Há momentos em que a dor nas costas causada pela espondilite provoca em mim uma exaustão irritante. É uma dor contínua, a não ser que tome um relaxante muscular, e se acentua quando este corpo sedentário faz movimentos simples, como levantar rápido da cama ou correr. Uma chatice, em suma. Mas nada além de uma chatice. Afinal, há doenças muito mais tenebrosas, cruéis mesmo, capazes de nos furtar a alegria, o prazer de viver e, pior, a dignidade. Outro dia li, no caderno Mais! da Folha de S.Paulo, o depoimento do historiador inglês Tony Judt sobre o mal que se abateu sobre ele. Judt sofre de esclerose lateral amiotrófica. Uma doença neuromuscular que provoca paulatinamente a perda dos movimentos do corpo: primeiro os braços, depois as pernas, tronco, pescoço e, no estágio mais avançado, os músculos que envolvem o sistema respiratório, finalizando com uma parada cardíaca. Em questão de meses ou, na hipótese mais otimista, um ano ou dois, perde-se completamente a capacidade de realizar atividades prosaicas, como caminhar, comer, se coçar, ajeitar os óculos, mudar o canal do controle remoto, ir ao banheiro ou até dormir. Enfim, o corpo se mata. Apenas a lucidez permanece, o que não deixa de ser uma crueldade adicional. É a vulnerabilidade em seu estado mais pleno. Ou, como diria, o próprio Judt, “um aprisionamento progressivo sem liberdade condicional”. Comparando-se a Gregor Samsa, que se vê subitamente transformado num inseto em A Metamorfose, de Kafka, o historiador relata sem auto-compaixão sua rotina de “múmia moderna”. Descreve, por exemplo, as agruras de uma noite em claro, hora em que o cérebro compensa a imobilidade do invólucro em que está preso com uma profusão de questionamentos, despejados em cascata madrugada adentro. E eu aqui irritado com minha dor nas costas.
Conheço a esclerose lateral amiotrófica. Perdi uma tia para essa que é uma das mais brutais maldições dos tempos modernos. No caso dela, foi apenas o epílogo terrível de uma existência que passou por percalços ainda piores, mas aqui não é lugar para falar deles. Tenho por minha tia uma dívida de gratidão, afinal foi ela quem me ensinou a ler. Vi a pessoa que me mostrou por que B mais A é BA sendo aos poucos tomada pela doença. De início, a falta de movimento dos braços impedia que almoçasse sozinha. Menos de um ano depois, ela compareceu à minha festa de casamento já com os movimentos das pernas bastante comprometidos. Na última vez que a vi, estava encerrada numa cama sem poder mexer sequer o pescoço, de onde saía um tubo que ligava seus pulmões a um aparelho de respiração artificial. Falou comigo, sorriu com dificuldade, e perguntou por minha filha. Morreu em 2002, época em que eu estava morando em Fortaleza. Coincidência ou não, comecei a escrever nesse período um romance, até hoje inacabado (sobre o qual já falei aqui no blog), e me inspirei nela e na sua doença para compor um dos personagens. No caso, a mãe de Renato, um dos quatro protagonistas de Puppy e o mais sofrido deles. Coloco abaixo alguns trechos do livro que abordam a relação do filho com a mãe moribunda. Mas, volto a lembrar, trata-se de uma obra inacabada, escrita há quase oito anos.
“O que podia fazer? A quem recorrer? Os remédios para o tratamento estavam acabando e dali a alguns dias ele teria de começar a pensar no tubo de oxigênio, que mais cedo ou mais tarde sua mãe precisaria usar. Não foi assim com tia Regina, com tio Adamastor e com quase todo mundo daquela família, assolada por essa maldição hereditária? Renato sabia que ele mesmo não estava livre da doença, e poderia terminar algum dia como todos aqueles parentes. Sem conseguir mover um músculo, o corpo morto, só a consciência trabalhando a toda, maquinando formas de suicídio impossíveis. Era uma doença tão cruel que não dava ao portador sequer a possibilidade de se matar. A não ser que se jogasse de um prédio logo ao primeiro sinal: a cãibra persistente, que passa a consumir diariamente as pernas e braços e progressivamente os deixa – como ao pescoço, mãos e dedos – totalmente paralisados. Sua mãe já não mexia mais nada, e dali a algumas semanas não conseguiria sequer respirar sem a ajuda de um aparelho de oxigênio, e precisaria de uma enfermeira vinte e quatro horas por dia, e Renato não fazia a menor idéia de como pagar tudo isso.”
