segunda-feira, 26 de abril de 2010

Eldorado


Até bem pouco tempo atrás, havia um oásis de tranqüilidade que parecia não ter sido afetado pelo recrudescimento da violência urbana em Salvador. Em qualquer estádio de futebol da capital baiana era possível ver torcedores de Bahia e Vitória caminhando juntos com suas respectivas camisas rumo à mesma catraca, torcendo juntos numa mesma arquibancada e voltando para casa irmanados no mesmo ônibus lotado. Afinal, o futebol, aqui, sempre foi encarado como uma festa descompromissada, por mais que a alma do torcedor saísse ferida após uma eventual goleada ou um título perdido.

Hoje não são as almas que saem feridas, nem apenas títulos são perdidos. A delinqüência e a estupidez invadiram de vez o universo futebolístico baiano, como de resto já haviam invadido o cotidiano de um estado em franco processo de degradação. Importamos de São Paulo a barbárie institucionalizada das torcidas organizadas, mas não conseguimos importar a opulência industrial e a prosperidade das cidades do interior do estado mais rico do país. Da mesma forma, importamos do Rio de Janeiro o crime organizado e a onipresença das drogas, mas somos incapazes de nos transformar numa terra bonita e cosmopolita como aquela cantada por Jobim e Vinicius.

Somos uma cidade e um estado estagnados há décadas, esperando um porvir improvável, onde a ausência de lideranças políticas sérias, cabeças pensantes e profissionais competentes leva a um marasmo intelectual e a um cemitério de idéias e iniciativas. A cordialidade de outros tempos foi parar em algum aterro sanitário, e hoje vivemos num território sem lei, violento e amargo, com uma desigualdade social brutal, travestido de eldorado tropical para consumo interno e externo. E agora nem é mais possível enterrar as mágoas dessa desdita com um singelo e sofrido grito de gol.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Corações atormentados


Passeava pelos canais a cabo ontem à noite quando me deparei com uma cena de Na Natureza Selvagem, que havia assistido algum tempo atrás. Era um momento decisivo do filme, no qual o protagonista, o jovem Christopher McCandless, abandona uma provável trajetória profissional de sucesso em troca de uma rica – e arriscada – experiência existencial, profundamente alicerçada no estoicismo pregado por Liev Tolstói, Jack London e Henry David Thoreau, mais precisamente por este último. Vale salientar que McCandless, personagem real cuja história ganhou o mundo através do romance de Jon Krakauer, no qual o longa de Sean Penn é baseado, não buscava inspiração nas obras desses autores, e sim em suas vidas.

Criador de Guerra e Paz e Anna Karenina, entre muitos outros romances fundamentais, Tolstói foi um bem-sucedido latifundiário, que nos últimos anos de vida renegou a fortuna e a vida burguesa e partiu de trem pela Rússia para conhecer de perto a realidade do seu país. Morreu de pneumonia numa estação insalubre. Já London era um aventureiro em tempo integral, posteriormente influenciado pelo ideário comunista, peculiaridades que se materializaram em livros como O Chamado da Floresta e De Vagões e Vagabundos. Já Thoreau – ao que parece a influência primordial do jovem – foi um precursor do anarquismo e da ecologia, que não mediu esforços para pôr em prática as teorias que formulou nos seus livros, incluindo aí o clássico Desobediência Civil.

Ingênuo, profundamente atormentado e minando vida por todos os poros, McCandless se deixou levar até o limite pelas pregações por vezes irresponsáveis – mas inegavelmente sedutoras – desses autores. E descobriu muito tarde que elas não podiam ser levadas ao pé da letra. Afinal, como ele mesmo constatou, a felicidade não se consegue sozinho. Mas até que ponto o jovem filho de aristocratas não atingiu o seu intento? Morrer solitário no Alasca não era o epílogo esperado por quem sorveu sem meias-medidas o legado dos seus antecessores? Pode ser. Mas Tolstói se despediu da vida já octagenário, enquanto London e Thoreau já haviam passado dos quarenta (no caso do autor de Caninos Brancos, a morte se deu por vontade própria). McCandless contava apenas 22 anos. É fato que seu último ano de vida valeu por décadas, mas e daí? Duvido que ali, no ônibus abandonado que se tornou o seu esquife, ele não ansiasse por mais nacos de vida, enquanto agonizava na solidão absoluta.

