segunda-feira, 31 de agosto de 2009

“A minha alucinação é suportar o dia-a-dia”


É bem provável que nem Belchior, muito menos Vanusa, tenham apreciado a forma como deixaram esta semana o incômodo território do ostracismo para voltar ao centro dos holofotes. Ao contrário de outras pessoas, fiquei constrangido ao ver as imagens que mostram a cantora, aparentemente embriagada, tentando agarrar inutilmente a melodia e a intrincada letra do hino nacional num evento da Assembléia Legislativa de São Paulo. Ela alegou mais tarde que um remédio para labirintite provocou a confusão mental responsável pela execução desastrada, que teria repercussão bem menor caso não estivéssemos em plena era do You Tube. Lembro vagamente de Vanusa no auge da fama (ou de algo próximo disso) cantando Paralelas, sucesso de autoria justamente do outro personagem da semana.

Supostamente desaparecido há dois anos, como noticiou uma reportagem do Fantástico na semana passada, Belchior reapareceu ontem em cadeia nacional numa pousada no Uruguai, onde está vivendo com a mulher. Seu sumiço, comentado invariavelmente em tom jocoso, suscitou uma série de brincadeiras, incluindo montagens de Photoshop na internet e piadinhas infames, mas não lembro de ter visto em nenhum lugar qualquer informação relevante sobre a sua obra. Uma obra que acima de tudo merecia mais atenção e respeito, por mais que o tempo e a decadência artística a tenham esmaecido a ponto de torná-la um ponto obscuro nesta primeira década do século 21.

Comecei a gostar de Belchior na adolescência, influenciado por meu irmão mais velho, que vivia comprando seus discos. Era uma espécie de bardo ligeiramente exótico, com voz fanhosa e bigodão de mariachi, mas nem por isso um bardo menos talentoso. Seus versos, lá pelo final dos anos 70, eram precisos e inspirados, com forte acento social, que faziam lembrar o Dylan acústico de Mr. Tambourine Man e The times they’re a-changin’. Para comprovar, basta lembrar de frases como: “A minha alucinação é suportar o dia-a-dia, e o meu delírio é a experiência com coisas reais”. Ou: “Não preciso que me digam de que lado nasce o sol, porque bate lá meu coração”. Ou ainda: “Como uma metrópole o meu coração não pode parar. Mas também não pode sangrar eternamente”. Ou muitos, muitos e muitos outros versos que denotavam uma erudição rara e uma sensibilidade sem meio-termo.

Belchior era fruto de tempos duros, de uma época de contestação num país rude e belo, que ainda transitava entre o arcaico e o moderno, mais ou menos como vimos em Bye bye Brasil, de Cacá Diegues. E, acima de qualquer coisa, era um artista comprometido com a realidade desse país, que retratava com agudeza em suas canções. Talvez por isso, sua reaparição, nesta era de culto à mediocridade em que vivemos, só pudesse se dar como de fato se deu: com uma reportagem engraçadinha e recheada de frivolidades num programa engraçadinho e recheado de frivolidades como o Fantástico.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Contraponto


A indignação é inimiga da sensatez. Não são raras as vezes em que vociferamos, saliva escorrendo pelo queixo, contra o absurdo de um crime ou a desfaçatez de um político que acabamos de ver na televisão ou ler no jornal. Opiniões coléricas são quase sempre desatinadas. Por isso é sempre bom deixar a poeira baixar e, de vez em quando, recorrer a pontos de vista mais lúcidos e serenos, muitas vezes diametralmente opostos aos nossos, para que possamos resgatar nossa própria lucidez e serenidade.

Eu mesmo me vi tomado pela indignação ao saber da libertação do terrorista líbio Abdelbaset Ali Mohmed Al Megrahi, responsável pela explosão de um avião na Escócia em 1988, que causou a morte de 270 pessoas – todos os passageiros e tripulantes mais onze em terra. Sujeito abjeto, Megrahi foi recebido com festa na Líbia, para desespero de Barack Obama e dos parentes das vítimas, quase todos britânicos e norte-americanos. O tribunal escocês alegou motivos humanitários – “razões de compaixão”, para ser mais preciso – para libertar o terrorista, que havia sido condenado a prisão perpétua, mas sofre de um câncer em estágio avançado na próstata, que provavelmente o matará em questão de meses.