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“Renato beijou a mãe na testa. A paralisia da face a encontrara com a face virada para a esquerda. Nessa direção foi colocada a TV, única distração para uma mulher sem movimentos, de voz enfraquecida e cada vez mais angustiada. Na semana anterior, Renato havia passado uma tarde inteira na faculdade acessando alguns sites especializados na doença. Havia poucos tópicos listados nos mecanismos de busca da internet, e nenhum deles trazia qualquer esperança de cura ou tratamento para a esclerose lateral amiotrófica. Apenas relatos de outros casos de pessoas paralisadas, esperando a morte da maneira mais desesperada e tediosa possível. Renato vinha percebendo uma mudança de humor na mãe nos últimos dias: antes conformada e com um sorriso postiço sempre disponível para uma eventual necessidade, ela vinha se dedicando ultimamente a dirigir um olhar entre irado e desencantado para a imagem de Nossa Senhora de Aparecida, instalada num pequeno pedestal de madeira no canto do quarto, atrás da televisão. Faziam companhia à santa um São Lázaro com o tronco recheado de chagas repugnantes e um São Jorge flagrado no momento exato em que enfiava a espada no dragão. Renato gostava de brincar com essa estatueta, a de São Jorge, quando pequeno, mas sua mãe reclamava e a levava de volta ao pedestal. Lembrou da mãe quando ainda andava: tinha agilidade, ajudava Marinalva na limpeza da sala, espanando móveis (lenço na cabeça, avental com estampa quadriculada), regando as poucas plantas do apartamento, trocando a roupa de cama. Era tão bonita: ele sempre se orgulhara da elegância da mãe nas reuniões de pais e festinhas comemorativas do primário. Agora ela repousava à sua frente, o corpo pesado e cada vez mais gordo. Os braços, jogados a esmo, às vezes coçavam muito e ela gritava pedindo ajuda. Usava fraudas geriátricas descartáveis, e Renato sempre saía do quarto ou desviava o olhar do dedicado processo de limpeza executado por Marinalva. Olhou a mãe ainda uma vez, da porta do quarto: ela não podia vê-lo, pois o rosto estava voltado para o lado oposto. Os cabelos não estavam mais sendo tingidos a seu pedido, e agora tinham uma cor indefinida, embora o branco cada vez mais proliferasse sobre as pontas castanho-claras, como um batalhão que ataca com surpresa e eficiência o flanco inimigo.”
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“A chuva se extinguiu, mas o vento puxava sua roupa como um mendigo insistente. Renato repeliu as lufadas fechando ainda mais o casaco. Quando abriu a porta, deparou com seu tio Alcebíades sentado no sofá. As luzes do apartamento estavam todas acesas. A imagem de sua mãe e a possibilidade de algo ruim assombraram de imediato a mente de Renato.
- Oi, Renatinho.
- Tio Bibo, aconteceu alguma coisa?
- Nada demais. Sua mãe se sentiu mal, mas tá tudo bem.
- Como assim “tudo bem”? Cadê ela?
- Foi pro hospital. Sente aqui.
- O que aconteceu? – Renato continuou de pé.
- Ela teve dificuldade pra respirar e precisamos chamar uma ambulância – Alcebíades media as palavras.
- Ela morreu? – Renato se viu perguntando, já em desespero.
- Não, não. Calma, Renatinho. Ela só foi transferida para o hospital. Os médicos da ambulância precisaram fazer uma traqueotomia – Alcebíades se levantou e procurou amparar Renato, que a essa altura sentia um desamparo lancinante. – Tá tudo bem.
- Qual é o hospital?
- Sírio-Libanês.
- Puta merda! É muito caro.
- Fique tranqüilo. Eu conheço um médico de lá, gente de primeira. Eles não vão cobrar nenhum absurdo.
- Porra, meu tio, qualquer dinheiro a mais aqui em casa já é um absurdo.
Renato se sentia entre irritado e abatido, como se participasse de um combate do qual tinha consciência de que sairia derrotado. Seu tio Alcebíades era o último parente vivo de sua mãe. Levava uma vida confortável e várias vezes Renato cogitara lhe pedir ajuda financeira.
- Deixe tudo comigo. Eu assumo essas despesas, ok? Agora fique calmo e vamos lá ver sua mãe.
(...)
Chegaram ao Sírio-Libanês e subiram. Renato se impressionou com as instalações luxuosas do hospital. Imaginou (um pouco aliviado, é verdade, pois seu tio assumira a responsabilidade) quanto seria a conta da estadia de sua mãe lá. Entraram no quarto. Sua mãe dormia, velada por Marinalva, que tinha os olhos semicerrados pela exaustão. Renato olhou a mãe. Um tubo grosso, ligado a um painel na parede, invadia sua garganta de forma abrupta. Chegou mais perto e notou que os lábios dela estavam ressecados e com um sumo esbranquiçado nos cantos da boca. Aproximou-se de Marinalva e colocou uma mão em seu ombro, ela colocou a mão rugosa por cima da sua sem desviar o olhar da cama.
