domingo, 31 de janeiro de 2010

Simples assim


Quando À Deriva foi lançado, Luiz Zanin Oricchio, crítico de cinema do Estadão, escreveu que o filme de Heitor Dhalia deixava entrever uma “inclinação francamente incestuosa entre pai e filha”, vividos respectivamente por Vincent Cassel e a estreante Laura Neiva. Ele prossegue: “Tudo muito sutil, verossímil, nada explícito. Como uma energia pulsante, que se mostra e se esconde em seguida”. Zanin deve ter se valido do seu conhecimento de psicanálise para pinçar da narrativa esse componente incestuoso latente. Mas, por mais que repasse seguidas vezes o filme na mente, não consigo enxergá-lo. Vislumbro apenas algo mais singelo, banal mesmo: um amor incondicional, franco e visceral entre um pai e sua filha, e acima de tudo um amor despido de todo e qualquer componente sexual. Até porque, nesse quesito, a atenção do pai está completamente direcionada para a amante americana.
É claro que há hormônios espocando por todo lado, afinal estamos numa atmosfera solar, praiana, maciçamente habitada por adolescentes que soltam faíscas a cada atrito de peles e adultos que vêem no adultério uma válvula de escape para o fastio do casamento. E é compreensível que, ao observar sorrateiramente o pai fazendo sexo com a amante, uma fina membrana de inocência se rompa na alma da filha, e esse rebentar traz a reboque desilusão, decepção e um certo desamparo. Pois À Deriva fala de um mundo em decomposição (o ninho aos poucos desfeito, a infância aos poucos ficando para trás, o amor entre os pais se esfacelando). Por outro lado, esse mundo está sendo substituído por outro em tese mais animador (as descobertas da vida adulta, a sensação ilusória de invulnerabilidade, o poder avassalador da sedução). Em qualquer desses mundos, porém, pai e filha transitam invariavelmente por compartimentos sexuais estanques, que vez por outra roçam um no outro, mas jamais se intercambiam.
Acho que foi Contardo Calligaris quem matou a charada ao comentar o filme em sua coluna na Folha de S.Paulo: “O caminho pelo qual uma menina se torna adulta é quase uma alquimia: existe um fio tênue, mas decisivo, que separa um desejo paterno incestuoso de um olhar do pai que confira à menina a certeza de que ela é desejável como mulher. (...) Quando a história acaba bem, o que sobra é a sensação de um amparo paterno, de um lugar de ternura e de amor para o qual é possível voltar para se lavar das eventuais asperezas e sujeiras do desejo, mas um lugar que não infantiliza porque o pai continua enxergando e admirando a mulher que a menina se tornou”. É uma análise certeira. E na cena final de À Deriva esse amparo fica evidente: a filha que volta para o que restou do ninho – o pai já separado da mãe, aliviado por reencontrá-la depois de procurar por ela a noite inteira – buscando antes de tudo ternura e amor (e os encontrando). Que incesto pode haver naquele abraço final, ou em qualquer outro abraço entre os dois? O amor entre pai e filha, quando existe de fato, dispensa elucubrações psicanalíticas. É prosaico como um carinho distraído, ou um olhar de cumplicidade seguido de um sorriso.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Ícone desterrado


Já contei aqui no blog que passei fome por causa de um livro de J. D. Salinger. Era uma edição esgotada de Pra Cima com a Viga, Moçada e Seymor, uma Introdução, da Brasiliense, que se apresentou aos meus olhos de 22 anos, numa livraria de Florianópolis, como o último espécime de um inseto em extinção: sua importância era inversamente proporcional a sua aparência, com a capa discreta, bege, sem ilustrações, orelhas ou fotos do autor, como ele exigia. Estava nos dias derradeiros de uma viagem solitária que durava quase um mês, na qual já havia adquirido outros exemplares, novos e usados, mas nenhum tão raro. Na época não tinha conta em banco nem cartão de crédito. Só me valia do dinheiro que levava colado comigo no bolsinho da calça jeans, e com ele pagava os hotéis baratos, os ônibus imundos, a cerveja gelada e a boa mesa, que fazia questão de cultivar mesmo em tempos duros. Pra Cima com a Viga, Moçada representou um desfalque significativo nesse orçamento, e quando comprei a passagem de ônibus para o meu destino final, Porto Alegre, só me restaram algumas moedas. O que a princípio seria uma jornada noturna tranqüila e fria acabou se revelando um martírio. Quando o ônibus parou em algum canto, juntei minhas moedas e percebi que não davam para comprar sequer um mísero pastel que me olhava triste por trás da vitrine. Como desejei aquele pastel. Imaginei sua textura, adivinhei a maciez e o sabor do seu recheio, a carne moída combinando harmoniosamente com as ervilhas e a cebola. Voltei para o ônibus derrotado, com o estômago mal acostumado pedindo um afago que não viria.

