Em O Sétimo Selo, Ingmar Bergman constrói uma parábola meio insólita sobre o sentido da vida em contraponto à certeza da extinção. Ao desafiar a morte para uma partida de xadrez, o cavaleiro nórdico recém-chegado da guerra busca encontrar esse sentido obscuro e ao mesmo tempo adiar o fim iminente. Não é dos meus filmes preferidos, mas essa parábola atulhada de um determinismo profundamente niilista não deixa de ser interessante. Nossa existência é de certo modo uma partida de xadrez que tem a morte como oponente. Sua duração depende da nossa capacidade de improvisação diante do acaso – que pode se traduzir em doenças, acidentes ou assassinatos. Mas, por mais que tentemos a todo custo derrotar o oponente e fugir das ciladas ocultas em cada casa do tabuleiro, o jogo se encerra invariavelmente com o mesmo resultado.
Nessa
partida, o mais difícil é sobreviver às ausências infligidas pelo correr das
décadas. Aprendemos a suportar os peões que tombam aos montes, o cavalo abatido
em pleno salto ou a torre derrubada ali na esquina. Mas outras lacunas nos
ferem com gravidade e nos enfraquecem irremediavelmente. Perdemos nossos ícones
primordiais e vamos à lona em câmera lenta, enquanto o adversário sorri do
outro lado – afinal, ele tem todo o tempo do mundo à sua espera. Eu mesmo perdi
um desses ícones de infância há bem pouco tempo, como já havia perdido outros
em anos mais remotos. Percebemos, então, que o tabuleiro está ficando vazio, como
uma terra devastada pela cinza das horas.
Mas não nos
despedimos apenas de pessoas. Com elas, vão-se embora também as referências de
um tempo em que a vida parecia mais simples e idílica, por mais difícil que
fosse em realidade. Perdemos a inocência, e com ela as certezas e convicções
inabaláveis. É mais ou menos o que
disse o espanhol Enrique Vila-Matas no livro Chet Baker Pensa na sua Arte: “Acaso
a vida não era melhor quando não tínhamos a menor sombra de dúvida sobre quem
éramos? Mas já é difícil que se possa voltar a ser um coração simples,
sobretudo quando se conseguiu chegar a saber que o mundo inteiro é denso e
estranho, tão estranho que, precisamente, o inalcançável se situa no nosso
interior.”
Uma vez,
entrevistei o poeta argentino Juan Gelman e ele me disse que uma infância feliz
é a pátria mais invulnerável. Um território ao qual podemos voltar sempre que a
realidade nos devora. Um reino de Nárnia para além do fundo do armário, onde
voltamos a ser onipotentes. Sim, essa pátria permanece, apesar das quedas em
sequência que o adversário nos obriga a vivenciar. Mas creio que uma parte dela,
seja um muro ou um campanário, acaba se esfacelando com o passar do tempo e se
convertendo em um misto de resignação e desespero. É quando descobrimos que o
mundo é denso e estranho, como disse Vila-Matas, e somos incapazes de
domá-lo.
2 comentários:
Muito bom, Paulão. Abs
Valeu, brother.
Abs
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