“O que me interessa é exercitar o absurdo”
O escritor angolano José Eduardo Agualusa dedicou boa parte da vida a conhecer os países e cidades de língua portuguesa espalhados pelo mundo. Esteve em Goa, Macau, Moçambique e Indonésia, entre outros lugares, e morou no Brasil e em Portugal. Toda essa peregrinação fez dele um profundo conhecedor das peculiaridades que envolvem o idioma lusitano e um homem estreitamente sintonizado com a realidade dos países africanos. A seguir, ele fala sobre o atual governo angolano, o qual define como “cleptocracia”, e discorre sobre as nuances da língua portuguesa.
Paulo Sales
P - Há muito de realismo fantástico em seu livro mais recente, O vendedor de passados, que tem como protagonista uma lagartixa? Qual a importância do gênero na sua obra?
JEA - O realismo fantástico foi realmente importante para mim, mas mais do que ele, o que me interessa é um pouco exercitar o absurdo. Nós convivemos diariamente com o que nos países europeus e em outros países ocidentais se poderia considerar a presença da magia na realidade. A verdade é que, se eu quiser escrever um romance realista em Angola, fatalmente vou escrever um romance que poderá ser enquadrado como realismo mágico. Lidamos com o fantástico de uma forma muito natural.
P - O fantástico é uma característica africana?
JEA - Sim. Nos países da Europa a racionalidade domina. A Igreja Católica, por exemplo, foi perdendo seu lado mágico. O que é um padre? Um padre é sobretudo um mago, deveria ser um homem capaz de realizar milagres. E a própria Igreja foi se afastando do milagre. Em África isso não aconteceu. Lá, o mistério e a magia estão presentes no cotidiano das pessoas. Vou dar um exemplo: você lê os jornais de Angola, e pode encontrar, no meio de uma série de notícias corriqueiras, uma história como esta: nosso correspondente na Barra do Quanza, explicava o jornal, conta a história de três crianças que desapareceram no rio. Ao fim de três dias, os pescadores mergulharam e encontraram as três crianças, vivas, no fundo do rio, sendo agarradas por um homem de longas barbas brancas. E aí pescaram as crianças e o velho, e guardaram o velho numa “cubata” (casa), e na manhã seguinte ele tinha desaparecido, sendo convicção dos habitantes do lugar que esse velho seria uma “quianda”, uma sereia. Essa notícia é apresentada de uma forma absolutamente natural em Angola.
P - Em entrevista ao Jornal do Brasil, você disse que há atualmente em Angola uma espécie de “cleptocracia”. Fale um pouco sobre o assunto.
JEA - Angola é um país com muitos recursos e um dos principais produtores mundiais de petróleo e de diamantes. O problema é que, ao longo destes últimos anos, criou-se um sistema que vive de fato da exploração desses recursos. O que temos hoje é realmente uma cleptocracia, um sistema que vive do saque.
P - Isso é institucionalizado, ou seja, é promovido pelo próprio governo de Angola?
JEA - Não sei se temos um governo. Temos ministros, mas alguns deles não têm sequer capacidade econômica para exercer sua função. É um governo de fachada, quem tem o poder total em Angola é o presidente da República, José Eduardo dos Santos.
P - Existe uma solução a longo prazo para Angola e para a África em geral?
JEA - Não se deve olhar para a África como um todo. A África são muitos países, e completamente diferentes um do outro. Você tem países prósperos, viáveis, democráticos, como Botsuana, Senegal e Cabo Verde. Mas deles não se fala, porque as notícias são sempre sobre guerra. Nossos problemas têm a ver sobretudo com a não-democratização da África. A democracia está intimamente associada ao desenvolvimento. Portugal é uma prova disso, sendo hoje um país europeu moderno, o que justifica a ótima fase da literatura portuguesa. Você teve 30 anos de investimento sério e continuado na cultura, e os reflexos estão nos jovens escritores de Portugal, que são muito bons.
P - Cite alguns.
JEA - Filipa Mello, Gonçalo Tavares, José Luis Peixoto, que ganhou o Prêmio Saramago há três anos. Quando você olha para trás e analisa a literatura portuguesa, não encontra concentrados num mesmo período de tempo um grupo tão grande de escritores tão bons. Temos António Lobo Antunes, José Saramago, Agustina Bessa Luís, e uma nova fornada tão boa quanto.
P - Você encontrou a língua portuguesa em lugares remotos do mundo, encravados na Ásia e na África. Conte um pouco dessas experiências.
JEA - Estive em lugares remotos nas situações mais estranhas. Um exemplo é a Ilha das Flores, na Indonésia, que teve colonização portuguesa. Lá, existe uma procissão na semana santa que é famosa em toda a Ásia, você atravessa uma estrada enorme através da floresta, de noite, num silêncio extraordinário, compacto. E de repente as pessoas começam a rezar, e então subitamente você percebe que as pessoas estão a rezar em português. É uma coisa de arrepiar.
