Faz muito tempo que li O Pássaro
Pintado. Mas até hoje não esqueço do sentimento de repulsa que algumas
passagens do romance de Jerzy Kosinski provocaram em mim. Em alguns momentos,
lembro, precisava até desviar os olhos da página diante de descrições tão
vívidas de crueldade: infanticídios, corpos desmembrados, sobrevivência a
qualquer custo. O livro narra as desventuras de um garoto cigano desgarrado dos
pais, perambulando e se escondendo nas florestas geladas da Polônia durante a
Segunda Guerra Mundial. A perseguição do exército alemão a qualquer tez
distinta à brancura ariana era implacável, mas o livro tratava, em sua essência, de algo ainda mais
amplo e devastador que a insânia nazista: a crueldade inata do ser humano. Uma
característica tão natural em nós quanto o fato de sermos bípedes ou podermos
nos expressar com palavras.
O título do livro, por exemplo, faz
referência a um trecho particularmente brutal: um garoto capturava um
passarinho e o pintava com cores berrantes, tornando-o irreconhecível aos
demais da sua espécie. Em seguida, o soltava. O prazer do garoto era observar o
animal ir de encontro aos seus semelhantes e ser atacado. Incapaz de se
explicar ou sequer compreender por que não o reconheciam, o pássaro pintado era
bicado até a morte. Essa parábola é perfeitamente aplicável ao que se observa
hoje em muitas partes do mundo, com uma diferença (e aí se concentra toda a ironia
cruel de Kosinski): aqui não nos referimos a animais irracionais – pelo
menos não no sentido convencional do termo.
Fico me perguntando se, ao fazer uso
de armas químicas de destruição em massa contra seu próprio povo, o ditador
sírio Bashar al-Assad não reconheceu naquelas centenas de crianças mortas seres
da sua espécie. Que tipo de daltonismo seletivo é capaz de provocar tamanha
distorção do real, transformando um homem comum, de feições banais e quase
obtusas, em um genocida? Penso comigo: não há remorso ou sofrimento íntimo
quando se ordena e executa um ato tão bárbaro? São perguntas tão tolas e
ingênuas que me sinto como o bom selvagem de Rousseau sendo aos poucos
corrompido pela sociedade que me rodeia. O homem é um bicho mau, me lembra William Burroughs em O Gato por Dentro, complementando o que Kosinski deixa bem
claro em O Pássaro Pintado, com seu niilismo sem meias-medidas. Enfim, não
existem bons selvagens, embora eu não tenha convicção plena de que somos intrinsecamente maus – acho até que não somos. De todo modo, me parece inquestionável que a passagem da humanidade pela Terra é em grande parte assentada sobre o alicerce da barbárie. Assim cresceram os impérios, desde os assírios até os sírios.
Mas agora me
sobressalto com outra dúvida: se os pássaros somos nós, pintados ou não, quem é
o garoto neste nosso mundo real de dentistas calcinados e meninos com olhos arrancados? Quem é o titereiro, o
Sabbath, o Chaplin dançando com o globo? Quem será esse desgraçado dono dessa
zorra toda, perguntaria Raul Seixas? O fato é que não há ninguém. Estamos
sozinhos como uma criança cigana perdida no mundo, aprendendo a se virar com o
que tem numa terra devastada e desconfiando de quem se aproxima. O horror, o
horror. Pode parecer – e é – uma visão desoladora, que revela um profundo
ceticismo. Mas que outros sentimentos poderiam nos percorrer quando nos
deparamos com aqueles corpos em série de quem quase não viveu? Ao contrário do
livro de Kosinski, aquelas cenas não são fruto de uma mente criadora, e é
inútil desviar os olhos.