***

Aos 20 anos, eu também me deixei influenciar pela vida – muito mais do que pela obra – de um escritor. É uma escolha (involuntária, claro) arriscada. Nessa época, a vida de Jack Kerouac me parecia o caminho a ser seguido. Um contraponto de audácia e destemor à tormenta perene que habitava a minha alma. O que me seduziu no velho Jack não foram as deliciosas aventuras regadas a álcool e anfetaminas de Sal Paradise e Dean Moriarty em On The Road, mas sim o embate silencioso entre religiosidade e hedonismo que forjou a matéria-prima do autor em Kerouac – Uma Biografia, o excepcional livro de Ann Charters. Aí sim eu encontrei o meu espírito, como costumava escrever nesses tempos. Charters esmiuçou implacavelmente as contradições que habitavam o coração atormentado de Kerouac, alicerçadas na perda nunca superada do irmão Gerard, na relação de dependência e respeito com a mãe e na homossexualidade em parte reprimida (que na época me chocou, por considerá-la incongruente com o ideal do aventureiro macho que pede carona nas estradas e se envolve de maneira fugaz, mas intensa, com mulheres).

Não fui o mesmo depois de Kerouac, o homem e o biografado. Tentei encontrá-lo nas estradas esburacadas rumo ao sul, na tremenda solidão das viagens de ônibus e caronas e no sentimento genuíno de perda de alguém que tinha o sangue igual ao meu. Mas o Brasil de 1990 era muito diferente dos Estados Unidos dos anos 40. E eu era muito diferente de Kerouac. Percebi que anfetaminas, cocaína, ópio, heroína e outros psicotrópicos não faziam parte da minha dieta existencial, embora comungue com o velho Jack o apreço por líquidos com alto teor etílico. Enfim, o criador de Big Sur e eu pertencíamos a mundos impermeáveis um ao outro, como mais tarde constatei que havia em mim muito pouco de Hemingway ou Fitzgerald, nos quais me espelhei aos 30 anos. Até porque precisaria ganhar em euros um salário exorbitante para torrar na Riviera Francesa ou nos cafés de Paris, onde eles um dia fizeram suas festas móveis. Além, obviamente, de não ostentar sequer uma nesga de todo aquele talento. Em suma: no meu caso, o caminho do excesso jamais levaria ao palácio da sabedoria. Sou o que sou, e isso, hoje, me basta. Afinal, não quero morrer de hemorragia abdominal por excesso de álcool ou pulverizar meus humildes miolos com uma bala de carabina.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Silêncio


Faz mais de uma semana que não escrevo no blog, e o mês de abril tem sido escasso em postagens. Talvez esteja padecendo do Mal de Montano, espécie de bloqueio criativo que acomete um jovem escritor no romance de Enrique Vila-Matas, que estou começando a ler. Mas é mais provável que esteja cansado de levantar muros de indignação com minhas palavras. A brutalidade do real me exaure, notícias me apunhalam a cada início de manhã e me sinto cada vez mais entorpecido, incapaz de reagir e vociferar contra escândalos acachapantes ou assassinatos sem sentido. Melhor assim. Nunca fui muito bom em escrever movido pela cólera, a saliva escorrendo pelos cantos da boca, as frases se atropelando como numa avalanche. Gosto de mastigar lentamente cada palavra, sentir a sua textura, o seu poder de sedução, a sua capacidade de se harmonizar sem farpas com os outros ingredientes de um texto. E, obviamente, não pretendo fazer deste espaço um desfile de lamúrias.

