sábado, 1 de maio de 2010

A persistência da memória



Deveria existir um equipamento que fosse capaz de mensurar tudo que nossa mente acumula pelo caminho, ano após ano. As camadas de alegrias, frustrações, traumas, revelações, surpresas, perdas e superações, que vão sendo meticulosamente sobrepostas em nossos espíritos, como uma pilha de livros construída displicentemente. Com elas, formamos a nossa matéria-prima. Cada livro espremido lá embaixo é essencial para o equilíbrio da torre à medida que avançamos. Um puxão irresponsável e a pilha vai ao chão, provocando atitudes extremas, na forma de um suicídio, um crime passional ou um indício claro de insanidade ou deformação moral. O fato é que está tudo lá dentro, encerrado em algum canto escuro. Somos produto de nossa memória, embora em alguns momentos seja necessário esquecer para seguir em frente.


Benjamín Espósito, o personagem de Ricardo Darín em O Segredo dos seus Olhos, não quer esquecer. Próximo ao ocaso, ele não acredita que lhe reste apenas a lenta descida de degraus rumo aos sete palmos abaixo do chão. A vida pulsa nele, a memória também. E o que ela traz de volta é apenas amargura e decepção. O passado, como uma crise reumática crônica, a assombrar sua velhice. Mais do que voltar a um crime brutal ocorrido 25 anos antes, que não resultou na condenação do criminoso e abriu passagem para os esgotos da ditadura argentina, Espósito quer recordar um amor bem escondido, como na canção do Madredeus. Um amor moldado em silêncio e sombras. Acima de qualquer outra coisa, o filme de Juan José Campanella fala sobre a persistência da memória, não apenas a de Espósito, mas também a de sua antiga paixão, Irene, e a de Ricardo Morales, o homem que perdeu a jovem e amada esposa no crime brutal citado acima.


Todos eles estão de alguma forma agrilhoados ao passado, por mais que a passagem dos anos acrescente novas camadas de sentimentos e esmaeça a saudade e o desejo. Voltando à imagem da torre de livros, é como se alguns volumes da pilha fossem os nossos preferidos, aqueles que levamos conosco ao longo dos anos. O romance não concretizado com Irene é a obra-prima particular de Espósito, e vice-versa. Mas nada deixa mais evidente o caráter carcerário do passado do que a sombria e obsessiva trajetória de Ricardo, como ficará claro no surpreendente desfecho da narrativa. Ao final, como costuma acontecer nos grandes filmes, os questionamentos dos personagens se projetam para além da tela e alcançam o nosso território mais íntimo: o que fizemos de nossas vidas? Onde foi parar aquele eu tão diferente de mim que sumiu um dia e nunca mais deu as caras? Fizemos as escolhas certas? Até que ponto o acaso nos direcionou ao ponto em que estamos? Há retorno? Vale a pena retornar? São perguntas que nos levam a um confronto com nossos medos mais escuros. Mas, de tempos em tempos, esse confronto é necessário.

2 comentários:

Cidonia disse...

Adoro teu jeito de escrever!
Essas questões finais, também permeiam meus minutos antes de entrega-me ao sono, em muitas noites da minha existência!

Paulo Sales disse...

Obrigado, Gauchinha.
Essas questões permeiam a vida de todos nós que sentimos a angústia apertar em determinados momentos da vida. Mas é assim mesmo, faz parte.
Um beijo.