Woody Allen tem um pensamento interessante sobre o fato de
estarmos realmente sozinhos nesta aventura sem rumo pela Terra, e mesmo assim
procurarmos viver de acordo com premissas morais nas quais acreditamos: “Existe
uma porção de gente que escolhe levar a vida de um jeito completamente
autocentrado, homicida. Pensam assim: já que nada significa nada e eu posso me
dar bem com assassinato, vou fazer isso. Mas pode-se também fazer a escolha de
que estamos vivos, e outras pessoas estão vivas, e estamos juntos num bote
salva-vidas e é preciso tentar e fazer o bote ser o mais decente possível para
você e para todo mundo. E me parece que isso é muito mais moral, e até mesmo
muito mais ‘cristão’. Se você admite a terrível verdade da existência humana e
escolhe ser um ser humano decente diante dela, em vez de mentir para si mesmo
que vai haver uma recompensa ou um castigo celestial , isso me parece mais
nobre”.
Concordo com esse pensamento. E não me surpreendo quando vejo,
em pessoas sem Deus em suas vidas, uma visão de mundo profundamente altruísta. Por
outro lado, cada vez mais percebo o quanto as religiões, quase sem exceção, desde
as judaico-cristãs até as muçulmanas, estão estruturadas numa relação de causa
e efeito. Você faz o bem aqui e ganha lá na frente, ou melhor, no Juízo Final.
Ok, cada um pensa como quiser, desde que prevaleça a decência. Mas me preocupa
um pouco quando essa relação de causa e efeito é substituída por contratos de compra
e venda, como nas tais igrejas neopentecostais. Um paraíso a prestação, pode-se
dizer. O crente paga aos pastores – seja em dinheiro vivo ou em doações de veículos
e até casas – e ganha o amor de Jesus a perder de vista. Caso contrário, o
Todo-Poderoso se revoltará contra ele e desgraças das mais diversas cairão
sobre sua cabeça. Pensando bem, mais do
que um contrato de compra e venda, é uma relação de coerção.
Mas até algum tempo atrás, os seguidores dessas igrejas eram
os únicos prejudicados por esse conto do vigário espiritual. Eram eles que
perdiam boa parte dos rendimentos para enriquecer indivíduos como Edir Macedo e
Sônia Hernandez. Terrível, mas pelo menos um problema restrito a um grupo (embora
grande) de pessoas, muitas delas sem vivência ou educação formal para perceber
o quanto estavam sendo enganadas. Isso acabou, e deixou de ser um problema puramente
religioso. O poder que essas igrejas concentram faz delas uma ameaça séria ao
processo democrático brasileiro, e mesmo assim paira uma desconfortável
conivência, seja por parte do Governo, dos partidos políticos ou da justiça,
com o enriquecimento ilícito dos seus donos.
Hoje, a bancada evangélica tem influência decisiva no
Congresso Nacional. Por conta disso, chegou-se ao ponto em que um escroque, o
deputado Marco Feliciano, acaba de ser eleito para a Comissão de Direitos
Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. É um fato tão grave que mesmo um
povo acomodado como o brasileiro parece estar dizendo: basta! Para quem não
sabe, o também pastor e empresário Feliciano já deu declarações dizendo que os
africanos são um povo amaldiçoado. Foi ele também que, em um culto da sua
igreja, andou pedindo a senha do cartão de crédito oferecido por um seguidor: “Doou
o cartão, mas não doou a senha. Aí não vale. Depois vai pedir um milagre para
Deus, Deus não vai dar, aí vai achar ruim”. Sim, é esse sujeito que vai
presidir a Comissão de Direitos Humanos. Por conta disso, já correm piadas na
internet dizendo que o goleiro Bruno, condenado pelo homicídio da ex-namorada,
vai presidir a comissão de direitos da mulher. Afinal, vivemos a era do
cinismo.
