Há alguns meses, um homem morreu
eletrocutado aqui em Salvador. Foi uma morte lenta. Ele tropeçou e caiu em cima
de um fio de alta tensão, que tinha sido lançado ao solo após um caminhão ter
derrubado um poste. Ficou longos minutos tostando enquanto perdia aos poucos a
consciência. O episódio, fartamente exibido em um jornal por um fotógrafo
profissional que coincidentemente passava por ali, gerou uma discussão ética
nas redes sociais, com pessoas condenando ou absolvendo o fotógrafo por
registrar sem retoques o fim de uma vida. Mas o que me deixou chocado nessa
história toda foi outro fato, que passou despercebido nas discussões: uma das
fotos mostrava o público que observava o acontecimento. Praticamente todas as
pessoas ali filmavam ou fotografavam com seus celulares o homem morrer. O olhar
deles era vazio, e havia um profundo fastio naquelas expressões. Eles
registravam aquilo como se registrassem, sei lá, um congestionamento numa rua
ou um funcionário do almoxarifado fazendo o seu trabalho.
Esse acontecimento me voltou à tona quando
li um artigo de Umberto Eco, que tem como tema a maneira excessiva com que as
pessoas registram tudo em máquinas fotográficas ou filmadoras, sobretudo após a
disseminação dos celulares com câmeras. Na parte final do texto, Eco relembra o
impacto que sofreu ao presenciar, quando tinha 11 anos, a morte de uma mulher
que acabara de ser atropelada. Era a primeira vez que ele presenciava a morte, a dor e o desespero. “O que teria
acontecido se eu tivesse um celular equipado com uma câmera de vídeo, como todo
menino tem hoje? Talvez tivesse registrado a cena para mostrar a meus amigos
que eu estive lá. E talvez tivesse publicado meu tesouro visual no YouTube,
para delícia de outros devotos do ‘schadenfreude’. Depois disso, quem sabe? Se
tivesse continuado a registrar esses infortúnios, poderia ter-me tornado
totalmente indiferente ao sofrimento dos outros. Em vez disso, preservei tudo
em minha memória. Setenta anos depois, a imagem mental daquela mulher continua
me assombrando e, de fato, me ensinou a empatizar com o sofrimento dos outros
em vez de ser indiferente a ele.”
É muito perceptível, na sociedade de
hoje, essa indiferença a que o escritor italiano se refere. E não apenas em
relação à dor dos outros. Uma espécie de enfado coletivo parece guiar uma civilização
que avança no piloto automático, olhando apenas para a frente. Não vou me
estender aqui em discussões sobre a insensibilidade social ou o individualismo
ferrenho que vemos em qualquer esquina. Falo apenas dessa apatia generalizada,
que Eco traduziu perfeitamente na associação que fez com a obsessão contemporânea
por registros visuais. Lembro que antigamente sacaneávamos com os turistas japoneses
pelo costume que tinham de fotografar e filmar incessantemente os lugares que
visitavam, em vez de realmente sentirem a atmosfera do local, suas
peculiaridades, seus cheiros, suas cores. Para eles, a viagem começava quando voltavam
para casa e conectavam a filmadora na tevê.
De certa forma, estamos virando
japoneses, só que infelizmente sem a polidez e o recato característico deles.
Cada vez mais filmamos tudo, fotografamos tudo, compartilhamos tudo nas redes
sociais. Cada vez mais sentimos um vazio quando, ao invés de apreciarmos a apresentação
dos nossos filhos no palco da escola, nos preocupamos em filmar toda a
apresentação com nossos smartphones. Vemos o mundo através de uma telinha
minúscula, e é com esse filtro que nos conectamos com a vida real e, de certa
forma, nos protegemos dela. Ressalto: acho positivo que tenhamos acesso a
tecnologias que nos permitem captar tantas coisas em um curto espaço de tempo e
compartilhá-las com quem gostamos. Mas há uma perda aí, que ainda não consigo
saber exatamente qual é. Apenas tenho a vida alheia cada vez mais próxima da
minha retina, e isso turva a minha visão.
6 comentários:
Fantástico, Paulo.
Tenho o mesmo sentimento, apesar de ter uma quase onipresença online por causa do trabalho e dispositivos para registro à minha disposição.
Raros e prazerosos são os momentos que estou desconectado. Antes me sentia deslocado e desatualizado. Depois de alguns exercícios de vida real, voltei a buscar mais e mais momentos offline. Às vezes as máquinas estão ligadas mas eu estou distante delas.
Sempre que posso, estou longe da tela. De todas as telas.
Valeu, Laert
As telas e o que elas nos proporcionam trazem a tiracolo uma série de aspectos positivos: ficamos mais próximos de quem gostamos ou admiramos e os registros da nossa curta passagem pela Terra ficam muito mais arraigados no tempo. O problema são os efeitos colaterais, essa passividade, esse fastio que hoje movem milhões de pessoas. O acesso à informação está gerando, paradoxalmente, pessoas cada vez mais ignorantes.
Grande abraço.
Engraçado, meses atrás comentei sobre isso com um amigo em um jogo Botafogo no Engenhão: na hora do gol muitas pessoas não comemoram mais, preocupadas em filmar ou fotografar com seus celulares. Belo texto!
Obrigado, Zatonio
Tenho a impressão de que as emoções genuínas estão sumindo, sendo substituídas por um simulacro de alegria, prazer ou reflexão. Isso de filmar o gol me parece essa moda de filmar a própria transa em vez de transar. O prazer está no depois, não no instante.
Grande abraço.
Início da adolescência, passava pela praça principal ao voltar da agência dos Correios de minha cidadezinha no interior da Bahia, quando um senhor jogou algo no corpo (álcool ou gasolina) e riscou o fósforo. As chamas logo tomaram o corpo e ele pulava e gritava até cair e pedir a um amigo que o matasse. A idade avançada, felizmente, não o deixou sofrer muito. Morreu antes de chegar ao hospital.
Uma cena como essa, pavorosa, tristíssima, de grande pesar, não teria esses atributos diante da obsessão pelo registro fútil, facebookeiro. Os amigos que se arremessaram com suas camisas e casacos tentando aplacar as chamas seriam apenas estorvos a atrapalhar a qualidade das imagens, inclusive do ponto de vista dos profissionais que por ventura estivessem a passar.
Desculpe a reminiscência pessoal e o pessimismo.
Não tem o que desculpar, Armundo, pelo contrário: eu que agradeço o comentário.
Há algo de voyeurístico no mundo atual que me incomoda, assim como incomoda você e Umberto Eco. Uma insensibilidade que me cansa.
Grande abraço.
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