“As pessoas não eram diferentes naquela época do que sempre
foram e sempre serão. Garotas ficam com o coração partido. Homens e mulheres
sofrem sozinhos pelas próprias escolhas que fizeram. E garotos muito confusos,
cheios de medo, de amor e de coragem, crescem furtivamente na calada da noite”.
Está lá, no final de um episódio particularmente comovente de Anos Incríveis,
uma série de tevê que continuo adorando, por mais que os anos passem, e que voltei a
assistir agora há pouco. Há muito de mim em Kevin Arnold, o garoto sensível que
cresce em um subúrbio norte-americano tentando tatear o mundo à sua volta. Um
mundo que mudava com a velocidade de um Sputnik cruzando os céus naquela década
de profundas convulsões sociais,
comportamentais e políticas: os anos 60.
Vejo Kevin e vejo a mim mesmo, um menino nascido de tempos
duros, buscando vislumbrar para além do porto seguro e enxergando perplexo a
brutalidade do mundo lá fora. Um menino ensimesmado, filho de pais batalhadores
e amorosos, que tentavam abarcar para mim, dentro de suas próprias limitações,
a complexidade de existir. Sou acima de tudo um homem do século 20. Um herdeiro
da Guerra Fria, do golpe militar, de um país que enfim deixava de ser rural
para abraçar sem amarras a urbanidade, com suas avenidas repletas de Fuscas,
Brasílias e Corcéis. Seus terrenos baldios a perder de vista que aos poucos se
convertiam em favelas. Seus jovens casais que fumavam Hollywood mas não
encontravam o sucesso. Sou um homem nascido em 1970, apenas 25 anos depois de
encerrada a guerra que dizimou o continente responsável por gestar o que
conhecemos por civilização. Sim, nasci apenas 30 anos depois da Alemanha
nazista. E apenas 20 anos antes de Ruanda, Sérvia, Serra Leoa.
Nasci há tão pouco tempo e por vezes me sinto um velho.
Afinal, os tempos estão mudando, como cantou Bob Dylan em The Times they’re
a-changing, que ouço agora enquanto bebo um vinho e tento uma transmutação rumo
ao meu paleolítico particular. Hoje, como também disse Dylan, criticamos o que
não conhecemos. É nítida a nostalgia, a saudade de outros tempos, embora esses
tempos não tenham sido necessariamente idílicos. Mas ao menos havia uma redoma,
um escudo protetor. Sou fruto de tempos tristes, e a eles me agarro como à
última madeira flutuando à minha frente, como se o futuro fosse tóxico e o
presente, incompreensível.
Não sei onde quero aterrissar. Talvez tudo se resuma aos velhos
questionamentos que insistem em nos fustigar desde eras imemoriais: de onde
viemos, quem somos, para onde vamos? Gerações vão se suceder, nações vão surgir
e submergir e nós continuaremos crescendo furtivamente na calada da noite, com
os olhos abertos, tentando compreender o que fazemos aqui, sem que qualquer
epifania venha nos trazer consolo ou redenção. Está tudo acabado agora, Baby Blue.
2 comentários:
Paulinho, é sempre tão bom ler os seus textos, tão profundos e emocionantes. Também há muito de mim em Kevin. Beijos
Karlinha,
Só posso dizer que também é muito bom chegar em casa, cansado e feliz após ver On the Road no cinema, e encontrar um comentário como esse aí de cima. Obrigado.
E, sim, Kevin está em todos os garotos e garotas muito confusos, cheios de medo, amor e coragem, que cresceram furtivamente na calada da noite.
Um beijo.
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