No fim das contas, nem sei se o sacrifício valeu a pena, e muitos anos depois acabei trocando o livro ou dando ele de presente para uma amiga (algo do qual me arrependo) quando recebi no jornal a edição novinha publicada pela Companhia das Letras, agora com o título Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira. A verdade é que Pra Cima com a Viga, Moçada era um livro fragmentado, um tanto bobo e meio sem propósito, impressão que se estende em parte para outros textos de Salinger. Seus contos e novelas guardavam um certo encanto, um olhar deliberadamente pueril sobre um mundo nem tanto, mas, olhando à distância, acho sua obra superestimada.

Agora que o pai de Holden Caulfield e de toda a família Glass está morto, após 91 anos de vida – os trinta últimos vividos em reclusão absoluta –, me pego lembrando dele. E do impacto que O Apanhador no Campo de Centeio e, principalmente, Franny & Zooey provocaram no meu imaginário juvenil. Havia neste último uma espiritualidade vibrante, uma crença no outro mais do que num ser superior, o que desvelava em certa medida o caráter compassivo de Salinger. E havia ainda a paulada na alma desferida pelo conto Um dia Perfeito para os Peixes-Bananas, que descrevia o suicídio do primogênito Seymour, espécie de reserva moral da família Glass e em torno do qual orbitavam os outros irmãos. Gostava de outras das Nove Histórias, mas não lembro mais delas, já que há muito tempo não retiro um livro de Salinger da estante para ler. Talvez faça isso hoje à noite. Mas desde já penso nele como um velho ícone desterrado, tragado pelo tempo e a maturidade, que esmaecem nossas convicções e nos impelem incessantemente rumo ao desencanto.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Maldição


Há momentos em que a dor nas costas causada pela espondilite provoca em mim uma exaustão irritante. É uma dor contínua, a não ser que tome um relaxante muscular, e se acentua quando este corpo sedentário faz movimentos simples, como levantar rápido da cama ou correr. Uma chatice, em suma. Mas nada além de uma chatice. Afinal, há doenças muito mais tenebrosas, cruéis mesmo, capazes de nos furtar a alegria, o prazer de viver e, pior, a dignidade. Outro dia li, no caderno Mais! da Folha de S.Paulo, o depoimento do historiador inglês Tony Judt sobre o mal que se abateu sobre ele. Judt sofre de esclerose lateral amiotrófica. Uma doença neuromuscular que provoca paulatinamente a perda dos movimentos do corpo: primeiro os braços, depois as pernas, tronco, pescoço e, no estágio mais avançado, os músculos que envolvem o sistema respiratório, finalizando com uma parada cardíaca. Em questão de meses ou, na hipótese mais otimista, um ano ou dois, perde-se completamente a capacidade de realizar atividades prosaicas, como caminhar, comer, se coçar, ajeitar os óculos, mudar o canal do controle remoto, ir ao banheiro ou até dormir. Enfim, o corpo se mata. Apenas a lucidez permanece, o que não deixa de ser uma crueldade adicional. É a vulnerabilidade em seu estado mais pleno. Ou, como diria, o próprio Judt, “um aprisionamento progressivo sem liberdade condicional”. Comparando-se a Gregor Samsa, que se vê subitamente transformado num inseto em A Metamorfose, de Kafka, o historiador relata sem auto-compaixão sua rotina de “múmia moderna”. Descreve, por exemplo, as agruras de uma noite em claro, hora em que o cérebro compensa a imobilidade do invólucro em que está preso com uma profusão de questionamentos, despejados em cascata madrugada adentro. E eu aqui irritado com minha dor nas costas.

