Às vezes, passamos anos esperando que algo aconteça e,
quando ele finalmente chega até nós, nos damos conta de que veio tarde demais.
O impacto que poderia causar se apresenta amortecido, convertido em um ligeiro
sussurrar sobre nossas reminiscências, meio que dizendo: “Lembra de quem você era?”.
Acho que foi mais ou menos isso que senti quando deixei o cinema após assistir a
Na Estrada, filme de Walter Salles baseado no clássico beat On the Road, de
Jack Kerouac. Não é um livro qualquer, ao menos para mim. Como já escrevi
algumas vezes aqui no blog, On the Road foi uma centelha que durante anos
povoou o meu imaginário. Ele estava lá aos 17 anos, quando minha adolescência se
liquefazia numa zona permanente de desconforto e inadequação. E, três anos mais
tarde, foi o guia que me levou a paragens distantes, me permitindo vivenciar
experiências que moldaram parte importante da minha personalidade.
Dito tudo isso, a principal substância que posso extrair da
experiência de ter assistido a Na Estrada – e seria impossível viver essa
experiência sem qualquer envolvimento afetivo – é a saudade de um tempo
particularmente feliz da minha vida. Mas um tempo que, por outro lado, ficou
definitivamente para trás, como uma antiga paixão a quem reencontramos e nos
damos conta de que a brasa virou cinza. Posso me despedir dela agora e está
tudo bem, cada um segue o seu caminho sem mágoas ou feridas mal cicatrizadas.
Muita coisa veio à tona. Percebi, nas falas em off que reproduziam trechos do
romance, o quanto tentei escrever como o velho Jack naquela época. Diversas
cenas me transportaram para o passado e provocaram uma nostalgia aconchegante,
como uma casa de avós queridos à qual voltamos depois de muito tempo: a
vastidão sem fim, as paisagens que se sucedem à margem das rodovias, a névoa do
início da manhã, o tempo sem pressa, a solidão avassaladora e uma valorosa
sensação de liberdade.
Mas o fato é que Na Estrada produziu em mim mais
distanciamento e contemplação do que envolvimento e encanto, e continuo sem
saber se isso é um defeito do filme ou um efeito perverso da passagem do tempo
sobre os meus ingênuos ideais dos 20 anos. Jovens praticando pequenos delitos,
transando de forma quase desesperada e se drogando com benzedrina dizem muito
pouco a mim hoje. Senti falta, também, de algo que me fascinava no livro: o
culto às figuras sagradas, aos vagabundos sem nome, aos americanos comuns
cheios de bons sentimentos e mesmo aos companheiros de estrada que borrifavam
vida por todos os poros e partiam em busca da própria verdade. Onde foi parar o
senso de urgência, a necessidade vital de expansão para além dos próprios
limites? Onde foram parar o Paradise e o Dean que nos inspiraram a pedir
caronas e viajar em boléias de caminhão país afora?
Um vácuo existencial parece mover os personagens. Uma
sensação de vazio que em alguns momentos ultrapassa a tela e atinge o
espectador, como me atingiu. Depois de pensar um pouco, enquanto dirigia de
volta para casa, me dei conta de que a narrativa pareceu reproduzir na tela não
o livro de Jack Kerouac, mas sim o processo criativo e as experiências que
permitiram a ele escrever o livro. Como uma espécie de making of, um On the
Road lido retrospectivamente, através do qual é possível perceber os 55 anos que
separam o livro do filme. Dean e Marylou parecem se mover permanentemente em
busca de algo que não conseguimos apreender. Passam a impressão de ansiar por
uma vida estável, careta, a qual são incapazes de viver em plenitude. A
pergunta é: o livro era assim? São 20 anos que me separam das seguidas leituras
de minha bíblia querida de juventude, e precisaria voltar a ela para conferir.
Tiro o livro da estante e o folheio com cuidado e carinho. O
mesmo velho e carcomido volume publicado pela Brasiliense que levei algumas
vezes comigo para a estrada, onde relia os trechos preferidos enquanto
distâncias enormes eram consumidas em fogo brando. Leio o início e percebo que
o roteirista adulterou o conteúdo para estabelecer um paralelo entre os dois
protagonistas através dos efeitos da ausência paterna em ambos, mas nem sei se
isso faz alguma diferença. Folheio mais um pouco e em seguida fecho o livro.
Lembro agora de ter ficado feliz ao ouvir de novo nomes esquecidos, como Ed e Galatea
Dunkel, Carlo Marx, Old Bull Lee e tantos outros personagens que povoaram o meu
imaginário juvenil. Lembro também que me emocionei ao ouvir, na voz de Sam
Riley, o comovente trecho final do livro, que reli tantas vezes e que ouvi outras
tantas recitado pelo próprio Kerouac. Havia, naquele final, um esboço do que o
filme de Walter Salles poderia ter sido e não foi: um divisor de águas na
trajetória de milhares de jovens atônitos, inseguros e loucos por uma aventura.