Qual foi a minha primeira reação? Condenar, obviamente, a decisão da corte escocesa. Por que dar a um assassino em série o prazer de ser aclamado por uma multidão de compatriotas no seu país de origem, enquanto pais, mães, filhos e netos foram destituídos das pessoas que amavam? Encontrei a resposta para esta pergunta no blog Diário do Centro do Mundo (http://colunas.epoca.globo.com/pelomundo), do jornalista Paulo Nogueira, correspondente da revista Época em Londres. Com a serenidade dos sensatos, ele foi certeiro ao analisar a questão, como nos trechos abaixo:

Mas, indo à essência do caso, o governo escocês tem um ponto que me recordou a lógica de Churchill diante da tortura na Segunda Guerra Mundial. Como os inimigos torturavam, alguém sugeriu a Churchill que os britânicos fizessem o mesmo. Ele disse que era um erro se igualar a quem pratica barbaridades.”.

“A civilização deve ganhar da barbárie não pela imitação, e sim pelo contraponto.”

“Razões de Compaixão’, num caso tão dramático, foi um momento fugaz de triunfo da elevação humana sobre a selvageria, da civilização sobre o terror - ainda que possa ter parecido o contrário.”

São argumentos que enriquecem nossos questionamentos e nos fazem repensar nossas convicções, mesmo que não concordemos inteiramente com eles, como eu não concordo. Mas, se algum dia vencermos a barbárie – e não me refiro apenas à barbárie de gênese fundamentalista, mas à nossa barbárie cotidiana –, será certamente porque a colocaremos no lugar que lhe é devido. Não iremos nos bestializar, aderir ao confronto estúpido, ressuscitar o olho por olho, dente por dente. Mesmo sendo filosoficamente a favor da pena da morte, sou contrário à sua aplicação, sobretudo em países marcadamente desiguais, injustos e dados a confissões sob tortura, como o Brasil. Mesmo acreditando que quem nos priva deliberadamente do nosso único bem merece ser privado do seu, não creio que essa privação proporcionará aos nossos descendentes uma civilização menos truculenta. Como sugere Paulo Nogueira, temos que nos contrapor, e não nos igualar à barbárie, por mais que essa escolha possa parecer inócua e covarde à primeira vista.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Minha redenção


Acredito que com o passar do tempo é possível reconstituir o cordão umbilical entre a criança e a mãe, perdido logo após o nascimento. Um cordão imaginário, mas nem por isso menos resistente, capaz de vincular não só filho e mãe, mas também filha e pai. Como se fossem movimentos distintos de uma mesma sinfonia, unidos pelo todo e separados apenas na aparência. Nem sempre esse cordão se desenvolve suficientemente, e em alguns casos sequer se desenvolve.

Nos nove anos em que estou junto com minha filha, completados hoje, formou-se entre nós um cordão espesso, constituído de uma matéria sólida, imune a brigas ou castigos. Chamar essa matéria de amor seria reduzir a sua complexidade, embora este seja o sentimento predominante. Existe algo além, talvez um respeito recíproco ou quem sabe uma fervorosa admiração pela pessoa que ela está se tornando. Altruísmo é artigo raro nas sociedades atuais, e mais ainda em crianças, naturalmente competitivas e naturalmente narcisistas. Pois essa talvez seja a característica mais marcante da sua personalidade, traduzida na preocupação genuína com a família e as amigas e no comovente afeto por cães vadios.

