segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Vinte anos este mês



Em janeiro de 1994, eu prestei vestibular para jornalismo em algumas faculdades de São Paulo. Foi um período em que minha vida era tomada por resoluções em cascata, que incluíam morar em outra cidade, deixar a casa dos meus pais e tentar ser jornalista na maior cidade do Brasil. Há 20 anos, minhas utopias pessoais ainda estavam de pé, quase intactas, e o mundo inteiro parecia se descortinar à minha frente. Utopias de um jovem pertencente à última geração que cresceu acreditando nelas. Até que em 1989 o Muro de Berlim desabou, o comunismo ruiu e o que se convencionou chamar de esquerda aderiu em parte ao cinismo - mas aí já sabíamos que a aventura comunista não tinha sido mesmo boa coisa. De qualquer modo, havia ainda a possibilidade de que algo desse certo, uma terceira via ou algo do gênero, e me mudei para São Paulo com parte dessas convicções ainda reverberando em minha restrita visão de mundo.

Acabei entrando justamente na faculdade que queria, a Cásper Líbero, e foi uma experiência enriquecedora (incomparavelmente melhor do que o curso de Administração de Empresas que havia deixado pelo caminho em Salvador). Morar em outra cidade, a princípio com meu irmão mais velho, depois sozinho e por fim com minha futura mulher, também valeu a pena, assim como conhecer pessoas que agregaram valor ao meu camarote intelectual, entre professores e colegas de faculdade e trabalho. Mas esse período também representou o declínio das minhas ilusões. Mais uma vez, pertenci a uma geração derradeira, chegando novamente no final da festa. O fim do século 20 trouxe a reboque a chegada da internet e a pulverização da informação, provocando a derrocada do jornalismo clássico com o qual alimentávamos nossas ambições (redações enfumaçadas, sinfonia de máquinas de escrever e escapulidas às cinco da tarde no bar da esquina). A imprensa não seria a mesma depois do www e nós, recém-formados, acompanhávamos perplexos essa mudança. As redações foram ficando mais enxutas, a informação também. Quem formava opiniões passou a ser formado por elas. Com isso, mesmo os meus amigos mais talentosos acabaram não vingando na profissão como mereciam.

Voltei para Salvador em junho de 1998. Casei, fiquei desempregado e um tanto deprimido por um par de anos, até que tive a minha filha e comecei a trabalhar em redação, escrevendo críticas de cinema e resenhas literárias. Foi bom enquanto durou, mas não poderia durar muito. De todo modo, os anos passados em São Paulo foram fundamentais para formar a pessoa que sou hoje. Não aguentei a cidade mais do que cinco anos, mas sinto falta do seu espírito cosmopolita e dos amigos com quem dividi a sala de aula, o dia a dia no trabalho e, principalmente, as mesas de bar. Já se vão 20 anos. É tempo demais, mas também de menos. Converso com alguns amigos pelas redes sociais, vejo fotos de outros e não resisto ao clichê do “parece que foi ontem”. Talvez porque ainda acredite em utopias, mesmo as mais estúpidas e sem sentido. Talvez porque 20 anos sejam, na realidade, pouco mais do que uma vírgula na nossa idade adulta.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Transcendência




Hemingway dizia que a Espanha era o melhor país do mundo depois do seu próprio país.  Foi lá (e também em Paris) que ambientou O Sol Também se Levanta, sua obra-prima, além do melancólico testemunho romanceado da Guerra Civil Espanhola em Por Quem os Sinos Dobram, livro que não está entre os meus preferidos. Chamado de Don Ernesto por toureiros e garçons que costumavam lhe servir um jerez puríssimo, o Papa amava as touradas, o embate viril e esteticamente belo entre homem e touro. Mas a Espanha que amou, ainda agrária e profundamente católica, era um país bem diferente do de hoje, que parece enfim ter se libertado do espectro hostil da ditadura franquista. A crise pós-2008 ainda está em curso, mas o que se percebe é uma nação feliz, sem amargura aparente, entregue a um hedonismo agradável de fim de noite, com seus bares lotados e gente de todas as idades caminhando sossegada pelas ruas. 

Claro que é uma visão superficial de quem esteve poucos dias, e as bandeiras da Catalunha expostas aos montes nas sacadas de Barcelona deixam claro que a ferida aberta pelo “generalíssimo” está longe de cicatrizar. Em uma dessas sacadas, um cartaz dizia, em catalão: “A língua é um direito e uma cultura”, como uma resposta aos idiomas sufocados durante a ditadura. No País Basco, que não visitei, a ferida é ainda mais extensa. Franco fez um mal danado, assim como Salazar no país vizinho. 

Falando em Franco e em guerra civil, por pouco não consegui ver de perto a Guernica no Reina Sofia, talvez o mais pungente testemunho de um artista sobre a barbárie que se abateu sobre a Espanha. Para compensar em parte, pude ver as pinturas negras de Goya no Museu do Prado, e contemplei, entre horrorizado e fascinado, Saturno devorando um de seus filhos bem à minha frente.

Quem quiser falar com Deus deve ir à Espanha. Suas igrejas e monastérios nos fazem pensar seriamente (ao menos durante os segundos de encanto) na existência de algo além da nossa finitude. Já na primeira noite, fomos a uma missa na Sagrada Família a convite de uma amiga que mora lá. Uma experiência que, a despeito do sono, provocou em mim uma sensação de epifania, de transcendência. Dias depois, ao chegar no Monestir de Montserrat, cercado por aquele exército de rochas silenciosas lá pertinho do céu, eu mesmo duvidei do meu ateísmo renitente.

Mas o que mais me impressionou na Espanha - ao lado da genialidade quase absoluta de Gaudí - foi a capacidade singular que os espanhóis possuem de produzir beleza humana a partir de lugares de beleza natural quase infinita. Tanto Madri quanto Barcelona são cidades estupendas, capazes de nos fisgar pela fé, pelo deslumbramento ou, o mais provável, pela boca. De qualquer modo, saí de lá sem a mesma sensação de pertencimento com que me deparei em Paris e em Lisboa. Estas calaram fundo em meu passado, como se meu íntimo estivesse estreitamente atrelado a algo que só o Tejo ou o Sena seriam capazes de decifrar. A Europa, de qualquer modo, continua a me seduzir. Quanto mais me embrenho pelo continente, mais quero me perder por lá, fuçar cada país, descobrir nos diferentes idiomas a minha própria voz.