De tempos em tempos, volto aos lugares da minha infância. Faço um pequeno périplo pelos bairros do Barbalho, de Nazaré, da Soledade, da Lapinha. Lugares hoje meio decrépitos, assombrados pela decadência e escurecidos pela fuligem que vem da fumaça dos ônibus. Procuro, no Lanat, a casa onde passei a minha aurora soturna em meio a livros e bonequinhos de plástico. Ela está lá. Bem diferente, reformada e tomada por um muro alto, mas ainda lá. Vasculho na memória os tímidos registros da minha primeira escola, da igreja que detestava freqüentar e da casa do meu avô, com seus sabiás, pássaros-pretos e lindas velharias lusitanas. Também estão todas ainda lá, de pé. Posso me deter por uns instantes e percorrê-las com os olhos, antes de voltar para a realidade de uma outra Salvador, aquela na qual vivo e trabalho. Poderia até, caso desejasse, pedir aos donos atuais desses lugares para entrar um pouco e tomar um café, mesmo correndo o risco de ter as minhas reminiscências devassadas.
Pensei muito nos meus primeiros anos, e em como eles ainda estão impregnados em mim, depois de ler o comovente relato de uma amiga que não tem como voltar fisicamente aos lugares da sua infância – embora os mantenha inviolados na memória, que é o que realmente importa. Ela nasceu na velha Canudos, a mítica cidade onde, em 1897, o exército republicano brasileiro dizimou os seguidores de Antonio Conselheiro. Eternizada por Euclides da Cunha em Os Sertões (e também por Mario Vargas Llosa em A Guerra do Fim do Mundo e Sándor Márai em Veredicto em Canudos), a pequena cidade do árido nordeste baiano voltou a ser dizimada nos anos 60, desaparecendo sob as águas de uma barragem. Não apenas a cidade submergiu. Foi embora com ela a memória coletiva de um povo. Segundo minha amiga, muitos habitantes só saíram quando as águas começaram a preencher as ruas de terra batida, transformando a cidade numa improvável Veneza do semi-árido. E o pai dela, antes de tudo um forte, chorou pela única vez na vida naquele momento.
De vez em quando, em tempos de seca, a água da barragem baixa e é possível ver os escombros da cidade velha, como ossos desgarrados de um corpo insepulto. Mas, para minha amiga, é bem provável que a verdadeira Canudos não esteja ali. Não, a pátria invulnerável de sua infância feliz – para usar as palavras de Juan Gelman que ela cita em seu relato – está devidamente arquivada nas prateleiras da sua mente: o sino da igreja, a casa onde ela nasceu, a casa dos seus avós, o “campo de bola”, o barracão, as balas da batalha perdida que ela e outras crianças tiravam do solo para dar aos visitantes. Está tudo lá, e talvez seja até melhor que ela não possa revisitar fisicamente o próprio passado, revolvê-lo com as mãos, senti-lo sob os pés. Afinal, como alguém já disse, nunca devemos voltar ao lugar onde fomos muito felizes.
7 comentários:
Pois eu volto sempre à Canudos da mnha infância.Impressionante como ela se mantém intacta na minha memória. E isso me faz muito bem. Porque me lembra que é de lá a minha essência. Sabe aquela piada que a pessoa sai do mato, mas o continua dentro dela? É verdade comigo. Canudos continua em mim. E se é verdade que qundo morremos vamos pra algum lugar que onstruímos na nossa imginação, é pra lá que eu vou...
Muito lindo, Paulinho. Eu, filha de oficial de exército, deixei lugares e pessoas que provavelmente nunca vou saber reencontrar. Mas estão todos vivos na memória. Este texto eu também vou guardar em algum cantinho...
Socorrinho e Claudinha
A memória é mais forte do que a distância, o tempo, o cimento e a água. É o que nos faz diferentes.
Um beijo nas duas.
Paulo,
Acabei de ter o mesmo sentimento de quando assisti ao filme Cinema Paradiso, saudades.
Um filme gravado na minha memória da infância na Pituba com ruas não asfaltadas, de São Gonçalo dos Campos.
Sim, A memória é mais forte do que a distância, o tempo, o cimento e a água. Será que precisamos ser lembrado para não apagar essas memórias?
Gosto de ler seus textos.
bjos
Obrigado, Carini, e bem-vinda ao blog.
Cinema Paradiso produz um travo de amargura, do tempo que se foi e que é impossível ter de volta, apalpar, sentir sob os pés. De qualquer modo, poder guardar tudo que a gente viveu é melhor do que o esquecimento.
Um beijo.
Essa galera do Barbalho q estudou no Sale tem um quê de gênio impressionante! rs
Falando serio agora, qnd vi a imagem me lembrei dessa tragédia da enchente q devastou boa parte de Alagoas e Pernambuco. Triste ver cidades inteiras destruídas e pessoas q já não tem muita coisa ter q começar tudo do zero.
Com ctz foi o pior São Joao da história desse povo forte q é o nordestino.
Você, como um bom representante do semi-árido, que o diga. As imagens me impressionaram, o número de mortos também. Acho que perder tudo é terrível, mas perder um filho numa tragédia assim é muito, muito pior. Até falo sobre isso em um texto aqui no blog, que tem uma foto de Nelson Freire. Quando puder, dê uma lida.
abração
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