Conheço a esclerose lateral amiotrófica. Perdi uma tia para essa que é uma das mais brutais maldições dos tempos modernos. No caso dela, foi apenas o epílogo terrível de uma existência que passou por percalços ainda piores, mas aqui não é lugar para falar deles. Tenho por minha tia uma dívida de gratidão, afinal foi ela quem me ensinou a ler. Vi a pessoa que me mostrou por que B mais A é BA sendo aos poucos tomada pela doença. De início, a falta de movimento dos braços impedia que almoçasse sozinha. Menos de um ano depois, ela compareceu à minha festa de casamento já com os movimentos das pernas bastante comprometidos. Na última vez que a vi, estava encerrada numa cama sem poder mexer sequer o pescoço, de onde saía um tubo que ligava seus pulmões a um aparelho de respiração artificial. Falou comigo, sorriu com dificuldade, e perguntou por minha filha. Morreu em 2002, época em que eu estava morando em Fortaleza. Coincidência ou não, comecei a escrever nesse período um romance, até hoje inacabado (sobre o qual já falei aqui no blog), e me inspirei nela e na sua doença para compor um dos personagens. No caso, a mãe de Renato, um dos quatro protagonistas de Puppy e o mais sofrido deles. Coloco abaixo alguns trechos do livro que abordam a relação do filho com a mãe moribunda. Mas, volto a lembrar, trata-se de uma obra inacabada, escrita há quase oito anos.


“O que podia fazer? A quem recorrer? Os remédios para o tratamento estavam acabando e dali a alguns dias ele teria de começar a pensar no tubo de oxigênio, que mais cedo ou mais tarde sua mãe precisaria usar. Não foi assim com tia Regina, com tio Adamastor e com quase todo mundo daquela família, assolada por essa maldição hereditária? Renato sabia que ele mesmo não estava livre da doença, e poderia terminar algum dia como todos aqueles parentes. Sem conseguir mover um músculo, o corpo morto, só a consciência trabalhando a toda, maquinando formas de suicídio impossíveis. Era uma doença tão cruel que não dava ao portador sequer a possibilidade de se matar. A não ser que se jogasse de um prédio logo ao primeiro sinal: a cãibra persistente, que passa a consumir diariamente as pernas e braços e progressivamente os deixa – como ao pescoço, mãos e dedos – totalmente paralisados. Sua mãe já não mexia mais nada, e dali a algumas semanas não conseguiria sequer respirar sem a ajuda de um aparelho de oxigênio, e precisaria de uma enfermeira vinte e quatro horas por dia, e Renato não fazia a menor idéia de como pagar tudo isso.”

***

“Renato beijou a mãe na testa. A paralisia da face a encontrara com a face virada para a esquerda. Nessa direção foi colocada a TV, única distração para uma mulher sem movimentos, de voz enfraquecida e cada vez mais angustiada. Na semana anterior, Renato havia passado uma tarde inteira na faculdade acessando alguns sites especializados na doença. Havia poucos tópicos listados nos mecanismos de busca da internet, e nenhum deles trazia qualquer esperança de cura ou tratamento para a esclerose lateral amiotrófica. Apenas relatos de outros casos de pessoas paralisadas, esperando a morte da maneira mais desesperada e tediosa possível. Renato vinha percebendo uma mudança de humor na mãe nos últimos dias: antes conformada e com um sorriso postiço sempre disponível para uma eventual necessidade, ela vinha se dedicando ultimamente a dirigir um olhar entre irado e desencantado para a imagem de Nossa Senhora de Aparecida, instalada num pequeno pedestal de madeira no canto do quarto, atrás da televisão. Faziam companhia à santa um São Lázaro com o tronco recheado de chagas repugnantes e um São Jorge flagrado no momento exato em que enfiava a espada no dragão. Renato gostava de brincar com essa estatueta, a de São Jorge, quando pequeno, mas sua mãe reclamava e a levava de volta ao pedestal. Lembrou da mãe quando ainda andava: tinha agilidade, ajudava Marinalva na limpeza da sala, espanando móveis (lenço na cabeça, avental com estampa quadriculada), regando as poucas plantas do apartamento, trocando a roupa de cama. Era tão bonita: ele sempre se orgulhara da elegância da mãe nas reuniões de pais e festinhas comemorativas do primário. Agora ela repousava à sua frente, o corpo pesado e cada vez mais gordo. Os braços, jogados a esmo, às vezes coçavam muito e ela gritava pedindo ajuda. Usava fraudas geriátricas descartáveis, e Renato sempre saía do quarto ou desviava o olhar do dedicado processo de limpeza executado por Marinalva. Olhou a mãe ainda uma vez, da porta do quarto: ela não podia vê-lo, pois o rosto estava voltado para o lado oposto. Os cabelos não estavam mais sendo tingidos a seu pedido, e agora tinham uma cor indefinida, embora o branco cada vez mais proliferasse sobre as pontas castanho-claras, como um batalhão que ataca com surpresa e eficiência o flanco inimigo.”