Em mais de uma ocasião ela disse que, se ganhasse muito dinheiro num prêmio da loteria, construiria um albergue para esses cães. Uma vez, na pracinha onde levávamos nossa cachorrinha que não temos mais para passear e brincar com outros bichos, ela não aceitou que um cachorrão vira-lata, soturno e tristemente solitário, fosse tangido pelos donos dos animais de raça, dos quais tentava se aproximar. Ela me perguntou, chorando: “Pai, por que estão fazendo isso, por que não deixam ele brincar com os outros?”. Respondi meio sem jeito, dizendo que era porque não estava vacinado ou outra bobagem qualquer. Ela não aceitou, pegou nossa cachorrinha e levou até o cachorrão. Fez carinho nele, falou com ele. Percebi, emocionado, que estava diante de um ser humano especial.

Seu altruísmo e sua compaixão se manifestam também nas rodas de amigas, onde ela sempre compartilha seus brinquedos, ao contrário das outras garotas. Nunca a forçamos a fazer isso, apenas estimulamos. Faz parte do seu caráter de garota ainda longe da adolescência, mas em alguns momentos madura o suficiente para me mostrar que estou cometendo uma injustiça ou fazendo uma escolha equivocada. Quando ela nasceu, escrevi um poema em que dizia que ela me redimia, conferindo eternidade à minha finitude. Gosto de saber que permanecerei no mundo de maneira tão plena.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A ovelha negra da família


Uma trajetória que desde lá atrás, ainda nos seringais do Acre, foi pautada pela coerência – política, ideológica e ética – não podia ter um de seus capítulos cruciais encerrado de forma diferente. Marina Silva não deixa o PT após 30 anos porque ansiava por mais visibilidade ou porque as disputas internas e pressões externas a tiraram do Ministério do Meio Ambiente. Marina deixa o PT porque não se enxerga mais nele, não se vê refletida naqueles homens que envelheceram mal, tornaram-se patéticos arremedos de si mesmos e não têm mais o que oferecer à sociedade. Com sua luta delicada e silenciosa – mas inapelavelmente determinada – por um país menos desigual e mais sustentável, a senadora dá prosseguimento a uma saga admirável de superação e ferrenha dedicação aos próprios princípios, iniciada quando deixou o seringal e a família paupérrima ainda adolescente, analfabeta e doente, para enfrentar a vida em Rio Branco. Se vai ser candidata a presidente é outra história. E talvez um projeto de tamanha envergadura – no qual as concessões e os malabarismos morais se tornam rotina – não seja mesmo adequado ao seu jeito sincero de fazer política. Tanto no aspecto frágil quanto na perseverança, Marina me lembra outro excepcional político lá do norte, o já falecido Jefferson Peres. Pessoas como eles dois, se multiplicadas, poderiam fazer um bem danado ao país. Mas a política, no Brasil, é quase sem exceção uma atividade de escroques, em torno dos quais orbita uma legião de vassalos pouco afeitos ao trabalho. Em suma: um ambiente impróprio para pessoas altruístas, vistas quase sempre como ovelhas negras ou aberrações descabidas. A nossa sorte, se é que podemos falar assim, é que Marina sempre soube transitar por ambientes hostis sem se ferir.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Fundamentalismo à brasileira


Pouco me importa essa briga de pitbulls eletrônicos envolvendo a Rede Globo e a Record de Edir Macedo. Mas é inegável que ela levanta uma questão crucial à nossa sociedade, jogando luz novamente às atividades do auto-intitulado bispo, dono da Igreja Universal do Reino de Deus, mais uma vez envolvido em acusações de enriquecimento ilícito. Enriquecimento óbvio, diga-se, que maltrata nossa inteligência e mina os bolsos raquíticos dos que pagam dízimo. O que incomoda nessa história toda é que, mesmo depois de tudo que já foi dito e visto, ainda existam pessoas capazes de entregar dinheiro de mão beijada a esses ícones neo-pentecostais de paletós cafonas e propensão para o histrionismo. Há mais ou menos uns 10 anos, se não me engano, a própria Globo – que não é nenhuma vestal nessa história – já havia divulgado imagens de Macedo e seu grupo comemorando uma polpuda arrecadação dominical com sorrisos safados e trenzinhos esdrúxulos. Estava lá, para todos verem. Sem montagem ou distorção de contexto. Todos assistiram àquela involuntária confissão de culpa em horário nobre, assim como viram a bispa Sonia e o seu marido, da Renascer em Cristo, serem presos com uma fortuna em dinheiro vivo não declarada ao chegarem aos Estados Unidos. Todos, incluídos aí os adeptos dessas seitas, que viram muito bem para quem dão seu dinheiro, um dinheiro suado, amarfanhado, que faz uma falta danada na hora de pagar a luz, o gás ou o mercadinho fiado. Se optam por acreditar nos argumentos estapafúrdios dos seus líderes espirituais e continuam levantando as mãozinhas para o céu é outra história.

