Assim como as pessoas, algumas sociedades também padecem, de tempos em tempos, de certas enfermidades. Em momentos específicos da história, é possível perceber uma espécie de Alzheimer coletivo: surtos de amnésia que em maior ou menor medida deságuam progressivamente no aniquilamento das convenções morais ou princípios éticos existentes. É como se vivêssemos num breu espesso, refratário ao aprendizado do passado, que ali fica reduzido a uma quase imperceptível mancha de luz na consciência. Outros momentos de nossa passagem pelo planeta se caracterizam por uma esclerose múltipla em grande escala. Não perdemos a consciência ou a lucidez, mas ficamos impossibilitados de reagir a estímulos, como se nossos braços e pernas imaginários estivessem incapacitados para entrar em luta corporal ou fugir o mais rápido possível da barbárie.
Tanto o Alzheimer quanto a esclerose múltipla puderam ser diagnosticados, por exemplo, na década de 1930, quando os Estados europeus de inspiração iluminista, civilizados (em termos) e sofisticados (idem), assistiram inertes embora conscientes à ascensão do nazi-fascismo, esta sim uma manifestação aguda de Alzheimer. O resultado, todos sabem, foi uma guerra entre a lucidez e a insânia que deu cabo de 200 milhões de vidas. Para nossa sorte, a primeira saiu vitoriosa (novamente em termos, já que a lucidez de antes deu lugar a insânia da Guerra Fria e das guerras quentes no Vietnã, Afeganistão, Coréia e outros quintais da dupla EUA-URSS). Bem ou mal, porém, as décadas de 50 a 70 presenciaram um esboço ainda que impreciso de um mundo melhor, ao menos nos Welfare States, ou Estados de Bem-Estar. Mesmo o Brasil do período dava sinais de que cumpriria a profecia de país do futuro formulada por Stefan Zweig, jogando por terra a crença do general De Gaulle de que não era um país sério.
Há muito pouco, quase nada, desse Brasil nos dias de hoje, assim como a esclerose múltipla deixou de assolar as sociedades atuais (já que nossa lucidez foi parar não se sabe em que nação escandinava). Por outro lado, padecemos de uma pandemia de Alzheimer, seja na Rússia, na África, no Oriente Médio ou nos EUA pré-Obama. Caminhamos, mas não sabemos para onde, cercados por terroristas suicidas, líderes abjetos e uma massa amorfa de ignorantes. Sobrevivemos como náufragos lutando contra rochedos pontiagudos, de um lado, e tubarões, do outro – ou seja, permanecemos reféns da velha máxima do “se ficar o bicho pega...”. Por mais que (e aí volto especificamente ao cenário brasileiro) os indicadores econômicos e sociais apontem para uma ligeira evolução, o que vemos é um país cindido entre ricos estultos e indiferentes e pobres bestializados e entregues a um arremedo de hedonismo sem fim. Só uma realidade assim poderia fabricar pais que jogam filhos pela janela, redes virtuais que propagam de forma natural o abuso sexual de crianças ou mesmo rapazes que arrastam um carro com um menino pendurado do lado de fora. Nessa terra de ninguém, o conceito de nação se pulveriza, como neurônios morrendo pouco a pouco num cérebro doente. E o que resta são os despojos de um passado promissor, borrados, apagados e inúteis.
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