Toda a celeuma envolvendo o filme (que não vi) sobre a carreira vertiginosa de Wilson Simonal, abruptamente transmutada em queda livre, me trouxe à tona uma questão que considero crucial nas discussões sobre a relação entre arte, cultura e sociedade: um grande artista merece ser preservado, mesmo tendo sido um ser humano abjeto? Ou melhor: deve-se ao menos preservar a sua obra, ou até ela merece ser relegada ao esquecimento? Não me refiro a Simonal, até porque mal ouvi suas canções e só conheço a sua história superficialmente. Mas as posições extremadas envolvendo o seu caso dão pano para manga, assim como deram em outros tempos a simpatia de Herbert Von Karajan pelo fascismo ou as supostas delações de Elia Kazan durante a caça às bruxas do Macarthismo, só para citar dois exemplos. Jânio de Freitas foi ferino em sua coluna, dizendo que faltou uma palavra no título do filme, que deveria se chamar Ninguém Sabe o (Dedo) Duro que Dei. Paulo Vanzolini foi mais longe: revelou que Simonal se gabava de ter delatado conhecidos do meio artístico. Mas, pelo que tenho lido, o longa de Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal busca uma espécie de reparação póstuma, tentando esclarecer pontos obscuros dessa história e relativizar o linchamento moral de que o cantor foi vítima. Não tenho opinião formada sobre o caso, embora ache estranho aquele episódio da tortura do seu ex-contador por um segurança ligado ao Dops. Minha impressão, olhando de longe, é de que Simonal não era lá flor que se cheire, embora não necessariamente um delator profissional.
Mas não queria falar de Simonal, e sim de outro personagem sobre o qual recaíram acusações muito mais graves, sendo que estas, sim, foram comprovadas e publicamente assumidas. Falo de Louis-Ferdinand Céline, aquele tipo asqueroso que escreveu panfletos ignominiosos pregando o extermínio dos judeus pelos alemães durante a Segunda Guerra. Céline seria um desses tipos facilmente esquecíveis, ou lembrados apenas por sua torpeza, caso não tivesse entrado para a história da literatura com Viagem ao Fim da Noite. Não falo dos seus outros romances porque não os li, mas Viagem é um dos mais virulentos petardos já escritos sobre a estupidez humana, e só ele bastaria para colocar o autor no panteão da literatura francesa do século 20, ao “emporcalhar” o idioma de Proust e Flaubert com desvarios estéticos e palavras arrancadas do cotidiano da plebe. Nele, Céline mostrava ao mundo um pouco do que ele mesmo viria a ser anos depois (o livro é de 1932): um homem sem moral, paranóico e sujo, completamente despido de compaixão. A questão é: esse homem merece o esquecimento? Sinceramente, não sei. Seis milhões de pessoas, quase todas civis, morreram por causa da ação (não se trata, neste caso, de simples inação, mas sim de engajamento mesmo) de pessoas como ele. O que uma mãe judia presa num campo de extermínio junto com os filhos teria dito sobre isso? A arte justifica o mal? Claro que não, nada o justifica. Mas então, o que fazer? Queimar todos os exemplares de Viagem ao Fim da Noite, de Morte a Crédito (que dormita na minha estante há mais de 10 anos), de Norte e de todos os outros romances de Louis-Ferdinand? Colocá-los num índex semelhante ao da Inquisição? Não precisamos disso. Tenho nojo de Céline, mas agradeço ao mundo de hoje por ter me dado a oportunidade de ler sua obra maior e admirá-la, mesmo sabendo que foi escrita por um canalha.
Segue abaixo um texto publicado em 2001 (quando se completaram 40 anos da sua morte), no qual acho que fui muito mais complacente com ele do que seria hoje. O tempo nos leva muitas coisas. A tolerância à estupidez é uma delas.
Arquivo - Ascensão e derrocada de um gênio repulsivo
Aversão e admiração ainda convivem em Céline, morto no ostracismo há 40 anos
Paulo Sales
Asco e fascínio, degradação e genialidade. A ambigüidade é a impressão que se eleva quando o nome Louis-Ferdinand Céline é entoado. Ser humano abjeto, preconceituoso, pleno do ódio mais torpe, ele não pode ser esquecido. Sua obra permanece – o texto tortuoso, árido – fincada na literatura francesa e mundial do século 20. Quarenta anos após sua morte, Céline ainda desperta doses equivalentes de repulsa e admiração.
O criador do sublime Viagem ao Fim da Noite (editado no Brasil pela Companhia das Letras) é o mesmo homem que exigiu dos nazistas o extermínio do povo judeu durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e essa faceta tenebrosa não pode ser menosprezada. Céline não deve ser comparado, por exemplo, a escritores como John Steinbeck e Ezra Pound, que assumiram posições eticamente discutíveis em determinados momentos das suas vidas. Ele foi muito além: escreveu uma série de três panfletos pregando o ódio racial e acusando os judeus de responsáveis pela falência social da França.