Mas não dá para aceitar passivamente essa extorsão consentida que dezenas de religiões praticam abertamente no país, estendendo seus tentáculos até o Congresso e praticando uma caça às bruxas contra os cultos de origem africana. Não dá para aceitar passivamente que tenhamos no Brasil, em plena aurora do século 21, seres humanos quase tão aprisionados ao fanatismo quanto a massa islâmica que aceita e alimenta o fundamentalismo no Oriente Médio. Obscurantismo ainda é moeda forte, seja lá ou aqui, ou não seria possível construir um império como a Record ou escandalosos templos kitsch de louvor à vulgaridade como os que vemos em todas as grandes cidades do país. Nossa vantagem em relação a eles é que aqui o rebanho serve apenas para ser achacado, em vez de ser recrutado para missões suicidas. Ao menos por enquanto, eu espero.

domingo, 16 de agosto de 2009

Oráculos


Alguns homens sobrevivem à própria morte. Permanecem na Terra por tanto tempo, tendo acumulado tantas experiências e reminiscências, que se convertem em oráculos do seu tempo. Desde que venha acompanhada de uma produção intelectual intensa e fértil e de condições dignas de saúde, a longevidade é uma bela dádiva. Apesar dos seus efeitos colaterais: a perda de quase todos os que conhecemos, a sensação de vácuo existencial trazida pela aposentadoria e pelo fato de que a maciça maioria dos seres humanos vivos é bem mais nova do que você, as mudanças nos costumes, o sentimento de inadequação diante de um mundo que se transforma como extrema ferocidade. E, acima de tudo, a longa convivência com a própria velhice e tudo que vem com ela a tiracolo: doenças cardíacas, senilidade, raciocínio embotado. Por tudo isso, admiro profundamente pessoas como o bibliófilo José Mindlin, o arquiteto Oscar Niemeyer ou o cineasta português Manoel de Oliveira, que diariamente aplicam dribles certeiros na morte e continuam produzindo em escala industrial.

Ernesto Sabato é outro desses grandes homens do nosso tempo. Seu principal romance, Sobre Heróis e Tumbas, está incluído no rol dos grandes livros que tive a honra de conhecer. E ontem concluí A Resistência, um livro de ensaios em forma de cartas ao leitor, sugestão de um amigo que conhece do riscado (http://verbotransitivo.blogspot.com/). Mas este não me agradou muito, sobretudo pelas reflexões ingênuas e saudosistas que perpassam todo o livro e enfraquecem o seu discurso. De qualquer modo, seu humanismo me comove. Um humanismo atávico, orgânico, secular, arraigado há muito tempo em sua visão de mundo. E Sabato vê um mundo sombrio neste início de século. Um mundo prestes a desmoronar e dar lugar a outro, que o seu fiapo de otimismo acredita que poderá ser um mundo melhor.
Mas o que me marcou em A Resistência não foi nada disso. Foram aqueles pequenos parágrafos confessionais nas duas derradeiras páginas do livro, nos quais ele reflete sobre a própria longevidade e o outro lado dessa moeda: o fim, há tanto tempo esperado que é quase como um velho conhecido. Valeu a pena chegar até essas páginas e poder ler coisas como as que seguem abaixo:

“Algumas vezes na vida senti que corria perigo e podia morrer. E, no entanto, aquele sentimento de morte em nada se parece com este que vivo agora. Então ela teria sido parte das minhas lutas ou de alguma outra circunstância: um fracasso dos meus projetos. Eu poderia ter morrido inesperadamente, e não teria sido como agora, quando a morte vai tomando conta de mim aos poucos, quando sou eu quem se inclina a ela.”