***

“A chuva se extinguiu, mas o vento puxava sua roupa como um mendigo insistente. Renato repeliu as lufadas fechando ainda mais o casaco. Quando abriu a porta, deparou com seu tio Alcebíades sentado no sofá. As luzes do apartamento estavam todas acesas. A imagem de sua mãe e a possibilidade de algo ruim assombraram de imediato a mente de Renato.
- Oi, Renatinho.
- Tio Bibo, aconteceu alguma coisa?
- Nada demais. Sua mãe se sentiu mal, mas tá tudo bem.
- Como assim “tudo bem”? Cadê ela?
- Foi pro hospital. Sente aqui.
- O que aconteceu? – Renato continuou de pé.
- Ela teve dificuldade pra respirar e precisamos chamar uma ambulância – Alcebíades media as palavras.
- Ela morreu? – Renato se viu perguntando, já em desespero.
- Não, não. Calma, Renatinho. Ela só foi transferida para o hospital. Os médicos da ambulância precisaram fazer uma traqueotomia – Alcebíades se levantou e procurou amparar Renato, que a essa altura sentia um desamparo lancinante. – Tá tudo bem.
- Qual é o hospital?
- Sírio-Libanês.
- Puta merda! É muito caro.
- Fique tranqüilo. Eu conheço um médico de lá, gente de primeira. Eles não vão cobrar nenhum absurdo.
- Porra, meu tio, qualquer dinheiro a mais aqui em casa já é um absurdo.
Renato se sentia entre irritado e abatido, como se participasse de um combate do qual tinha consciência de que sairia derrotado. Seu tio Alcebíades era o último parente vivo de sua mãe. Levava uma vida confortável e várias vezes Renato cogitara lhe pedir ajuda financeira.
- Deixe tudo comigo. Eu assumo essas despesas, ok? Agora fique calmo e vamos lá ver sua mãe.
(...)
Chegaram ao Sírio-Libanês e subiram. Renato se impressionou com as instalações luxuosas do hospital. Imaginou (um pouco aliviado, é verdade, pois seu tio assumira a responsabilidade) quanto seria a conta da estadia de sua mãe lá. Entraram no quarto. Sua mãe dormia, velada por Marinalva, que tinha os olhos semicerrados pela exaustão. Renato olhou a mãe. Um tubo grosso, ligado a um painel na parede, invadia sua garganta de forma abrupta. Chegou mais perto e notou que os lábios dela estavam ressecados e com um sumo esbranquiçado nos cantos da boca. Aproximou-se de Marinalva e colocou uma mão em seu ombro, ela colocou a mão rugosa por cima da sua sem desviar o olhar da cama.
- Quanto tempo ela vai ficar aqui, tio?
- Ainda não sabemos. O médico de que lhe falei vai examiná-la amanhã, e depois vai me ligar pra dar mais informações.
- Nós vamos dormir aqui?
- Só é permitido um acompanhante. Vou levar a Marinalva pra casa. Você dorme aí com sua mãe.
- Tá certo.
- Se quiser, tome um banho. Marinalva trouxe umas roupas pra você.
- Tem um pijama aí no armário, Renatinho – Marinalva acrescentou.
- Obrigado, Mari – respondeu Renato, reprimindo uma leve irritação, pois ela sabia que ele não gostava de usar pijama.
- Falo com você amanhã cedo – disse o tio.
Alcebíades e Marinalva foram embora. Logo depois, uma enfermeira entrou e conferiu o nível do soro. Renato não sentia vontade de tomar banho ou sequer de trocar de roupa. Estavam sós agora, ele e a mulher que o projetara para o mundo, que o expulsara do útero para que apreciasse a vida. Eu digo que ela gostosa, lembrou da canção de Caetano Veloso, uma das poucas de que gostava. Não, a vida não era gostosa, mesmo tendo a noite e tendo o dia, o meio-dia e a rosa. A vida, pensou, era uma queda livre no escuro, sem pára-quedas nas costas. Era impossível definir o momento em que se estatelaria no solo, havia apenas a certeza de que se estatelaria. Por enquanto, a vida limitava-se a imprimir lesões sucessivas e cada vez mais dolorosas em sua mente. Renato lembrou dos santos instalados no pedestal de sua casa. Quebraria os três logo que sua mãe morresse (talvez conservasse o São Jorge). Olhou para ela: teria que se acostumar com a presença daquela serpente com a cabeça enfiada no seu pescoço. O corpo imóvel se assemelhava a uma escultura feita em mármore, pensou. Havia uma quantidade significativa de músculos, tendões, ossos e cartilagens sob aquela pele, mas eles não serviam para nada: agora ela se valia apenas do coração e do cérebro, ainda firmes, se recusando a assinar a abdicação. Renato olhou em volta do quarto: paredes impecavelmente pintadas, um quadro pendurado próximo à porta, a televisão desligada. O ar condicionado reproduzia a gélida temperatura da rua e ele se encolheu em suas roupas pesadas, cruzando os braços. Perto das três horas, outra enfermeira veio verificar o fluxo de oxigênio que a serpente lançava dentro dos pulmões da sua mãe. Em seguida, aplicou uma injeção. Renato assistiu a tudo aquilo calado: não havia razão para questionar qualquer procedimento. Quando ele enfim se mexeu, levantando para pegar um travesseiro no armário, a ligeira claridade de mais um dia de céu fechado já expulsava o frio breu da madrugada. Mas Renato apenas perdeu ligeiramente a consciência, mantendo-se na superfície. Comparava o ato de dormir a um mergulho no oceano: quanto mais profundo era o sono, menor era a distância até a zona abissal. E havia momentos em que a inconsciência o levava às fendas abertas no fundo do mar, onde o magma abandonava o centro da Terra através de vulcões submersos: essa era a região na qual se produziam os mais assustadores pesadelos. Naquele momento de vigília, Renato se encontrava na plataforma continental, a poucos metros da linha da água. Bastou apenas um sussurro de sua mãe para que voltasse à tona. Mas não eram frases conscientes. Renato se levantou e escutou: quero embora... quero embora... quero embora. A voz da mãe lhe soava como a de uma estranha, o timbre se tornara mais metálico e arrastado. Quanto ao significado do mantra repetido por ela, Renato não tinha dúvida: era uma súplica. Mas a quem? Quem poderia atendê-la, escutar seus murmúrios? O marido, morto há dez anos? Não. Deus? Improvável. Ou o próprio filho, a quem ela pedia uma eutanásia indolor? Renato afastou essas ruminações como alguém que tenta dar um safanão numa mosca. Mas, como a mosca, elas tratavam de voltar para atormentá-lo. O dia incipiente inundava o quarto com luz, mas nenhum calor. Renato sabia, por experiências passadas, que aquele era um momento crucial na derrocada física de sua mãe: ela já não poderia falar normalmente ou se alimentar de material sólido (comeria através de uma sonda). Mais uma etapa rumo ao fim fora transposta, e o barulho constante do equipamento de oxigênio se tornaria tão rotineiro em sua casa quanto, em outros tempos, havia sido o ruído ágil dos passos de sua mãe antes de bater na porta do seu quarto e gritar: “Tá na hora de ir pra escola, Rê”.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Um país sem fundo