P - E elas sabem o significado da reza?
JEA - Não, não sabem. O que é extraordinário na língua portuguesa é o fato de ela estar espalhada por geografias tão diversas e ter sido capaz de se afeiçoar a essas geografias. Os dialetos crioulos (falados nas colônias portuguesas) são depositários de palavras antigas. Não por acaso eles surgem normalmente nas ilhas, que são lugares onde aportam todas as coisas esquecidas do mundo.
P - Durante a Flip, escritores como Paul Auster e Martin Amis demonstraram certa inquietação com o momento sombrio que vivemos. E disseram que seus próximos romances refletiriam, de certa forma, esse período. Gostaria que você analisasse esse momento.
JEA - Em primeiro lugar, eu não concordo com essas afirmações. Quando você olha para trás, vê um tempo de sombras. Quanto mais para trás você olha, piores eram os tempos. Há cem anos havia escravidão aqui no Brasil, e eu não conheço sistema mais indigno e injusto que a escravatura. E era aceito. Depois houve o Hitler. Hoje já não seria possível existir um Hitler, nem a escravatura. O mundo não permitiria. Nós melhoramos muito, não há dúvida que há uma evolução ética e moral. Os budistas dizem que a gente evolui em espiral: você recua, mas vai subindo sempre.
P - Que escritores serviram de base para o seu crescimento como escritor?
JEA - Consigo identificar claramente, ao longo de minha vida, os meus momentos de assombro na literatura. Começou com Eça de Queiroz... Jorge Amado foi muito importante para mim, como para muita gente em África, porque nós descobrimos nele uma forma africana de escrever. Depois vieram os latino-americanos, Jorge Luis Borges, Gabriel García Márquez, alguma coisa do Mario Vargas Llosa. Meu mundo é o mundo afro-latino.
* Publicado originalmente no Correio da Bahia
O escritor angolano José Eduardo Agualusa dedicou boa parte da vida a conhecer os países e cidades de língua portuguesa espalhados pelo mundo. Esteve em Goa, Macau, Moçambique e Indonésia, entre outros lugares, e morou no Brasil e em Portugal. Toda essa peregrinação fez dele um profundo conhecedor das peculiaridades que envolvem o idioma lusitano e um homem estreitamente sintonizado com a realidade dos países africanos. A seguir, ele fala sobre o atual governo angolano, o qual define como “cleptocracia”, e discorre sobre as nuances da língua portuguesa.
Paulo Sales
P - Há muito de realismo fantástico em seu livro mais recente, O vendedor de passados, que tem como protagonista uma lagartixa? Qual a importância do gênero na sua obra?
JEA - O realismo fantástico foi realmente importante para mim, mas mais do que ele, o que me interessa é um pouco exercitar o absurdo. Nós convivemos diariamente com o que nos países europeus e em outros países ocidentais se poderia considerar a presença da magia na realidade. A verdade é que, se eu quiser escrever um romance realista em Angola, fatalmente vou escrever um romance que poderá ser enquadrado como realismo mágico. Lidamos com o fantástico de uma forma muito natural.
P - O fantástico é uma característica africana?
JEA - Sim. Nos países da Europa a racionalidade domina. A Igreja Católica, por exemplo, foi perdendo seu lado mágico. O que é um padre? Um padre é sobretudo um mago, deveria ser um homem capaz de realizar milagres. E a própria Igreja foi se afastando do milagre. Em África isso não aconteceu. Lá, o mistério e a magia estão presentes no cotidiano das pessoas. Vou dar um exemplo: você lê os jornais de Angola, e pode encontrar, no meio de uma série de notícias corriqueiras, uma história como esta: nosso correspondente na Barra do Quanza, explicava o jornal, conta a história de três crianças que desapareceram no rio. Ao fim de três dias, os pescadores mergulharam e encontraram as três crianças, vivas, no fundo do rio, sendo agarradas por um homem de longas barbas brancas. E aí pescaram as crianças e o velho, e guardaram o velho numa “cubata” (casa), e na manhã seguinte ele tinha desaparecido, sendo convicção dos habitantes do lugar que esse velho seria uma “quianda”, uma sereia. Essa notícia é apresentada de uma forma absolutamente natural em Angola.
P - Em entrevista ao Jornal do Brasil, você disse que há atualmente em Angola uma espécie de “cleptocracia”. Fale um pouco sobre o assunto.
JEA - Angola é um país com muitos recursos e um dos principais produtores mundiais de petróleo e de diamantes. O problema é que, ao longo destes últimos anos, criou-se um sistema que vive de fato da exploração desses recursos. O que temos hoje é realmente uma cleptocracia, um sistema que vive do saque.
P - Isso é institucionalizado, ou seja, é promovido pelo próprio governo de Angola?