O fato é que é quase impossível reprimir um certo enfado diante de acontecimentos dignos de asco, como o escândalo dos padres pedófilos, devidamente acomodados dentro da batina do Papa, ou do pai que joga as filhas da ponte. Depois de tantos “por quês” repetidos à exaustão silenciosamente, acabo me dando conta de que meus comentários sobre esses assuntos não vão oferecer nada de novo a ninguém, nem irão contribuir para que eu mesmo compreenda como essas engrenagens encharcadas de estupidez nos impelem incessantemente para o futuro. Prefiro o silêncio, agora interrompido com estas frases soltas neste início de madrugada de uma segunda-feira. Um silêncio que me faz lembrar as imagens daquele vulcão expelindo lava do centro da Terra para cobrir quilômetros de céu na Islândia. É possível encontrar resquícios de beleza e inocência nessa manifestação aterradora da natureza. Afinal, não há ali qualquer vestígio de bem ou de mal. É apenas magma, fogo e fumaça, como no início do mundo. E, provavelmente, como no seu fim.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Numa noite fria, nessa terra crua


Ontem à noite, enquanto a chuva castigava a cidade lá fora, assisti novamente ao documentário de João Moreira Salles sobre o pianista Nelson Freire. E, em meio a relâmpagos em profusão e oscilações de luz, um trecho do filme me chamou a atenção. É quando o pai de Nelson descreve numa carta emocionada todo o sacrifício que a família fez para que aquele garoto prodígio, que tocava Chopin aos quatro anos, pudesse se tornar o intérprete genial que acabaria se tornando. Os Freire eram do sul de Minas, família de classe média baixa, e precisaram mudar para o Rio de Janeiro em busca de tutores adequados ao desenvolvimento do talento do filho mais novo. Largaram casa, trabalho e rotina em troca de uma hipotética carreira de sucesso num universo restrito como o da música clássica. Já estavam quase desistindo e se preparando para voltar quando apareceu a professora Nise Obino, e o resto é uma bonita história pontuada por execuções precisas e cheias de lirismo.

O sacrifício da família de Freire valeu a pena. Mas, ontem mesmo, enquanto observava da varanda o céu ser tomado por clarões, fiquei pensando no sacrifício inútil de dezenas de pais pobres, iletrados e exaustos que perderam seus filhos e sua vida nos desmoronamentos das encostas no Rio e em Niterói. Homens e mulheres que trabalhavam como pedreiros, domésticas, garis ou operários para garantir alimento, habitação e escola às suas crianças. Não porque elas tivessem algum dom especial, mas porque eram suas. Dificilmente haveria, entre aqueles meninos e meninas mortos, um novo Nelson Freire – ou um novo Freud ou um novo Einstein. Isso torna essas mortes ainda mais dramáticas.

A maioria das pessoas soterradas viveu grande parte da vida num sacrifício perene, com dinheiro insuficiente para honrar as contas e muito menos projetar uma mudança significativa no padrão de vida nos anos seguintes. Suas rotinas se limitavam a pouco mais do que horas e mais horas de trabalho braçal, seguidas de noites de tédio brevemente interrompidas por hiatos de felicidade, como uma conversa divertida numa mesa de bar, uma brincadeira com os filhos ou um cafuné da mulher no sofá. Até a invasão de lama, pedra e concreto tomar conta de tudo e reduzir esse cotidiano a escombros.

A morte de cada uma dessas pessoas abre uma imensa clareira na forma como entendemos a existência humana. E deixa à mostra nossa insignificância coletiva e, paradoxalmente, nossa inestimável riqueza individual, diariamente solapada pela realidade. Vale aqui o clichê de que cada cabeça é um mundo, por mais simplório, vulgar e pequeno que seja esse mundo. Havia vida ali: pequenos desejos sublimados, crenças sem embasamento teórico, atos de generosidade ou mesquinhez, sonhos frívolos, mas nem por isso menos legítimos, e provavelmente uma grande vontade de continuar vivendo, apesar das intempéries. São histórias que não terminaram num recital de Chopin ou Beethoven numa luxuosa sala de concertos em Viena, Moscou ou Paris. Afinal, o talento de cada uma daquelas pessoas era apenas sobreviver. O que, obviamente, não foi suficiente.