Aos olhos de Mario Benedetti, o Uruguai é uma nação que atingiu a decadência sem ter passado pelo auge. Ou ao menos é essa a imagem que permanece após a leitura de Gracias por el Fuego. O pequeno país cisplatino que emerge das páginas do romance é um território fadado ao malogro, habitado por corruptos, provincianos e tipos de moral torta. Um território marcado pela inversão de valores, no qual até mesmo os justos e bons são assolados pela tibieza de caráter. Ao comprar o livro, não esperava uma escrita tão ácida e impiedosa. Pouco tinha ouvido falar de Benedetti até sua morte, mas simpatizava com seu rosto bonachão e vinha buscando a oportunidade de ler um livro seu.
Foi uma boa surpresa, por mais que Gracias por el Fuego funcione muito mais como uma declaração de princípios – sobretudo políticos e éticos – do que como uma obra de ficção propriamente dita. Não que ler suas páginas seja uma tarefa árdua (não é), até porque há momentos de grande literatura e reflexões sofisticadas sobre a realidade uruguaia, que por sinal se encaixariam perfeitamente numa descrição do Brasil ou de muitos outros países, sejam latino-americanos ou não. Há algo de Silvio Berlusconi em Edmundo Budiño, o crápula milionário que, a despeito de todas as suas falcatruas, se converte numa espécie de reserva moral da nação. Uma nação formada por pessoas que prezam a opulência sem dar a mínima para a origem dela. Vigorosa, a narrativa é filtrada pelos olhos de Ramón Budiño, filho do magnata e seu extremo oposto no campo das idéias e dos atos. Mas mesmo a integridade de Ramón é maculada por uma resignação atroz, por uma franca incapacidade de tomar as rédeas do jogo, partir para o ataque e desferir o golpe mortal. Gracias por el Fuego é um romance de idéias. E a realidade que ele desvela é uma amostra inequívoca de como a ausência de escrúpulos coletiva pode sepultar uma nação.

