quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Missionário de mãos limpas


Que cena protagonizei nesses meus quase 40 anos de vida que realmente mereceria um aplauso? Quantas pessoas ajudei? Que atos de dignidade perpetrei para mitigar a dor de gente que sente diariamente o estômago travar pela ausência de alimento, gente que tem por horizonte apenas um breve momento de alumio antes do breu? Nada. Nada além de manifestar minha indignação, seja em gestos mudos de irritação estéril ou em textos que vociferam sobre as injustiças brutais que me atingem como pedradas. Enfim, nada além de praguejar contra o mundo, sentado confortavelmente à frente de uma tela de cristal líquido, enquanto degusto goles prazerosos de um vinho que trouxe de um país mais próspero do que o meu.

Não, meu temperamento contemplativo e minha irreversível letargia não permitem que me torne um ativista implacável, em eterno combate contra as aberrações do meu tempo. Um vigoroso legionário do Exército da Salvação, da Cruz Vermelha ou dos Médicos sem Fronteiras, capaz de rodar o mundo para pôr as mãos na massa amorfa da miséria, revirá-la, sentir a sua textura áspera, e por fim desfazê-la em pó. Vejo a miséria filtrada pelas lentes da televisão ou pelo vidro escurecido do carro com ar condicionado, e apenas me lamento em vão. Ah, o mundo não devia ser tão desigual.

Quando enfim for embora, que contribuição terei deixado? Ter feito uma dúzia de leitores deste blog refletir sobre o assunto? Nossa, quanta pequenez. Mas sei que isso passa. É só um surto passageiro de remorso, motivado pela leitura superficial – se é que isso é possível – da biografia de Zilda Arns. No átimo de segundo que separou a queda do concreto sobre sua cabeça e a descida rumo à inconsciência eterna, ela certamente pensou: fiz minha parte. E fez mesmo. Fez mais do que sua parte. E, como disse o blogueiro Mario Viana em mais um de seus textos magistrais, sua morte se deu de forma coerente com sua vida. “Tão coerente, que não morreu em Paris ou a caminho de uma convenção sobre miseráveis em alguma capital da Europa rica. Estava em Porto Príncipe, sujando o pé na lama e vendo o miserê que reina no país mais pobre das Américas”. Gostaria de pensar o mesmo quando o meu concreto particular finalmente me atingir, mas desde já não tenho dúvidas de que serei tomado por uma imensa frustração.

6 comentários:

Nina disse...

Oi, Paulo.

Excelente texto, embora angustiante. Partilho da sua culpa de fazer menos do que poderia.

No caso de D. Zilda Arns, não se trata só do que ela fez, mas do quanto e quão bem. Exemplo de competência, de gestão, de humanidade. Incomparável.

No entanto, pude, algumas vezes, fazer a diferença. Vou esforçar-me para fazê-lo ainda mais. E encontro alento, sem deixar que me paralise a ação, nas palavras do Talmud:
"Quem salva uma vida, salva o mundo inteiro" ("Quem quer que destrua a vida de um único ser humano... é como se ele tivesse destruído o mundo inteiro; e quem quer que preserve a vida de um único ser humano... é como se ele tivesse preservado o mundo inteiro”.).

Portanto, cada oportunidade de fazer a diferença, faz a diferença. Com certeza, você também já fez. Ainda, que como eu, possa fazer mais.

Vamos fazer, então!

Paulo Sales disse...

Obrigado, Nina
Na verdade uso o meu próprio caso para falar da nossa - de todos nós ou de quase todos - falta de altruísmo, da nossa compaixão estéril, que não serve para nada. Lamento sem ação é só um brado inútil. Mas não sei bem como agir, ou qual o meu limite de ação. Vou tentar. Nada, porém, que se compare ao que zilda Arns fez.
bjs

Mário Viana disse...

Paulo, obrigado por me citar. Fiquei todo orgulhoso. E concordo com vc. Meu Deus, como ficam mais e mais fúteis as celebridades diante de uma figura como dona Zilda e tantas outras, que roem um osso danado pra ajudar os outros.Aliás, o verbo nem é ajudar, pq isso é esmola. O trabalho de Zilda Arns parece ter tirado as pessoas da fome com ações práticas e sem falatório.
Barbara Gancia, na Folha de hoje, faz um texto bem legal sobre Zilda Arns - imagine, uma personalidade que juntou gregos e troianos...
E nós soltamos os cachorros quando o elevador não vem... Abraços

Paulo Sales disse...

Mario, meu velho, eu é que agradeço pela visita ao blog. Admiro muito seus textos e a forma como você enxerga o mundo.
A sensação é essa mesma, de futilidade frente a um trabalho tão brilhante. Dona Zilda parecia não pertencer a esta época de culto ao frívolo, ao rasteiro. O que fica sem ela é nossa indignação inócua e sem sentido.
Grande abraço.

Diálogo de Pedras disse...

Pois é meu caro!

Ela fez a sua parte (e que parte!) Nos sentimos mais pequenos ainda diante de tal exemplo. Quando soube da morte dela pensei na hora: o que ela estava fazendo lá?. Compartilho integralmente com seu dilema e questionamento. abraços

Paulo Sales disse...

Acho que o importante é que estamos começando a nos questionar, a tentar entender a nossa insignificância e o que fazer a partir dela. Fazer o bem pode ser difícil, mas é um caminho viável.
Grande abraço, meu caro.