tão exótico e
remoto quanto a Dublin de Joyce. Não por acaso, é dele a frase: “O mundo real, sólido,
em que os mortos tinham vivido e edificado, desagregava-se”. Joyce se referia
ao mundo de Gabriel e sua esposa, Gretta, personagens de Os Mortos. Após ouvir por
acaso uma canção há muito esquecida, Gretta se lembrara de um amor adolescente,
um garoto chamado Michael Furey, morto aos 17 anos. A reminiscência desse trecho
de juventude esquecido trouxe a tiracolo um misto de saudade e tristeza, que a
deixou prostrada.
Fico imaginando o que permanece de nós quando nos tornamos
invisíveis. Uma saudade que deixamos em nossos filhos e nossos amigos. Algo que
escrevemos e que se reproduz por um tempo entre leitores que não conhecemos.
Uma foto muito antiga que escapa das nossas gavetas e vai parar em um museu.
Mas, em seguida, tudo se aniquila. Nossas cidades serão soterradas, assim como
nossos corpos, nossa memória e nossos sentimentos. Vão passar os anos. Cem,
duzentos, mil anos. E então o século 21 se converterá numa espécie de
Mesopotâmia. Distante e desconhecido como o grito de um mudo num deserto de
areia.