- Quanto tempo ela vai ficar aqui, tio?
- Ainda não sabemos. O médico de que lhe falei vai examiná-la amanhã, e depois vai me ligar pra dar mais informações.
- Nós vamos dormir aqui?
- Só é permitido um acompanhante. Vou levar a Marinalva pra casa. Você dorme aí com sua mãe.
- Tá certo.
- Se quiser, tome um banho. Marinalva trouxe umas roupas pra você.
- Tem um pijama aí no armário, Renatinho – Marinalva acrescentou.
- Obrigado, Mari – respondeu Renato, reprimindo uma leve irritação, pois ela sabia que ele não gostava de usar pijama.
- Falo com você amanhã cedo – disse o tio.
Alcebíades e Marinalva foram embora. Logo depois, uma enfermeira entrou e conferiu o nível do soro. Renato não sentia vontade de tomar banho ou sequer de trocar de roupa. Estavam sós agora, ele e a mulher que o projetara para o mundo, que o expulsara do útero para que apreciasse a vida. Eu digo que ela gostosa, lembrou da canção de Caetano Veloso, uma das poucas de que gostava. Não, a vida não era gostosa, mesmo tendo a noite e tendo o dia, o meio-dia e a rosa. A vida, pensou, era uma queda livre no escuro, sem pára-quedas nas costas. Era impossível definir o momento em que se estatelaria no solo, havia apenas a certeza de que se estatelaria. Por enquanto, a vida limitava-se a imprimir lesões sucessivas e cada vez mais dolorosas em sua mente. Renato lembrou dos santos instalados no pedestal de sua casa. Quebraria os três logo que sua mãe morresse (talvez conservasse o São Jorge). Olhou para ela: teria que se acostumar com a presença daquela serpente com a cabeça enfiada no seu pescoço. O corpo imóvel se assemelhava a uma escultura feita em mármore, pensou. Havia uma quantidade significativa de músculos, tendões, ossos e cartilagens sob aquela pele, mas eles não serviam para nada: agora ela se valia apenas do coração e do cérebro, ainda firmes, se recusando a assinar a abdicação. Renato olhou em volta do quarto: paredes impecavelmente pintadas, um quadro pendurado próximo à porta, a televisão desligada. O ar condicionado reproduzia a gélida temperatura da rua e ele se encolheu em suas roupas pesadas, cruzando os braços. Perto das três horas, outra enfermeira veio verificar o fluxo de oxigênio que a serpente lançava dentro dos pulmões da sua mãe. Em seguida, aplicou uma injeção. Renato assistiu a tudo aquilo calado: não havia razão para questionar qualquer procedimento. Quando ele enfim se mexeu, levantando para pegar um travesseiro no armário, a ligeira claridade de mais um dia de céu fechado já expulsava o frio breu da madrugada. Mas Renato apenas perdeu ligeiramente a consciência, mantendo-se na superfície. Comparava o ato de dormir a um mergulho no oceano: quanto mais profundo era o sono, menor era a distância até a zona abissal. E havia momentos em que a inconsciência o levava às fendas abertas no fundo do mar, onde o magma abandonava o centro da Terra através de vulcões submersos: essa era a região na qual se produziam os mais assustadores pesadelos. Naquele momento de vigília, Renato se encontrava na plataforma continental, a poucos metros da linha da água. Bastou apenas um sussurro de sua mãe para que voltasse à tona. Mas não eram frases conscientes. Renato se levantou e escutou: quero embora... quero embora... quero embora. A voz da mãe lhe soava como a de uma estranha, o timbre se tornara mais metálico e arrastado. Quanto ao significado do mantra repetido por ela, Renato não tinha dúvida: era uma súplica. Mas a quem? Quem poderia atendê-la, escutar seus murmúrios? O marido, morto há dez anos? Não. Deus? Improvável. Ou o próprio filho, a quem ela pedia uma eutanásia indolor? Renato afastou essas ruminações como alguém que tenta dar um safanão numa mosca. Mas, como a mosca, elas tratavam de voltar para atormentá-lo. O dia incipiente inundava o quarto com luz, mas nenhum calor. Renato sabia, por experiências passadas, que aquele era um momento crucial na derrocada física de sua mãe: ela já não poderia falar normalmente ou se alimentar de material sólido (comeria através de uma sonda). Mais uma etapa rumo ao fim fora transposta, e o barulho constante do equipamento de oxigênio se tornaria tão rotineiro em sua casa quanto, em outros tempos, havia sido o ruído ágil dos passos de sua mãe antes de bater na porta do seu quarto e gritar: “Tá na hora de ir pra escola, Rê”.