Alguns trechos:

“Como quer que eu não despreze as pessoas, se as pessoas me aceitam como sou? Desde o começo foi para mim uma tentação espantosa: estafá-los, fodê-los. Mas isso sim, prometendo-me formalmente que ao primeiro sinal de alerta, ao primeiro sintoma de que sua sensibilidade funcionava, não teria inconveniente em retroceder. Vou dizer mais ainda: quando rapaz pensei que queria saber onde estava o fundo deste país, porque só sabendo onde está o fundo verdadeiro uma pessoa pode apoiar-se. Comecei minhas sondagens. Uma mentira e não toquei no fundo; um embuste e tampouco; uma estafa monetária, e nada; uma fraude moral e menos ainda; coação, pressões, chantagem, e zero; agora distribuo armas para os filhinhos de mamãe, levo a cabo campanhas caluniosas. Mas confesso que estou me aborrecendo. Será que este país não tem fundo? (...) Sempre há alguém que pode ser comprado, ou não tem colhões suficientes, ou que tira um cigarro e encolhe os ombros. Eles não sabem o mal que me fizeram. Porque sou obstinado; tenho a obsessão de encontrar esse fundo; e na busca me aviltei. Agora, mesmo que o encontrasse, creio que não me deteria. Eu mesmo me sinto podre por dentro.”


“E se, como é quase certo, tudo vai continuar igual, estarei consciente de minha própria corrosão, desta espécie de abulia doentia que me ataca antes de toda decisão importante. Além disso, e a esta altura, quem não tem culpa? Quem pode viver neste país, neste mundo, neste tempo, de acordo com seus princípios, suas normas, sua moral, quando na realidade são outros que ditam os princípios, a moral e as normas? Além disso, esses outros não consultam ninguém. Todos estamos misturados com todos. Ninguém é quimicamente puro. O marxista trabalha, por exemplo, num banco. O católico fornica sem pensar na sagrada reprodução da espécie, ou fazendo o possível para evitá-la. O vegetariano convicto come resignadamente seu churrasco. O anarquista recebe um salário do estado. Quem pode viver as vinte e quatro horas do dia num acordo total com seu Deus, sua consciência, seu fanatismo ou credo? Nobody.”


“Neste país em que os escassos revolucionários por vocação suspenderiam sua revolução por causa do mau tempo, ou a adiariam até abril para não perder a temporada de praia, neste amorfo país de andrajosos que votam em milionários, de peões rurais que são contra a reforma agrária, de uma classe média que cada vez encontra mais dificuldade para imitar os tiques e os coquetéis da alta burguesia e no entanto pensa na palavra solidariedade como se se tratasse do sétimo círculo infernal.”


“As boas coisas que minha infância anunciou, as proteções, as ousadias, ficaram todas no caminho, e o recordar se torna então um mero registro de frustrações.”

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Missionário de mãos limpas


Que cena protagonizei nesses meus quase 40 anos de vida que realmente mereceria um aplauso? Quantas pessoas ajudei? Que atos de dignidade perpetrei para mitigar a dor de gente que sente diariamente o estômago travar pela ausência de alimento, gente que tem por horizonte apenas um breve momento de alumio antes do breu? Nada. Nada além de manifestar minha indignação, seja em gestos mudos de irritação estéril ou em textos que vociferam sobre as injustiças brutais que me atingem como pedradas. Enfim, nada além de praguejar contra o mundo, sentado confortavelmente à frente de uma tela de cristal líquido, enquanto degusto goles prazerosos de um vinho que trouxe de um país mais próspero do que o meu.