JEA - Não sei se temos um governo. Temos ministros, mas alguns deles não têm sequer capacidade econômica para exercer sua função. É um governo de fachada, quem tem o poder total em Angola é o presidente da República, José Eduardo dos Santos.
P - Existe uma solução a longo prazo para Angola e para a África em geral?
JEA - Não se deve olhar para a África como um todo. A África são muitos países, e completamente diferentes um do outro. Você tem países prósperos, viáveis, democráticos, como Botsuana, Senegal e Cabo Verde. Mas deles não se fala, porque as notícias são sempre sobre guerra. Nossos problemas têm a ver sobretudo com a não-democratização da África. A democracia está intimamente associada ao desenvolvimento. Portugal é uma prova disso, sendo hoje um país europeu moderno, o que justifica a ótima fase da literatura portuguesa. Você teve 30 anos de investimento sério e continuado na cultura, e os reflexos estão nos jovens escritores de Portugal, que são muito bons.
P - Cite alguns.
JEA - Filipa Mello, Gonçalo Tavares, José Luis Peixoto, que ganhou o Prêmio Saramago há três anos. Quando você olha para trás e analisa a literatura portuguesa, não encontra concentrados num mesmo período de tempo um grupo tão grande de escritores tão bons. Temos António Lobo Antunes, José Saramago, Agustina Bessa Luís, e uma nova fornada tão boa quanto.
P - Você encontrou a língua portuguesa em lugares remotos do mundo, encravados na Ásia e na África. Conte um pouco dessas experiências.
JEA - Estive em lugares remotos nas situações mais estranhas. Um exemplo é a Ilha das Flores, na Indonésia, que teve colonização portuguesa. Lá, existe uma procissão na semana santa que é famosa em toda a Ásia, você atravessa uma estrada enorme através da floresta, de noite, num silêncio extraordinário, compacto. E de repente as pessoas começam a rezar, e então subitamente você percebe que as pessoas estão a rezar em português. É uma coisa de arrepiar.
P - E elas sabem o significado da reza?
JEA - Não, não sabem. O que é extraordinário na língua portuguesa é o fato de ela estar espalhada por geografias tão diversas e ter sido capaz de se afeiçoar a essas geografias. Os dialetos crioulos (falados nas colônias portuguesas) são depositários de palavras antigas. Não por acaso eles surgem normalmente nas ilhas, que são lugares onde aportam todas as coisas esquecidas do mundo.
P - Durante a Flip, escritores como Paul Auster e Martin Amis demonstraram certa inquietação com o momento sombrio que vivemos. E disseram que seus próximos romances refletiriam, de certa forma, esse período. Gostaria que você analisasse esse momento.
JEA - Em primeiro lugar, eu não concordo com essas afirmações. Quando você olha para trás, vê um tempo de sombras. Quanto mais para trás você olha, piores eram os tempos. Há cem anos havia escravidão aqui no Brasil, e eu não conheço sistema mais indigno e injusto que a escravatura. E era aceito. Depois houve o Hitler. Hoje já não seria possível existir um Hitler, nem a escravatura. O mundo não permitiria. Nós melhoramos muito, não há dúvida que há uma evolução ética e moral. Os budistas dizem que a gente evolui em espiral: você recua, mas vai subindo sempre.
P - Que escritores serviram de base para o seu crescimento como escritor?
JEA - Consigo identificar claramente, ao longo de minha vida, os meus momentos de assombro na literatura. Começou com Eça de Queiroz... Jorge Amado foi muito importante para mim, como para muita gente em África, porque nós descobrimos nele uma forma africana de escrever. Depois vieram os latino-americanos, Jorge Luis Borges, Gabriel García Márquez, alguma coisa do Mario Vargas Llosa. Meu mundo é o mundo afro-latino.
* Publicado originalmente no Correio da Bahia
4 comentários:
Legal a entrevista. Ainda mais agora q tenho estudado o assunto Africa. E realmente as pessoas de fora tendem a ver o continente como um todo, esquecendo q tem muita diversidade ali, da Africa do Sul ao Egito.
Agualusa é muito inteligente, vale a pena ler as coisas que ele pensa. E, já que você está indo para o continente, tente dar uma esticada na Namíbia, vizinha a Angola. É um dos lugares mais lindos que existem no mundo (entre no google e dê uma olhada na costa, deserto de um lado, mar do outro). Tem uns passeios de avião pequeno que devem ser bem legais.
abraços
Olá, Paulo, como faço pra citar (em referência bibliográfica e eletrônica) essa entrevista? Vc tem a data que saiu no jornal?
Obrigada, Andréa Mascarenhas
Oi, Andrea
Por sorte, consegui a data em que essa entrevista foi publicada: 15/9/2004. O Correio da Bahia não disponibiliza mais seu arquivo, infelizmente. Acho que com esse dado você pode fazer sua citação.
Obrigado a você.
Paulo
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