sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Somos todos japoneses




Há alguns meses, um homem morreu eletrocutado aqui em Salvador. Foi uma morte lenta. Ele tropeçou e caiu em cima de um fio de alta tensão, que tinha sido lançado ao solo após um caminhão ter derrubado um poste. Ficou longos minutos tostando enquanto perdia aos poucos a consciência. O episódio, fartamente exibido em um jornal por um fotógrafo profissional que coincidentemente passava por ali, gerou uma discussão ética nas redes sociais, com pessoas condenando ou absolvendo o fotógrafo por registrar sem retoques o fim de uma vida. Mas o que me deixou chocado nessa história toda foi outro fato, que passou despercebido nas discussões: uma das fotos mostrava o público que observava o acontecimento. Praticamente todas as pessoas ali filmavam ou fotografavam com seus celulares o homem morrer. O olhar deles era vazio, e havia um profundo fastio naquelas expressões. Eles registravam aquilo como se registrassem, sei lá, um congestionamento numa rua ou um funcionário do almoxarifado fazendo o seu trabalho.

Esse acontecimento me voltou à tona quando li um artigo de Umberto Eco, que tem como tema a maneira excessiva com que as pessoas registram tudo em máquinas fotográficas ou filmadoras, sobretudo após a disseminação dos celulares com câmeras. Na parte final do texto, Eco relembra o impacto que sofreu ao presenciar, quando tinha 11 anos, a morte de uma mulher que acabara de ser atropelada. Era a primeira vez que ele presenciava a morte, a dor e o desespero. “O que teria acontecido se eu tivesse um celular equipado com uma câmera de vídeo, como todo menino tem hoje? Talvez tivesse registrado a cena para mostrar a meus amigos que eu estive lá. E talvez tivesse publicado meu tesouro visual no YouTube, para delícia de outros devotos do ‘schadenfreude’. Depois disso, quem sabe? Se tivesse continuado a registrar esses infortúnios, poderia ter-me tornado totalmente indiferente ao sofrimento dos outros. Em vez disso, preservei tudo em minha memória. Setenta anos depois, a imagem mental daquela mulher continua me assombrando e, de fato, me ensinou a empatizar com o sofrimento dos outros em vez de ser indiferente a ele.

É muito perceptível, na sociedade de hoje, essa indiferença a que o escritor italiano se refere. E não apenas em relação à dor dos outros. Uma espécie de enfado coletivo parece guiar uma civilização que avança no piloto automático, olhando apenas para a frente. Não vou me estender aqui em discussões sobre a insensibilidade social ou o individualismo ferrenho que vemos em qualquer esquina. Falo apenas dessa apatia generalizada, que Eco traduziu perfeitamente na associação que fez com a obsessão contemporânea por registros visuais. Lembro que antigamente sacaneávamos com os turistas japoneses pelo costume que tinham de fotografar e filmar incessantemente os lugares que visitavam, em vez de realmente sentirem a atmosfera do local, suas peculiaridades, seus cheiros, suas cores. Para eles, a viagem começava quando voltavam para casa e conectavam a filmadora na tevê.

De certa forma, estamos virando japoneses, só que infelizmente sem a polidez e o recato característico deles. Cada vez mais filmamos tudo, fotografamos tudo, compartilhamos tudo nas redes sociais. Cada vez mais sentimos um vazio quando, ao invés de apreciarmos a apresentação dos nossos filhos no palco da escola, nos preocupamos em filmar toda a apresentação com nossos smartphones. Vemos o mundo através de uma telinha minúscula, e é com esse filtro que nos conectamos com a vida real e, de certa forma, nos protegemos dela. Ressalto: acho positivo que tenhamos acesso a tecnologias que nos permitem captar tantas coisas em um curto espaço de tempo e compartilhá-las com quem gostamos. Mas há uma perda aí, que ainda não consigo saber exatamente qual é. Apenas tenho a vida alheia cada vez mais próxima da minha retina, e isso turva a minha visão.

6 comentários:

Unknown disse...

Fantástico, Paulo.
Tenho o mesmo sentimento, apesar de ter uma quase onipresença online por causa do trabalho e dispositivos para registro à minha disposição.
Raros e prazerosos são os momentos que estou desconectado. Antes me sentia deslocado e desatualizado. Depois de alguns exercícios de vida real, voltei a buscar mais e mais momentos offline. Às vezes as máquinas estão ligadas mas eu estou distante delas.
Sempre que posso, estou longe da tela. De todas as telas.

Paulo Sales disse...

Valeu, Laert
As telas e o que elas nos proporcionam trazem a tiracolo uma série de aspectos positivos: ficamos mais próximos de quem gostamos ou admiramos e os registros da nossa curta passagem pela Terra ficam muito mais arraigados no tempo. O problema são os efeitos colaterais, essa passividade, esse fastio que hoje movem milhões de pessoas. O acesso à informação está gerando, paradoxalmente, pessoas cada vez mais ignorantes.
Grande abraço.

Zatonio Lahud disse...

Engraçado, meses atrás comentei sobre isso com um amigo em um jogo Botafogo no Engenhão: na hora do gol muitas pessoas não comemoram mais, preocupadas em filmar ou fotografar com seus celulares. Belo texto!

Paulo Sales disse...

Obrigado, Zatonio
Tenho a impressão de que as emoções genuínas estão sumindo, sendo substituídas por um simulacro de alegria, prazer ou reflexão. Isso de filmar o gol me parece essa moda de filmar a própria transa em vez de transar. O prazer está no depois, não no instante.
Grande abraço.

ArmundoAlves disse...

Início da adolescência, passava pela praça principal ao voltar da agência dos Correios de minha cidadezinha no interior da Bahia, quando um senhor jogou algo no corpo (álcool ou gasolina) e riscou o fósforo. As chamas logo tomaram o corpo e ele pulava e gritava até cair e pedir a um amigo que o matasse. A idade avançada, felizmente, não o deixou sofrer muito. Morreu antes de chegar ao hospital.

Uma cena como essa, pavorosa, tristíssima, de grande pesar, não teria esses atributos diante da obsessão pelo registro fútil, facebookeiro. Os amigos que se arremessaram com suas camisas e casacos tentando aplacar as chamas seriam apenas estorvos a atrapalhar a qualidade das imagens, inclusive do ponto de vista dos profissionais que por ventura estivessem a passar.

Desculpe a reminiscência pessoal e o pessimismo.

Paulo Sales disse...

Não tem o que desculpar, Armundo, pelo contrário: eu que agradeço o comentário.
Há algo de voyeurístico no mundo atual que me incomoda, assim como incomoda você e Umberto Eco. Uma insensibilidade que me cansa.
Grande abraço.