Não, meu temperamento contemplativo e minha irreversível letargia não permitem que me torne um ativista implacável, em eterno combate contra as aberrações do meu tempo. Um vigoroso legionário do Exército da Salvação, da Cruz Vermelha ou dos Médicos sem Fronteiras, capaz de rodar o mundo para pôr as mãos na massa amorfa da miséria, revirá-la, sentir a sua textura áspera, e por fim desfazê-la em pó. Vejo a miséria filtrada pelas lentes da televisão ou pelo vidro escurecido do carro com ar condicionado, e apenas me lamento em vão. Ah, o mundo não devia ser tão desigual.

Quando enfim for embora, que contribuição terei deixado? Ter feito uma dúzia de leitores deste blog refletir sobre o assunto? Nossa, quanta pequenez. Mas sei que isso passa. É só um surto passageiro de remorso, motivado pela leitura superficial – se é que isso é possível – da biografia de Zilda Arns. No átimo de segundo que separou a queda do concreto sobre sua cabeça e a descida rumo à inconsciência eterna, ela certamente pensou: fiz minha parte. E fez mesmo. Fez mais do que sua parte. E, como disse o blogueiro Mario Viana em mais um de seus textos magistrais, sua morte se deu de forma coerente com sua vida. “Tão coerente, que não morreu em Paris ou a caminho de uma convenção sobre miseráveis em alguma capital da Europa rica. Estava em Porto Príncipe, sujando o pé na lama e vendo o miserê que reina no país mais pobre das Américas”. Gostaria de pensar o mesmo quando o meu concreto particular finalmente me atingir, mas desde já não tenho dúvidas de que serei tomado por uma imensa frustração.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Hora de morrer



Imagino que dentro de alguns séculos a morte perderá seu status de certeza, sendo rebaixada a uma mera possibilidade. Sei lá, algum mecanismo avançado, desenvolvido por cientistas lunáticos, capaz de adiar indefinidamente o envelhecimento das células e tecidos até o ponto em que nos manteremos eternamente no apogeu dos 30 anos – ao menos para os mais abonados, acredito, que torrarão metade de suas fortunas para continuar aproveitando o que a outra metade oferece. Ou quem sabe o desenvolvimento de órgãos sobressalentes evoluirá tanto que nossos pulmões, corações, rins, fígados e até cérebros se tornarão nacos de carne e nervos descartáveis, facilmente substituídos por outros órgãos nascidos a partir de nossas placentas ou medulas ósseas. Poderíamos até trocar de corpo, quando o casulo em que estamos confinados se tornar obsoleto ou defeituoso. Quanto tempo para atingirmos esse grau de evolução? Não faço idéia. Quinhentos, oitocentos, mil e duzentos anos talvez, ou até um pouco mais, já que mesmo com tanta evolução ainda hoje não conseguimos sequer repor a vida de uma ameba quando ela dá seu derradeiro suspiro. Ainda tateamos no escuro quando é a imortalidade que está em jogo, e qualquer notícia que leio sobre o assunto me faz lembrar de imediato as profecias de Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo.

Por mais impalpável que pareça aos nossos corações e mentes nascidos na metade final do século 20, a imortalidade me parece algo menos absurdo do que, por exemplo, uma viagem no tempo, mesmo que digam que fisicamente ela é possível. E, no caso de se concretizar, assistiríamos à derrocada de algo que acompanha o ser humano desde que ele deixou as cavernas e passou a temer a escuridão: a fé. Com a vida eterna convertida numa banalidade, o que restaria de Deus? E, conseqüentemente, o que seria do mundo sem Deus, já que mais de 90% dos habitantes da Terra acreditam em algum tipo de força superior? Tudo seria permitido, como previu Dostoievski, antevendo o caos, ou nos encontraríamos enfim com nossa sina de seres predestinados, escolhidos entre milhões de bolas que vagam pelo espaço, destituídas da mais reles forma de existência? Mais: como ficaria a situação do planeta sem a lei natural que expulsa alguns seres do mundo para que outros possam habitá-lo? Um Malthus futurista diria certamente que a comida produzida não será capaz de alimentar todos os que nascem e os que não morrem. Só a comida? Claro que não. Assistiríamos provavelmente a uma catástrofe crônica, na qual as guerras e epidemias seriam saudadas como benéficas para a humanidade.

