sexta-feira, 6 de julho de 2012

Contra a multidão




Algum tempo atrás, conversava com dois casais de vizinhos do prédio onde moro. Papo descontraído e despretensioso, que em dado momento enveredou para as mazelas cotidianas que enfrentamos em nossa cidade e em nosso país. Comentei que vivíamos sob vários aspectos uma época de degeneração social. Um dos meus interlocutores complementou: "O maior problema são esses gays. Esse negócio de gay em todo lugar, querendo casar, fazer passeata". Aquilo me assustou, mas em seguida, a moça do outro casal confirmou o diagnóstico: "É isso mesmo. Uma coisa horrível. Aqui mesmo no prédio tem duas. Outro dia peguei elas se abraçando na garagem". Tentei argumentar, dizendo que não me referia a isso quando falava em degeneração social, acrescentando que para mim o homossexualismo estava longe de ser um problema, tinha amigos gays, etc. A moça respondeu: "Tenho medo por minha filha, de ela crescer vendo essas coisas".

O clima pesou um pouco. Naquele momento, percebi que a minha relação com os casais deveria prosseguir no mesmo grau de superficialidade em que se mantivera até ali. Um amistoso "boa noite, tudo bem com você?" na porta do elevador e vida que segue. Ressalto que aceito outras visões de mundo, mesmo que sejam radicalmente opostas à minha. Aceito até certo ponto os preconceitos alheios, mesmo porque tenho também os meus, que carrego como um estorvo. Mas havia, embutida naquelas frases, algo mais grave: uma não-aceitação de outros seres humanos. Não se tratava apenas de não gostar de determinado comportamento, mas sim de repudiar a existência de quem pratica tal comportamento. Pensei de imediato na Alemanha nazista, onde as pessoas eram mortas não por pensarem, sei lá, que o nazismo era uma estultice qualquer que não deveria ser levada a sério. Eram mortas porque existiam.

Esse tipo de pensamento expelido durante a conversa poderia ser apenas resultado de uma forte influência religiosa ou de uma formação moral um pouco mais rígida. Poderia ter nascido, digamos, da aversão aos trejeitos festivos que são o clichê comportamental dos gays. Até aí tudo bem. O problema é que esse tipo de pensamento tem servido para criar um certo conformismo diante de episódios chocantes. O último deles foi a morte de um rapaz de 22 anos, que estava abraçado ao seu irmão gêmeo e foi espancado por um grupo que os confundiu com um casal gay. Quando um fato como esse acontece e acontece com frequência estarrecedora , há algo de muito errado na sociedade. Uma sociedade que, em sua maioria, pensa como os meus vizinhos. E que, em uma parcela bem mais reduzida, age violentamente com base nas mesmas premissas.

É sintomático que o acirramento das manifestações homofóbicas esteja estreitamente ligado às conquistas recentes dos homossexuais no terreno dos direitos humanos. Não lembro (e posso estar totalmente enganado a esse respeito) de casos tão corriqueiros de ataques a gays nas grandes cidades. Era algo comum em rincões conservadores, com população pequena, mas não numa Avenida Paulista. Do mesmo modo, nunca soube de nada semelhante ao projeto de lei do deputado goiano que propõe a legalização da "cura gay". Claro que não vai passar no Congresso, mas não deixa de ser um retrocesso e tanto.

É algo que me assusta. Em 42 anos de vida, construí convicções que foram se sedimentando ou se diluindo enquanto crescia e me lançava à vida real, para além do mundo ideal da família. Um processo complicado, no qual você precisa abandonar tolices há muito arraigadas na consciência e consolidar seu olhar particular sobre o mundo. O preconceito contra os homossexuais foi uma dessas tolices, deixada de lado à medida que conhecia obras de grandes autores e conhecia grandes pessoas que tinham como denominador comum sentir atração e amor por iguais. Hoje, o preconceito não apenas de sexo, mas também de cor e de classe me entristece, me exaure, me exaspera. Como andar contra uma multidão de torcedores do time adversário vindo em sentido contrário. 

2 comentários:

Socorro Araújo disse...

Tenho pensado tanto nisso, Paulinho. E não só porque tenho vizinhos assim, e também amigos e pessoas que amo que pensam desse jeitinho mesmo. Mas também porque vejo, principalmente nas redes sociais, amigos que não têm esse tipo de preconceito, mas que reproduzem, em outras áreas, comportamentos tão ou mais preconceituosos. Se eu não acreditasse que, apesar de não parecer, estamos evoluindo, ia ficar com muito medo...

Paulo Sales disse...

Sim, Socorrinho, é algo que me preocupa também, justamente porque muitas pessoas fazem questão de conservar seus preconceitos, que se tornam bandeiras da sua forma de pensar. E é ainda mais complicado porque esses preconceitos, como você mesma disse, fazem parte de pessoas que gostamos.
Um beijo.