Marco Feliciano é apenas a ponta mais vistosa do iceberg. A
enorme massa de manobra dos pastores neopentecostais também volta a sua fúria
fanática contra homossexuais e sobretudo contra religiões de matriz africana. Terreiros
têm sido invadidos, objetos de culto são destruídos, adeptos das religiões
africanas são hostilizados. Há muitas explicações para o recrudescimento da
agressividade dos tementes a Jesus, Jeová ou quem quer que seja. E o principal
deles talvez seja o fato de que as igrejas precisam expandir seus negócios. Mais
fiéis representam mais dízimos, mais influência no Poder Público, mais força
nas emissoras de rádio e televisão, mais templos grandiosos.
Mas há algo de sintomático na forma como a intolerância se
processa, inclusive para além do universo religioso. Vivemos uma era onde a
alteridade é matéria-prima escassa e o extremismo é hegemônico, seja na
política, no futebol, nas relações entre diferentes classes sociais. Nesse
território engolfado pelo fundamentalismo, opiniões discordantes são rechaçadas
e a lucidez se torna um corpo estranho, como um vírus indesejado.
7 comentários:
Pois é, Paulinho. Seu texto aborda vários postos, mas eu vou tecer comentário em apenas um. Aqueles que não queriam - e continuam sem querer, pelo jeito - se indispor com ninguém, diziam ou ainda dizem: "Religião, política e futebol não se discute". Hoje a gente está nesta enrascada congressual não apenas por causa de um pastor imbecil, mas por causa do desleixo político-partidário. Os aproveitadores-evangélicos estão, aos poucos, dominando boa parte da política brasileira. O PT vacilou, ao lavar as mãos na Comissão dos Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, vacilou. Mas nesse momento estava lá o PSC com Marco Feliciano se aproveitando da brecha para presidir a Comissão e fazer esse estrago. Como a Câmara é a casa que representa o povo, o povo agora tem que cobrar, como de certa forma já está fazendo com as mobilizações pelo país afora, para dizer que não é assim que a banda deve tocar. É isso, amigo. Parabéns pela análise. Abraço.
O problema, caro Giovanni, é justamente esse "lavar as mãos" que você mencionou. A pilantragem dita religiosa vem se aproveitando há muito dessa estratégia Pilatos, dessa conivência generalizada. Daí atingirmos um nível de escândalo como o que presenciamos na Comissão dos Direitos Humanos. Vamos ver se a pressão popular vai valer alguma coisa, mas temo que não.
Grande abraço, meu velho, e que venham dias melhores.
"Deus nos deu asas. Mas as religiões criaram as gaiolas"
(Rubem Alves)
Belas palavras, caro Laert.
Abs
O arrivismo político dominante no PT dos últimos tempos, a busca cega da governabilidade (em última instância, manutenção do poder) acabou abrindo as portas para o arrivismo dos neo-pentecostais. É claro que isso não começou agora - a ocupação de espaços políticos e parlamentares por esses evangélicos vem do final dos 80 e início dos 90. Mas hoje percebemos os riscos para o processo democrático que representa a ampliação da atuação política desses grupos, que, ao mesmo tempo que tentam impor suas retrógradas concepções sócio-culturais, não têm o menor pudor em aceitar qualquer tipo de tenebrosas transações financeiras (neste último caso, similares aos mandantes do poder de hoje, de ontem e de ante-ontem).
Quero ressaltar também que Feliciano representa apenas um tipo, uma vertente de evangélico, não todos. Não se está tomando todos os evangélicos por um quilo, nem contrapondo os direitos humanos à crença evangélica, até mesmo porque uma quantidade significativa de igrejas evangélicas elaborou uma carta-aberta na internet e tem recebido expressivas adesões. É aquela coisa, deve-se enxergar a floresta, mas também a árvore.
Sim, Armundo, a ascensão de Feliciano é fruto desse vácuo político e moral que você descreveu. Não é de hoje que o toma lá, dá cá virou regra nas relações entre diferentes governos e partidos políticos. Uma aberração, em suma. E é claro que não podemos generalizar as igrejas evangélicas, muito menos os seus fiéis. Até porque algumas delas desempenham um importante papel social de tirar pessoas do ambiente do tráfico nas comunidades pobres.
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