***

“Numa noite fria, nessa terra crua

Cada qual leva a morte que é sua.

Cada homem certamente amou a vida

Coberto por palmos de terra batida.”

Bertolt Brecht

quinta-feira, 1 de abril de 2010

A verdade sobre os imortais


Fiquei sabendo, por uma matéria publicada no Estado de S.Paulo, que a vaga aberta na Academia Brasileira de Letras após a morte de José Mindlin está sendo bastante concorrida. Tem muita gente almejando a tal imortalidade, que na prática se traduz em algum prestígio, no uso do fardão verde com detalhes dourados e em animadas tertúlias nas sessões de chá com biscoitinhos promovidas pela entidade, fundada por Machado de Assis há 123 anos. Estão na disputa, entre outros, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau (autor de livros jurídicos e de um único romance), o embaixador Geraldo Holanda Cavalcanti (tradutor de poetas italianos e autor de um livro que foi finalista do Prêmio Jabuti) e o sambista Martinho da Vila (que também escreveu uma dezena de livros infantis).

Considerei a obra desses candidatos pouco expressiva, literariamente falando, e não encontrei justificativa para que fizessem parte da ABL. Mas dias depois li, no blog de Geneton Moraes Neto, que o poeta Mario Quintana tentara por três vezes fazer parte da entidade, sem que lhe fosse concedida a honraria. Logo Quintana, um gênio terno e compassivo, capaz de cometer versos como: “Ai de mim/Ai de ti, ó velho mar profundo/Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios”. A princípio, achei uma grande injustiça, mas em seguida fiz uma rápida pesquisa para encontrar outros autores e intelectuais que não integram ou integraram os quadros da ABL, seja por vontade própria ou não. Parafraseando o cronista esportivo Fernando Calazans, que um dia disse que “se Zico nunca ganhou uma Copa, azar da Copa”, cheguei à conclusão de que, se Quintana nunca entrou para a ABL, azar da ABL.

O poeta gaúcho não está só nessa cruzada involuntária. Ou melhor, está muito bem acompanhado, como é possível perceber nesta rápida lista de reles mortais que não constam no site da ABL: Erico Verissimo e seu filho Luis Fernando, Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Vinicius de Moraes, Antonio Candido, Adélia Prado, Wilson Martins, Graciliano Ramos e Rubem Fonseca, além de – para incluir outras áreas que não só a literatura – Chico Buarque, Antonio Carlos Jobim, Oscar Niemeyer, Heitor Villa-Lobos e por aí vai. Em compensação, estão entre os imortais nomes como Ivo Pitanguy, Marco Maciel e José Sarney, além de figuras para mim desconhecidas (o que provavelmente é um problema meu e não da Academia), como João de Scantimburgo, Padre Fernando Bastos de Ávila ou Evanildo Bechara. Ou seja: Vidas Secas não está lá, mas Marimbondos de Fogo está. Azar da ABL.

Claro que o paralelo acima é injusto, afinal estamos comparando a quintessência dos mortais com a escória dos imortais. Também já vestiram o fardão Guimarães Rosa, Jorge Amado, Darcy Ribeiro, Euclides da Cunha, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Otto Lara Resende, Nelson Pereira dos Santos e muito mais gente de talento inquestionável. O que me causa desconforto é apenas essa situação meio esdrúxula na qual há tantos imortais de fato excluídos da lista de imortais de direito. Mas a verdade de tudo isso é que a eternidade não depende da vontade de um restrito grupo de homens, estejam eles vestidos ou não com suntuosos fardões bordados. Shakespeare não é lido hoje, passados 400 anos da sua morte, porque alguém um dia afirmou que ele merecia tal galardão. O tempo pode às vezes ser injusto, mas ainda é o melhor critério para a escolha dos verdadeiros imortais.