“Há dias em que me invade a tristeza de morrer e, como se fosse possível enganar a morte, corro a me entrincheirar em meu estúdio e me ponho a pintar com frenesi, ciente de que ela não me arrebatará a vida enquanto houver uma obra inacabada entre minhas mãos. Como se a morte pudesse entender as minhas razões.”

“Antigamente a morte era para mim a prova da crueldade da existência. O fato que diminuía e até ridicularizava minhas prometéicas lutas cotidianas. O atroz. Então eu costumava dizer que, para me levarem até a morte, precisariam do auxílio da força pública. Era assim que eu exprimia minha decisão de lutar até o final, de não me entregar jamais. Mas agora a morte se avizinha, sua proximidade me irradiou uma compreensão que nunca tive; neste entardecer de verão, a história do vivido está à minha frente como que posta em minhas mãos, e às vezes um tempo que eu julgava desperdiçado se mostra com mais luz que outro, que eu tinha por sublime”.

A Resistência foi lançado originalmente em 2000. Ou seja, nove anos depois de escrever esses textos, Sabato continua por aqui, sem dúvida surpreso com a generosidade da dita cuja para com ele. Não deixa de ser curioso que, mesmo tendo vivido tanto tempo, ele ainda reflita sobre o fim com perplexidade e torpor semelhantes às de um homem de 20 ou 40 anos, só que com muito mais sabedoria e dignidade. Afinal, como ele mesmo diz, a morte é a prova da crueldade da existência. Seja ela longeva ou curta como um sopro.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Excrementos


“Para certos políticos brasileiros, a vida pública é a continuação da privada.”
Aparício Torelly, o Barão de Itararé

Assim como bairros, ruas e cidades, certas pessoas também deveriam passar por um processo de saneamento básico. E não me refiro apenas àquelas que se despojam dos próprios dejetos em público, sejam eles líquidos ou sólidos, sejam elas pobres, ricas ou remediadas. Falo desses indivíduos de moral enviesada, que habitam e representam instituições falidas. Indivíduos cujo esgoto é lançado em forma de discursos e argumentos construídos sobre o terreno arenoso das platitudes e do cinismo. Nessa República do 171, senadores se irmanam para manter abertamente seus achaques, enquanto o presidente da República, cada vez mais adepto do compadrio, da passividade e dos panos quentes a qualquer custo, macula a própria biografia – já um tanto esmaecida pelo mau uso – ao abraçar e defender publicamente dois dos políticos mais torpes da nossa história recente.
Dirão que fazer política é isso mesmo, é sujar as mãos. Mas não seria o caso de se optar por fazer o oposto, até por uma medida de higiene em tempos de gripe suína? De simplesmente dizer: “Com essa laia eu não me misturo”? Não. Todos os gatos são pardos nessa Brasília que se tornou um vaso sanitário de grandes proporções com a descarga quebrada. Quem resta? Ou melhor, o que resta? O voto nulo? O ceticismo absoluto? O despudor e a apatia? Já cheguei a achar que os políticos eram o espelho da sociedade. Mas não, a sociedade é que é o espelho dos políticos. Se assistimos todos os dias a esses caras comendo nossa marmita, por que faríamos diferente? Vamos nos locupletar e dane-se o resto (no caso, o andar de baixo, que não tem como se locupletar). É um raciocínio simplório, mas compreendo quem pensa assim. O que fica cada vez mais claro nisso tudo é que é o Brasil quem precisa de saneamento básico. Um saneamento completo e eficiente, capaz de extinguir o esgoto a céu aberto através de tubulações sólidas e firmes, por onde possam passar urina, fezes, deputados, senadores e outras modalidades de excrementos.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A perplexidade é um animal em extinção


