Em Um Romance Russo, o escritor francês Emmanuel Carrére empreende uma busca obstinada pela memória perdida do avô. Uma procura que mexe não apenas com seus sentimentos, mas também com os de sua mãe, que prefere o silêncio mas deixa escapar um sofrido pesar ao falar do pai, desaparecido aos 45 anos depois de atuar como colaboracionista dos nazistas durante a invasão alemã na França na Segunda Guerra Mundial. Um traidor, portanto, mas muito mais complexo do que isso. Esse é só um dos pilares dramáticos que sustentam a narrativa autobiográfica de Carrére, mas foi provavelmente o que mais me comoveu. Ele vai atrás de correspondências e depoimentos que ajudam a elucidar em parte quem foi o avô, de origem russa e mente confusa, que se auto-depreciava nas cartas e viveu e criou os filhos de maneira instável, sempre com problemas financeiros e uma depressão crônica.
terça-feira, 3 de novembro de 2015
A bruma do passado
quinta-feira, 8 de outubro de 2015
Cicatrizes
À medida que envelhecemos, cicatrizes e outras marcas do tempo se colam ao nosso corpo. São restos de feridas profundas, tatuagens ou vestígios de antigas enfermidades que, aliados a rugas e cabelos brancos, dão forma a quem somos quando atingimos uma certa maturidade. Nosso rosto e principalmente nosso corpo mudam, deformando-se ou alcançando uma inesperada harmonia. De certa forma, somos como rochas desfiguradas pela erosão dos ventos e do sol, ou como rios assoreados pela falta de vegetação nas margens. Eu tenho cá minhas marcas do tempo: uma cicatriz quase imperceptível de uma queda de mobilete, que prendeu meu pé esquerdo ao pedal e ao motor fervendo; a marca de uma cirurgia nas costas para a retirada de um cisto no sacro-ilíaco; uma pequena deformação na pálpebra direita, causada por um terçol mal-curado; a coluna rígida que me tira a mobilidade, consequência mais evidente de uma doença reumática; e por fim um sulco entre as sobrancelhas fruto de uma herpes-zóster. Esses sinais - aliados aos cabelos grisalhos, às pequenas bolsas sob os olhos e aos quilos a mais - contam a minha história exterior.
quarta-feira, 16 de setembro de 2015
Fronteiras
Houve um tempo em que não existiam fronteiras. Os homens vagavam por terrenos sem dono em busca de comida, água e abrigo. O mundo não pertencia a ninguém. Era um campo vasto e inóspito a ser desbravado e conquistado. Depois erigiram muralhas, criaram bandeiras, consolidaram idiomas e guerrearam (como ainda guerreiam) por territórios. No século 21, depois do tal fim da história apregoado por Francis Fukuyama, a guerra deveria soar anacrônica, uma enfermidade típica de tempos passados, como a peste negra ou a gripe espanhola. Mas, assim como o cólera ou a malária, ela insiste em se fazer presente. Para além das mortes de civis atingidos em suas casas, o que se vê é a fuga em desespero, a migração em massa através de desertos e oceanos, onde o caminho é também uma armadilha letal.
quarta-feira, 8 de abril de 2015
Variações em torno de uma taça
Amo os vinhos com um ardor silencioso. Amo as cores, o sabor, os aromas que evocam tempos remotos, como a imagem de meu pai bebendo seus vinhos portugueses baratos em canecas simples, enquanto assistia à tevê. Amo meu ritual particular de escolhê-los, comprá-los, guardá-los e por fim bebê-los, de preferência ao lado das mulheres que amo ou de amigos que admiro.
Daí me entristecer com o esnobismo que rodeia esse universo, sobretudo nas altas rodas, nos meios abarrotados de gente com dinheiro de mais e sabedoria de menos; a falsa reverência com que os vendedores me tratam quando retiro uma garrafa mais cara da prateleira, mesmo que não vá levá-la (e quase sempre não levo); as bobagens que leio quando quero saber mais sobre um vinho.
Por mais pernóstica que possa soar essa afirmação, me
aproximo dos franceses na forma como encaram o vinho, com sua simplicidade
espartana. Filmes como Amor, de Michael Haneke, e Azul é a Cor Mais Quente, de Abdellatif
Kechiche, mostram a relação dos franceses com o vinho. Uma relação de
cumplicidade silenciosa, prosaica como beber um copo de água. O vinho é aquilo:
um companheiro da refeição e de eventuais conversas que nascem desse momento.
Ouço Henri Salvador cantar Dans Mon Ile enquanto termino de beber um ótimo tinto do Douro, que acompanhou um delicioso ensopado de carne com macarrão. Prato que me fez lembrar de um boef bourguignon simples e gostoso que comi um dia no Quartier Latin. Não esqueço dessa tarde, do vinho simples que bebemos em um copo também simples, da sisudez do proprietário, um homem velho e calado, que nos serviu com frieza, mas de forma impecável, e no final me deu uma dica preciosa, me indicando como chegar à livraria Shakespeare & Co, que tanto havia procurado sem sucesso pelas ruelas do bairro.
Amo os vinhos com um ardor silencioso. De quem sabe da passagem do tempo, e de como ela age sobre nossos corpos frágeis e profundamente vulneráveis. Amo os vinhos porque eles alimentam minha alma, muitas vezes tão maltratada, outras tão exausta. E por saber que um dia a taça vai permanecer vazia, sem alguém para enchê-la.
Ouço Henri Salvador cantar Dans Mon Ile enquanto termino de beber um ótimo tinto do Douro, que acompanhou um delicioso ensopado de carne com macarrão. Prato que me fez lembrar de um boef bourguignon simples e gostoso que comi um dia no Quartier Latin. Não esqueço dessa tarde, do vinho simples que bebemos em um copo também simples, da sisudez do proprietário, um homem velho e calado, que nos serviu com frieza, mas de forma impecável, e no final me deu uma dica preciosa, me indicando como chegar à livraria Shakespeare & Co, que tanto havia procurado sem sucesso pelas ruelas do bairro.
Amo os vinhos com um ardor silencioso. De quem sabe da passagem do tempo, e de como ela age sobre nossos corpos frágeis e profundamente vulneráveis. Amo os vinhos porque eles alimentam minha alma, muitas vezes tão maltratada, outras tão exausta. E por saber que um dia a taça vai permanecer vazia, sem alguém para enchê-la.
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