segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Testemunhas




Observo os objetos que compõem o meu gabinete. E me pergunto: o que será deles, caso sobrevivam ao meu fim. Ficarão guardados em uma caixa de sapatos? Depositados em um canto escondido no futuro escritório de minha filha, como lembrança do pai que a amou tanto? Serão doados, jogados fora, convertidos em poeira e desimportância? Não faço ideia. Sei apenas que toda essa memorabilia representa quase nada se despida do valor afetivo que o seu dono destina a cada peça. São singelos ícones de uma linha do tempo imprecisa, que no decorrer das décadas receberam sucessivas camadas de sentimento e saudade a cada olhar ou a cada reminiscência.

Meio empoeirados, atulhando as minhas prateleiras ou enfeitando a minha bancada, eles permanecem ali, como cúmplices de crimes inexistentes: o delicado anjo de porcelana que pertenceu ao meu avô paterno; o São Paulo dado por minha mãe para me proteger de tempos difíceis ou doenças graves; a calçadeira de osso que foi de meu pai e que sempre gostei de usar. Há mais: o machadinho de pedra-sabão adquirido em Ouro Preto, no qual se lê a inscrição “A felicidade está contida no vento frio das auto-estradas”, de autoria de um certo Paradise Duluoz; o simpático índio inca de madeira comprado no Chile; o rosto de expressão entre irônica e carrancuda que me remete a um dia particularmente agradável em Montmartre.

Quanto deve valer, por exemplo, a pedra bruta com cristais incrustados que adorna a prateleira dos autores de R a S? Para os outros, apenas um mineral sólido e sem serventia, mas para mim um presente precioso, dado por uma garota mineira por quem me apaixonei quando estive em Curvelo. Do mesmo modo, que significado especial pode ter o velho par de sapatinhos azuis de bebê, bem gasto, que fica ao lado da caixa de charutos? Nenhum, senão pelo fato de que me fazem lembrar dos primeiros anos de minha filha, e de como eu amava vê-la correndo com aqueles sapatinhos.

Como todos esses objetos, também os livros, discos, fotografias, pôsteres, poemas dispersos, originais nunca publicados e velhas correspondências devem sobreviver a mim, bem como as centenas de rolhas da minha coleção de bebum assumido. Reunidos neste pequeno quarto, eles de alguma forma refazem em silêncio o percurso sinuoso de minha passagem pelo mundo. Daqui a 100 anos, alguém vai abrir as páginas de algum desses livros? Vai descobrir naqueles originais guardados um talento inaudito? Vai se emocionar com as cartas que falam de anseios malogrados ou sentimentos represados? Para todas as perguntas, a resposta é: provavelmente não. Tenho consciência da minha insignificância. Sei que essas quinquilharias que hoje me rodeiam serão só testemunhas da cinza das décadas, do oblívio inapelável ao qual serei lançado um dia.

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