Quando vejo mais um seqüestro-relâmpago terminar não como um seqüestro-relâmpago, mas com um assassinato – no caso, o de uma mulher de 39 anos –, fico me sentindo como aquele xerife vivido por Tommy Lee Jones em Onde os Fracos Não Têm Vez. Como ele, não consigo reprimir a perplexidade frente ao avanço irrefreável da barbárie sobre o frágil território da civilização. Olho para minha cidade e não a reconheço. Sequer consigo refletir sobre esse avanço, ou sobre o fato de que uma criança de um ano e meio está órfã de mãe por obra não da natureza, mas da estupidez humana. Muito menos me sinto capaz de julgar sumariamente os assassinos, conjeturar sobre o que deveria ser feito com eles (que sequer sei quem ou quantos são): se uma tortura sádica seguida de um tiro na nuca ou 30 anos mofando numa penitenciária com superlotação. Fico apenas paralisado pelo pasmo, emudecido pela exaustão. E com a certeza de que a guerra foi declarada. Parafraseando o título original do filme dos Coen, sou um velho de 39 anos vivendo num país que não me quer, habitado por pessoas que não me entendem. Como o xerife de olhar cansado que Jones personifica tão bem, sinto como se estivesse de saída, prestes a dar lugar a uma nova geração devidamente vacinada contra a violência. Ou melhor: contra a perplexidade.

domingo, 2 de agosto de 2009

Rituais de despedida



Esta semana entrei no elevador de um consultório médico com minha filha para levá-la ao dentista. Junto com a gente, entraram também um senhor numa cadeira de rodas com a mulher e um ajudante. Vi de relance que havia uma cicatriz na fronte do senhor, parcialmente encoberta pelo cabelo, e percebi que ele falava com dificuldade com o rapaz, de um jeito quase inaudível. Vi também quando ele deu a mão a minha filha, esboçando para ela um sorriso. Minha filha sorriu de volta e pegou na mão dele. Então a porta do elevador se abriu e eles saíram. Mas de certa forma aquele homem doente continuou ali, ao me fazer voltar alguns anos e lembrar do meu pai também doente, agonizando lentamente enquanto um câncer se alastrava por seu cérebro. Ambos tinham os cabelos surpreendentemente pretos para a idade e ambos exalavam uma simpatia natural, ocultada em parte pela sisudez. Meu pai foi embora há quase seis anos e aquele homem não deve demorar muito para também dar adeus ao mundo. Um dia será a minha vez, mas espero não passar por um ritual de despedida tão doloroso quanto o deles. Espero me manter longe dos consultórios médicos com sua indiferença e seus prognósticos sombrios, das salas de cirurgia, dos tratamentos invasivos e dolorosos, das visitas às salas de quimioterapia, onde partilhamos nossa desgraça, do balanço final que fazemos silenciosamente e que invariavelmente pende contra nós, das visitas que não desejamos, das lágrimas dos que nos amam observando nossa decrepitude, da solidão atroz. Espero, enfim, ir num suspiro tranqüilo, deitado e sem dor, e já tão velho que poucos dêem por minha falta.
Admiro gente que luta com determinação, dignidade e coragem contra uma doença, como faz o vice-presidente José Alencar, que já passou por 15 cirurgias e mesmo assim o câncer permanece, inarredável como um cravo no ouvido. É claro que ele não vê assim, mas sua vida neste momento se resume apenas a um duelo injusto e contínuo com a morte, como se ele fosse o touro e ela, o toureiro que vai minando lentamente suas energias ao fincar espadas no seu lombo. Sabemos como isso termina, embora uma vez na vida o touro leve a melhor. Mas aí sempre aparece outro toureiro para dar cabo dele. Em resumo: não temos escolha. Em Homem Comum, Philip Roth narra esse processo de inevitável declínio com uma lucidez implacável. Cada resultado ruim num exame implica um desânimo, uma sensação de impotência que não cessa até atingirmos a inconsciência, embora vez por outra pipoquem espasmos de entusiasmo. Como demonstra Roth ao final do livro: “Ele perdeu a consciência, sentindo-se longe de estar derrubado, de estar condenado, ansioso para realizar-se mais uma vez, e no entanto nunca mais despertou. Parada cardíaca. Deixou de ser, libertou-se do ser sem sequer se dar conta disso. Tal como ele temia desde o início”.