Para quem nasceu em 1970, as recordações mais nítidas da ditadura militar, iniciada há exatos 50 anos, se concentram no seu fim. Sou testemunha dos estertores da barbárie institucionalizada, que foi embora mais ou menos como começou: meio como farsa e como prenúncio de tempos difíceis. Volto aos meus 14 anos, numa manhã de 1984, e vejo meu pai entrando no quarto em que eu e meus irmãos dormíamos, o rosto contrariado e um jornal nas mãos, que jogou no meio das nossas camas, dizendo: “Diretas já era”. Começávamos mal, algo que se estendeu por muito tempo com consequências desastrosas.
Um ano antes, creio, escrevi uma redação para o colégio intitulada “Uma medalha para o presidente”, que de forma meio irônica enaltecia a capacidade do general Figueiredo em conduzir o país à Abertura. Lembro que a redação terminava de maneira patética com a frase “Ok, Figueiredo, você venceu”, obviamente inspirada na canção da Blitz que era sucesso naquele tempo: “Ok, você venceu, batata frita”. Minha mãe adorou a redação e saiu mostrando a todos os parentes que iam lá em casa, me deixando ainda mais ensimesmado. Fui alçado às incertezas da adolescência nesse ambiente de fim de festa, depois de passar as tardes da infância vendo filmes e seriados importados e notícias distantes sobre o governo Geisel. Lá em casa não havia milagre econômico. Meus pais batalhavam em seus trabalhos e nós crescíamos de certa forma alheios aos anos de chumbo, protegidos por uma redoma de afeto.
A ditadura acabou e aos 15 anos eu descortinei o mundo real. Enquanto as histórias de García Márquez me fascinavam, numa espécie de escapismo involuntário, passei a me debruçar (na maioria dos casos sem entender nada) sobre temas como capitalismo, comunismo, totalitarismo, fascismo, imperialismo e outros ismos menos notórios. E, principalmente, me dei conta da devastação que os 21 anos de ditadura provocaram. Lembro do sentimento de asco que o livro-relatório Brasil: Nunca Mais provocou em mim, do horror à tortura como método sistemático de trabalho, daquelas coisas horríveis feitas com insetos, choques elétricos e paus-de-arara.
Com Feliz Ano Velho, conheci, a partir da tragédia individual de Marcelo Paiva, a tragédia coletiva que levou a reboque o seu pai, Rubens, um caso que até hoje me dilacera. Já Feliz Ano Novo me mostrou que essa mesma tragédia coletiva podia produzir boa literatura. Passei a ouvir Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso. A usar camisas com estampa de Che Guevara. A escrever poemas engajados horrorosos. A descobrir ecos do nosso sofrimento no Chile, na Argentina, no Uruguai. Era apenas um filho da revolução, um tímido e sonhador integrante da geração Coca-Cola, menino demais para tomar atitudes que se assemelhassem a uma rebelião juvenil. Cheguei tarde às dores do mundo. E, com os hormônios em ebulição e a vida inteira pela frente, só queria desfrutar dos prazeres e tentações que ele me oferecia.
10 comentários:
Tenho lembranças políticas mais anteriores. Segunda metade dos 70, fiz jornal mimeografado e off-set no interior algo remoto da Bahia,e mesmo assim ainda era um risco.
A qualidade poética e musical da MPB convivia com Gismonti, Pink Floyd e a descoberta da música clássica. As leituras dos ismos, depois de já há algum tempo ter abandonado José Mauro de Vasconcelos, bolsilivros da Monterrey e romances populares comprados pelo reembolso postal, já tivera início, também com mil obstáculos intelectuais, na verdade até hoje não transpostos.
Aí vieram o fim do AI-5, eleições para governador, campanha das diretas, Tancredo/Sarney, Constituinte, Collor, Plano Real e hoje a versão brasileira do 'dream is over', ainda que no Brasil vivamos de economizar utopia. A utopia que já fora embora depois dos fatos nos terem mostrado que o tal socialismo real era o que desconfiávamos.
Peço que me desculpe por tamanha 'folga' com o seu espaço.
Seus comentários são sempre bem-vindos, meu caro. Ainda mais neste caso, em que suas lembranças evocam fatos muito mais imprescindíveis do que os que estão no meu singelo relato. Acho que quem viveu os anos 60 e 70 de verdade tem uma capacidade muito maior de compreender o Brasil de hoje, que entre outras coisas insiste em um revisionismo da ditadura. A estultice é moda corrente, e ainda bem que temos nossas utopias.
Mais uma vez, repito: seja sempre bem-vindo ao blog.
Obrigado.
Os anos 60 possuem aquela aura e são objetos dessa coisa estranha que é sentir saudades de algo que não vivemos. Conhecemos, muitos de nós, a produção musical, teatral, fílmica (como diria Setaro), literária, mas não a vivenciamos em todo o seu contexto (eu era criança). Percebemos, sim, o otimismo, o ímpeto criativo e a vontade de mudar o mundo, o que nos provoca uma certa inveja, que, inconscientemente, transformamos nessa inexplicável saudade, acima referida.
Paulo, uma perguntinha antes de ir dormir: sua camisa com estampa do Che foi comprada na Literarte?
Não, a, acho que nessa época nem existia Literarte. Foi comprada, se me lembro bem, numa feirinha de rua em São Paulo, Mas acho que tive mais de uma.
O 'a' aí sou eu.
Imaginei. Mas na dúvida...
abs
Super interessante !
Obrigado, Pablo.
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