Por que então falar dele, em vez de desterrá-lo ao limbo? Porque, por pior que tenha sido como homem, Céline foi um revolucionário das letras francesas, um escritor poderoso, capaz de subverter tudo que até então era considerado genial. Quando surgiu, aos 38 anos, em 1932, com o lançamento de Viagem ao Fim da Noite, Marcel Proust (principalmente) e André Gide eram os ícones estabelecidos na literatura francesa. Escreviam textos edificados sobre o alicerce clássico, herdeiros das frases elaboradas de Honoré de Balzac.
Céline trouxe a imundície, a pontuação irregular, a escória do mundo. Sua matéria-prima era a amargura, a misantropia, a covardia como único motor. Viagem... é um livro doloroso, escrito por um médico de gente humilde, ex-soldado da Primeira Guerra (de onde saiu com graves ferimentos), que já havia perambulado pela África colonial e pela América marcada pelas desigualdades sociais. Enfim, um ser humano acostumado aos dejetos.
Contando a história – com toques autobiográficos – de Ferdinand Bardamu, um sujeito pusilânime, acossado pela maldade e a ignorância da humanidade, o livro conferiu notoriedade imediata ao escritor e reações extremadas por parte da crítica francesa. Vendeu 100 mil exemplares em apenas um ano e foi traduzido para diversos países da Europa, tornando-se uma espécie de representante literário das facções de esquerda. Vale salientar que, à época, o continente passava por convulsões ideológicas, e o comunismo disputava espaço com o nazismo então incipiente.
Mesmo sendo o principal candidato ao Prêmio Goncourt, o mais representativo das letras francesas, o livro não se sagrou vencedor. Os jurados se negaram a conceder uma condecoração tão importante a uma obra repleta de palavrões e opiniões polêmicas, vistas pela ótica do proletariado, dos bêbados, do lado oculto da França.
Um trecho, quase ao final do livro, é emblemático: “Lá bem longe era o mar. Mas eu não tinha mais nada o que imaginar eu sobre ele o mar agora. Tinha outra coisa para fazer. Por mais que eu tentasse me perder para não mais me encontrar diante da minha vida, eu simplesmente a encontrava por todo lado. Voltava a mim mesmo. Minha vagabundagem, a minha, estava terminada. Para mim chega!... O mundo estava fechado! Ao fim é que tínhamos chegado, nós!... Como na festa!... Sentir tristeza não é tudo, seria preciso poder recomeçar a música, ir procurar mais tristeza... Mas para mim basta!... É a juventude que pedimos assim como quem não quer nada... com a maior desfaçatez!...”
A Viagem... se seguiu Morte a Crédito (1936, Nova Fronteira), desprezado pela crítica. No ano seguinte, Céline deu início à própria derrocada. Publicou os tais panfletos anti-semitas e, com a eclosão da guerra, passou a defender abertamente a Alemanha. Tornou-se refém de uma perseguição ideológica veemente. No mais famoso desses textos, Bagatelles pour un Massacre, argumentou que o comunismo de Marx, Engels e Trotski, todos judeus, era na verdade um amplo complô do povo semita para dominar o mundo. A genialidade cedia lugar ao delírio.
Pouco antes do fim da guerra, em 1944, o escritor saiu escorraçado da França para, junto com a mulher Lucette e o gato Bébert, pedir asilo à Dinamarca. Com isso, escapou dos tribunais de guerra e do pelotão de fuzilamento, mas passou um ano e meio numa prisão em Copenhagen. Voltou ao país natal em 1951, doente e em situação financeira lamentável. Seus novos livros, Norte e Rigodon entre eles, tornaram-se fracassos estrondosos. Voltou a exercer a medicina, sem sucesso. Em 1º de julho de 1961, aos 67 anos, foi colhido por uma congestão cerebral. Menos de 30 pessoas acompanharam o funeral.
Nascido Louis-Ferdidand Destouches (Céline era o nome de sua avó materna e madrinha), em 27 de maio de 1894, o escritor certamente ficaria surpreso com o valor pago pelos originais de Viagem ao Fim da Noite, leiloado há dois meses na França: 12 milhões de Francos. Um recorde, superado apenas pelos originais de On The Road, de Jack Kerouac (vendido por 15 milhões de Francos). Céline Secret, testemunho fiel do homem e autor, está sendo publicado em Paris pela viúva Lucette, ainda lúcida aos 87 anos.
Céline é reverenciado por escritores do quilate de Henry Miller (que reescreveu Trópico de Câncer após ler Viagem...), Charles Bukowski e Philip Roth, dentre outros. Roth, judeu e maior escritor norte-americano vivo, assim se refere ao romancista: “Na França, meu Proust é Céline! Mesmo se seu anti-semitismo o torna um ser abjeto, intolerável, trata-se de um grande escritor – para lê-lo, porém, devo deixar em suspenso minha consciência judaica. Céline é um grande libertador: sinto-me chamado por sua voz”.
* Publicado originalmente no Correio da Bahia