A mim interessa outra coisa. Que espécie de seres nos tornaríamos? Até onde restaria o eu original após tantas mudanças de órgãos e, principalmente, de carapaça? Pois o que somos nós afinal? Será que destituídos dos nossos corações, olhos e línguas originais continuaríamos sendo nós? Não sei. Bem, o que sei é que não sou apenas alma. Meus ossos me doem, meu fígado engorda pelo abuso de vinho, meus olhos míopes presenciam o fascínio do crescimento de minha filha. Sem eles, o que resta de mim? O que resta de mim sem minhas mãos que teclam este texto, sem meus cabelos cacheados que embranquecem aos poucos? Onde está localizado o disco rígido que guarda meus pensamentos e minhas memórias? Somos o todo ou apenas os 21 gramas que nos abandonam quando deixamos a vida?

Em face de tudo isso, a imortalidade me parece apenas um delírio estúpido, impossível de ser concretizado. Até porque não morremos de uma hora para outra. É um processo lentíssimo, que se inicia lá atrás, quando o espermatozóide rompe o invólucro do óvulo e a fecundação dá origem a nós, como dá origem aos cachorros, aranhas e jacarés. Morremos um pouco quando perdemos alguém, quando enterramos um desejo não realizado, quando presenciamos a violência inabalável que nos cerca e invade, quando sentimos que o mundo não é mais um lugar feito para pessoas como a gente. Enfim, por mais injusto que isso pareça, a extinção faz parte da vida, é seu curso natural, e a nós, animais primitivos de um presente/passado bárbaro, só resta abaixar a cabeça na chuva, como andróides de um filme de Ridley Scott, e balbuciar: hora de morrer.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Paralelos


É injusto fazer um paralelo entre o lugar em que vivemos e os lugares que visitamos. Injusto porque invariavelmente a balança vai pender para o que é novo e que nos chega de forma superficial, sem o enfado e o conhecimento pleno dos problemas que enfrentamos diariamente. Por outro lado, é impossível não perceber que habitamos – nós, brasileiros – um país que nos entrega muito pouco e nos toma em demasia. Estive em Santiago do Chile durante 10 dias, com direito a um passeio a Viña Del Mar e Isla Negra para me defrontar com a água azul-quase-negra do Pacífico. E, mais do que a atmosfera de acento europeu que emana da cidade, me impressionou o alto grau de cidadania que é ofertado aos seus habitantes.

Seca, poluída (meu nariz não parou de sangrar enquanto estive lá) e com seis milhões de habitantes (o que se reflete no trânsito intenso e no metrô lotado), Santiago é também um lugar onde se pode vagar calmamente, ver a vida passar, admirar as famílias nos parques e praças e perceber que até os cachorros de rua ostentam alguma dignidade. Um lugar onde a pobreza vem sendo mitigada de forma contundente já há algumas décadas, onde os crimes são rigorosamente prevenidos e punidos e onde a educação de qualidade é mais do que uma prioridade: é uma obrigação de governo, pais e filhos.

O resultado é uma cidade com pouquíssima violência urbana, presença mínima de armas de fogo e respeito natural às leis do trânsito. Claro que essas observações, colhidas junto a pessoas que vivem por lá, são pontuais e despidas de profundidade. Mas seus efeitos são nítidos para um turista que se propõe a caminhar muito e ir além dos pontos turísticos da cidade. E é aí que entra a questão: por que não conseguimos atingir esse mesmo grau de cidadania? Por que o Brasil parece patinar o tempo todo na própria história, quase sempre tropeçando nos próprios equívocos? Afinal, nossa história recente se assemelha em muito à trajetória chilena. Ambos padecemos de governos de esquerda inconstantes, substituídos por ditaduras de direita violentíssimas (a deles muito mais brutal do que a nossa) e voltamos ao confortável território da democracia, com gestões que buscaram a inserção de seus países na economia mundial de forma mais contundente, além de algum ganho social. É claro que estamos comparando nações muito distintas em quase todos os aspectos, incluindo aí as dimensões e características territoriais, e isso deve ser levado em conta.

Mas o ponto crucial – e agora já não me restrinjo a um paralelo com Chile, Argentina ou qualquer outro país latino-americano – é que nos recusamos a aprender com os exemplos alheios. Ficamos limitados a um arremedo de justiça social com outro arremedo de crescimento econômico, alijados pela corrupção endêmica, pela ignorância crônica e por uma vergonhosa desigualdade entre ricos e pobres, sem saber exatamente para onde vamos e o que queremos. E o que é pior: nem podemos sentar numa praça para contemplar o horizonte sem que nos roubem a carteira ou nos furtem a vida.