Ontem à noite, enquanto a chuva castigava a cidade lá fora, assisti novamente ao documentário de João Moreira Salles sobre o pianista Nelson Freire. E, em meio a relâmpagos em profusão e oscilações de luz, um trecho do filme me chamou a atenção. É quando o pai de Nelson descreve numa carta emocionada todo o sacrifício que a família fez para que aquele garoto prodígio, que tocava Chopin aos quatro anos, pudesse se tornar o intérprete genial que acabaria se tornando. Os Freire eram do sul de Minas, família de classe média baixa, e precisaram mudar para o Rio de Janeiro em busca de tutores adequados ao desenvolvimento do talento do filho mais novo. Largaram casa, trabalho e rotina em troca de uma hipotética carreira de sucesso num universo restrito como o da música clássica. Já estavam quase desistindo e se preparando para voltar quando apareceu a professora Nise Obino, e o resto é uma bonita história pontuada por execuções precisas e cheias de lirismo.
O sacrifício da família de Freire valeu a pena. Mas, ontem mesmo, enquanto observava da varanda o céu ser tomado por clarões, fiquei pensando no sacrifício inútil de dezenas de pais pobres, iletrados e exaustos que perderam seus filhos e sua vida nos desmoronamentos das encostas no Rio e em Niterói. Homens e mulheres que trabalhavam como pedreiros, domésticas, garis ou operários para garantir alimento, habitação e escola às suas crianças. Não porque elas tivessem algum dom especial, mas porque eram suas. Dificilmente haveria, entre aqueles meninos e meninas mortos, um novo Nelson Freire – ou um novo Freud ou um novo Einstein. Isso torna essas mortes ainda mais dramáticas.
A maioria das pessoas soterradas viveu grande parte da vida num sacrifício perene, com dinheiro insuficiente para honrar as contas e muito menos projetar uma mudança significativa no padrão de vida nos anos seguintes. Suas rotinas se limitavam a pouco mais do que horas e mais horas de trabalho braçal, seguidas de noites de tédio brevemente interrompidas por hiatos de felicidade, como uma conversa divertida numa mesa de bar, uma brincadeira com os filhos ou um cafuné da mulher no sofá. Até a invasão de lama, pedra e concreto tomar conta de tudo e reduzir esse cotidiano a escombros.
A morte de cada uma dessas pessoas abre uma imensa clareira na forma como entendemos a existência humana. E deixa à mostra nossa insignificância coletiva e, paradoxalmente, nossa inestimável riqueza individual, diariamente solapada pela realidade. Vale aqui o clichê de que cada cabeça é um mundo, por mais simplório, vulgar e pequeno que seja esse mundo. Havia vida ali: pequenos desejos sublimados, crenças sem embasamento teórico, atos de generosidade ou mesquinhez, sonhos frívolos, mas nem por isso menos legítimos, e provavelmente uma grande vontade de continuar vivendo, apesar das intempéries. São histórias que não terminaram num recital de Chopin ou Beethoven numa luxuosa sala de concertos em Viena, Moscou ou Paris. Afinal, o talento de cada uma daquelas pessoas era apenas sobreviver. O que, obviamente, não foi suficiente.
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“Numa noite fria, nessa terra crua
Cada qual leva a morte que é sua.
Cada homem certamente amou a vida
Coberto por palmos de terra batida.”
Bertolt Brecht
4 comentários:
uma semana sem escrever?inadmissível(rs)...como fica a alma das criaturas que seguem esse blog?...como fica a alma desse escritor, que sei,necessita dessa escrita para viver?...que venha a inspiração...beijoca...
É, está faltando assunto (mas também pode ser uma certa preguiça), e não gosto de escrever só por escrever. Mas já está na hora de postar alguma coisa. Aguarde.
Um beijo.
Não sei pq, mas lembrei disso aqui:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/753594-homem-contrai-dividas-para-estudar-doenca-do-filho-e-justica-evita-despejo-em-curitiba.shtml
Já tinha lido sobre esse caso. Mas este texto meu fala de uma coisa muito mais dolorosa, que é uma perda avassaladora. Até hoje tenho dificuldade de reler o que escrevi.
abs
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