Houve um tempo em que não existiam fronteiras. Os homens vagavam por terrenos sem dono em busca de comida, água e abrigo. O mundo não pertencia a ninguém. Era um campo vasto e inóspito a ser desbravado e conquistado. Depois erigiram muralhas, criaram bandeiras, consolidaram idiomas e guerrearam (como ainda guerreiam) por territórios. No século 21, depois do tal fim da história apregoado por Francis Fukuyama, a guerra deveria soar anacrônica, uma enfermidade típica de tempos passados, como a peste negra ou a gripe espanhola. Mas, assim como o cólera ou a malária, ela insiste em se fazer presente. Para além das mortes de civis atingidos em suas casas, o que se vê é a fuga em desespero, a migração em massa através de desertos e oceanos, onde o caminho é também uma armadilha letal.
A invasão de refugiados na Europa é provavelmente a maior tragédia coletiva que se abate sobre o continente (e sobre todo o mundo) desde a Segunda Guerra Mundial. Uma hecatombe silenciosa que nos enche de vergonha, tristeza e perplexidade. E quando eu vejo multidões espremidas em fronteiras, contidas por guardas, arames e fuzis, penso com saudade no tempo em que não havia fronteiras. Involuímos, como as bombas atômicas, as armas químicas e a indiferença dos atuais donos do mundo fazem crer? Ou essa é uma forma diferente de avançar rumo ao futuro, contando para isso com a solidariedade que se manifesta em parte da população europeia, disposta a ajudar famílias devastadas? Talvez sejam as duas coisas, convivendo em total desarmonia. Nesse sentido, um tipo torpe como a cinegrafista húngara que chuta pais com filhos no colo seria apenas uma deformidade, uma pedra no meio do caminho de um porvir mais justo.
Não é novidade que convivemos com diferentes eras em um mesmo planeta, muitas vezes delimitadas por (olha elas aí mais uma vez) fronteiras: a prosperidade de Israel em detrimento da miséria na Faixa de Gaza, a opulência dos Estados Unidos cirurgicamente cindida da violência extrema dos cartéis mexicanos, ou mesmo a faixa invisível que separa os casebres da Rocinha dos arranha-céus de São Conrado, no Rio de Janeiro. Esse recorte geopolítico superficial deixa claro que a concentração de renda e a desigualdade social são os principais entraves para o desenvolvimento perene e inclusivo, como defende o economista francês Thomas Piketty. Tudo é explicado, e não há como fugir disso, a partir daí: a trajetória errática das civilizações, a ascensão da barbárie personificada no Estado Islâmico e até mesmo o menino sírio Ayslan deitado de bruços na beira de uma praia.
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