“Eu tinha esperança de que aquele marco de estupidez fosse o fundo do poço em termos de violência, e que se tomasse consciência de que existem outros caminhos. O que a gente vê é que foi um marco para a banalização da violência.”
Ivan Fairbanks Barbosa, pai de um dos brasileiros mortos no ataque ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001.
Três anos antes dos atentados que destruíram o World Trade Center, eu subi ao topo de uma daquelas torres, não lembro agora qual. Soprava um vento frio de outono e a visibilidade era um pouco turva, mas dava para ver, descortinados à minha frente, o mar de prédios de Manhattan lá embaixo, como numa maquete, e as pontes que ligam a ilha ao Brooklyn e ao continente. Era uma construção maciça, retangular, sem a elegância esguia do Empire State, mas mesmo assim um portento de aço, vidro e concreto. Aquilo definitivamente não tinha sido feito para cair. Naqueles dias, não existia medo em Nova York. Afinal, não tínhamos chegado ainda ao novo século e vivíamos num limbo pós-século 20, encerrado prematuramente em 1991 com o esfacelamento da União Soviética, de acordo com Eric Hobsbawm. Nada, nem as apocalípticas e hiper-realistas previsões dos filmes-catástrofe de Roland Emmerich, poderia levar a crer que o mundo entraria de modo tão brutal no século 21, como de fato entrou no dia 11 de setembro de 2001.
Talvez por tudo isso – pelo inesperado de um ato terrorista daquelas proporções, pela solidez inconteste (embora ilusória) daqueles prédios, pela imagem aterradora dos aviões mergulhando nos paredões –, esses atentados até hoje provocam tamanha perplexidade. Passados oito anos, como reprimir o pasmo frente à nova geopolítica da barbárie que se desenhou para além da fumaça das torres desabando e concebendo um imenso caixão coletivo, onde foram enterrados milhares de seres humanos? Lembro bem da minha reação ao ver as primeiras imagens, que pareciam uma animação grosseira em 3D: “É claro que os prédios não caíram, aqueles prédios não caem”. Ainda hoje penso nas pessoas atemorizadas dentro dos aviões que sobrevoavam Manhattan. Algumas até devem ter pensado: “Bem, eles vão descer no JFK ou em Newark e exigir alguma coisa em troca de nossa libertação. Mais ou cedo ou mais tarde isso termina”.
Numa entrevista a que assisti hoje na TV UOL, o diretor teatral Gerald Thomas, que presenciou os ataques, define a Nova York pós-atentados como “uma cidade amputada”. Não voltei mais lá, infelizmente, mas acredito que seja uma metáfora adequada. Impossível para os habitantes não sentir na carne aquela perda, algo muito próximo, talvez, do incômodo que os amputados sentem na perna que não têm mais. E o que parecia o fundo do poço, como imaginou Ivan Fairbanks Barbosa no depoimento reproduzido no início deste texto (também retirado da matéria da TV UOL), se constituiu na aurora de uma nova era. Um período de desrazão, estultice e violência exacerbada de parte a parte. Firmou-se assim, a partir de setembro de 2001, um suposto embate entre civilização e barbárie, que mobilizou intelectuais, escritores, políticos e outras personalidades, cada um marcando terreno com sua urina ideológica.
O problema é que neste caso, ao contrário da contenda envolvendo Eixo e Aliados na Segunda Guerra, não existe um lado escuro da força. Civilização e barbárie não ocupam lados opostos, até porque há mais semelhanças que diferenças entre as ações de George W. Bush e as de Osama Bin Laden. Ambos freqüentam uma zona cinzenta habitada por interesses escusos, fanatismo, paranóia, desprezo pelo outro e exploração da ignorância. Um território refratário a boas intenções ou atos heróicos, habitado exclusivamente pela covardia.
A conseqüência, de qualquer forma, é que nunca ocidente e oriente estiveram em planos tão opostos. Nem mesmo na Guerra Fria havia menosprezo mútuo tão intenso. Os americanos odiavam os comunistas russos – e vice-versa – por serem comunistas, não por serem russos. Hoje o ódio recíproco é antes de tudo étnico. Uma categoria de ódio muito mais difícil de ser extirpada dos corações e mentes envolvidos. É fato, também, que os norte-americanos reagiram com uma ira que beirou a insanidade, apesar de terem razões justas, como haviam feito na Segunda Guerra com os japoneses (ninguém me convence de que as bombas de Hiroshima e Nagasaki foram uma decisão militar racional para pôr fim à guerra e evitar mais mortes. Aquilo foi uma vingança desproporcional ao ataque de Pearl Harbor).
O chato de tudo isso é que o mundo ficou mais perigoso. Viajar para a Europa e os EUA virou um suplício. Ser estrangeiro nesses lugares também, principalmente se você carrega feições ou sobrenomes suspeitos. Se já eram quase insuportáveis no passado, países como Iraque, Irã, Israel, Afeganistão e Líbano ficaram ainda piores, e não há sinal de melhora no horizonte. Um alento, se é que se pode chamar assim, é que o ocidente parece disposto a dialogar, afinal Bush e sua corja foram tardiamente banidos da Casa Branca e no lugar deles entrou um homem ao que parece decente e de pensamento pluralista. No oriente, porém, o sectarismo belicista e a intolerância permanecem. São chagas milenares, recentemente despertadas, e não vai ser fácil encontrar a canção de ninar que as faça dormir de novo.