6 comentários:
Tocante seu post, compadre. Acabei, por aflição da curiosidade, assistindo com Isa o filme no sábado, uma experiência a mais que a sua. Afinal, os filhos hoje, tem ainda menos ou referência alguma do sentido da liberdade que tínhamos. Mas saí emocionada. Claro, há o hiato de 55 anos que salta da tela. Mas há a tentativa de Salles da atemporalidade, como consolidação do clássico difícil de se tocar. Gostei muito do filme e não enxergo defeito. É uma homenagem bem construída, bem feita, bem dirigida, bem filmada. Ao final, o que resta, para quem leu é: "fomos inocentes em buscar a liberdade sem limites". Para quem não leu (ou viveu) é: "há de se viver intensamete sim, mas limites são necessários". Beijo.
Sim, as referências são fundamentais, comadre. Mas tenho a impressão de que fomos a última geração a ser atingida em cheio pelo universo beat.
Em relação ao filme, quanto mais distancio dele, menos ele me emociona. Achei reverente demais, frio demais, embora seja lindamente filmado, como você disse. Algo muito diferente da experiência de ler o livro, com toda aquela pulsação, aquela fome de vida. Mas o fato é que cada um tem seu próprio On the Road na cabeça.
Um beijo.
Ainda não vi o filme (vou amanhã), mas pelos comentários gerais da crítica e de Paulinho aqui, o que eu já previa acabou se confirmando: WS não é nem nunca foi o cara para dirigir um filme como esse. Ele é um diretor essencialmente técnico (nada contra essa característica em si), que pensa 300 mil vezes antes de posicionar a câmera e filmar. Técnico demais, cabeça demais e por fim, chato demais - tudo o que um diretor para adpatar esse livro não deve ser. Bem filmado, qualquer cineasta recém formado nas boas faculdades de cinema dos EUA é capaz de fazer. Ou até mesmo qualquer diretor de comerciais de TV. Dar conta de uma tarefa gigantesca como esta, aí são outros quinhentos (mil). On The Road é impulso, paixão, velocidade, loucura. WS, com sua eterna cara de sono e palavreado rebuscado de Uspiano, me parece anos luz desse perfil. Mas amanhã vou conferir com meus próprios olhos. Quem sabe, com minhas expectativas já tão baixas, eu acabe até gostando....
É, Poetinha, acho que você está certo, embora enxergue virtudes no trabalho de Walter como cineasta. O problema é que falta alma, aquela coisa viva e pulsante que nos levava ao fascínio. Na Estrada é bonito, contemplativo, e só. Faltam vários pedaços para que atinja um todo consistente.
Um abraço.
Sem dúvida, uma jogada arriscada de Walter Sales filmar o livro-ícone de uma coisa que não existe mais (há algum tempo), mas que deixou fundas impressões que nortearão com rigor a análise do filme. Mas, quem filmaria adequadamente, o Coppola de "Vidas Sem Rumo"? Não importa quem, não existem nomes, o que existe é o tempo entre a escrita e a filmagem, infinitos 55 anos. Quem leu o livro à época, nos 60, nos 70 ou nos 80, percebia ali uma inquietude e um chamado. Sales fez o filme para esses e sabe que não tem a menor possibilidade de chegar nem perto de provocar alguma coisa parecida, daí a sua coragem. A mensagem pode até ser a mesma, mas o destinatário dela está em outra dimensão temporal, que condiciona a decifração.
Sim, Armundo, como disse em um comentário acima, acho que a geração nascida nos anos 70 foi a última a sofrer o impacto do ideário beat. Hoje tudo aquilo soa extemporâneo. E, claro, Walter foi acima de tudo corajoso ao aceitar a empreitada. Gosto dele, do seu olhar contemplativo, da emoção genuína que provocou em mim por filmes como Central do Brasil e Terra Estrangeira.
Por outro lado, acho que faltou a ele um pouco mais de "rebeldia", de furor juvenil ao captar o espírito do livro. Algo que poderíamos, sim, encontrar no Coppola de Vidas sem Rumo e O Selvagem da motocicleta ou no Gus Van Sant de Drugstore Cowboy e Garotos de programa - que obviamente náo existem mais. Faltou a transgressão estética, por mais que vejamos no filme a transgressão comportamental. Por isso ela soa (ao menos para mim) tão anódina.
Grande abraço e obrigado pelo comentário.
Postar um comentário