Deveria existir um equipamento que fosse capaz de mensurar tudo que nossa mente acumula pelo caminho, ano após ano. As camadas de alegrias, frustrações, traumas, revelações, surpresas, perdas e superações, que vão sendo meticulosamente sobrepostas em nossos espíritos, como uma pilha de livros construída displicentemente. Com elas, formamos a nossa matéria-prima. Cada livro espremido lá embaixo é essencial para o equilíbrio da torre à medida que avançamos. Um puxão irresponsável e a pilha vai ao chão, provocando atitudes extremas, na forma de um suicídio, um crime passional ou um indício claro de insanidade ou deformação moral. O fato é que está tudo lá dentro, encerrado em algum canto escuro. Somos produto de nossa memória, embora em alguns momentos seja necessário esquecer para seguir em frente.
Benjamín Espósito, o personagem de Ricardo Darín em O Segredo dos seus Olhos, não quer esquecer. Próximo ao ocaso, ele não acredita que lhe reste apenas a lenta descida de degraus rumo aos sete palmos abaixo do chão. A vida pulsa nele, a memória também. E o que ela traz de volta é apenas amargura e decepção. O passado, como uma crise reumática crônica, a assombrar sua velhice. Mais do que voltar a um crime brutal ocorrido 25 anos antes, que não resultou na condenação do criminoso e abriu passagem para os esgotos da ditadura argentina, Espósito quer recordar um amor bem escondido, como na canção do Madredeus. Um amor moldado em silêncio e sombras. Acima de qualquer outra coisa, o filme de Juan José Campanella fala sobre a persistência da memória, não apenas a de Espósito, mas também a de sua antiga paixão, Irene, e a de Ricardo Morales, o homem que perdeu a jovem e amada esposa no crime brutal citado acima.
Todos eles estão de alguma forma agrilhoados ao passado, por mais que a passagem dos anos acrescente novas camadas de sentimentos e esmaeça a saudade e o desejo. Voltando à imagem da torre de livros, é como se alguns volumes da pilha fossem os nossos preferidos, aqueles que levamos conosco ao longo dos anos. O romance não concretizado com Irene é a obra-prima particular de Espósito, e vice-versa. Mas nada deixa mais evidente o caráter carcerário do passado do que a sombria e obsessiva trajetória de Ricardo, como ficará claro no surpreendente desfecho da narrativa. Ao final, como costuma acontecer nos grandes filmes, os questionamentos dos personagens se projetam para além da tela e alcançam o nosso território mais íntimo: o que fizemos de nossas vidas? Onde foi parar aquele eu tão diferente de mim que sumiu um dia e nunca mais deu as caras? Fizemos as escolhas certas? Até que ponto o acaso nos direcionou ao ponto em que estamos? Há retorno? Vale a pena retornar? São perguntas que nos levam a um confronto com nossos medos mais escuros. Mas, de tempos em tempos, esse confronto é necessário.
2 comentários:
Adoro teu jeito de escrever!
Essas questões finais, também permeiam meus minutos antes de entrega-me ao sono, em muitas noites da minha existência!
Obrigado, Gauchinha.
Essas questões permeiam a vida de todos nós que sentimos a angústia apertar em determinados momentos da vida. Mas é assim mesmo, faz parte.
Um beijo.
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