Estou lendo um livro de Saul Bellow, chamado Ravelstein, no qual ele recria no terreno da ficção a amizade que cultivou ao longo de décadas com o filósofo Allan Bloom, o Ravelstein do título. Uma amizade marcada pela sinceridade sem amarras, pelo compartilhamento dos pequenos e grandes prazeres da vida e pela afeição mútua e silenciosa. Assim costumam ser as verdadeiras relações de amizade entre homens (e, provavelmente, entre mulheres). Ravelstein e Bellow (Chick no romance) são intelectuais de formação sólida, com bagagem cultural suficiente para que suas tertúlias sejam atraentes não apenas para os dois, mas também para o leitor. Ambos estão na casa dos 70 anos: o primeiro se aproxima a passos largos do fim e o segundo tem plena consciência do que representa viver o ocaso da existência.
Saboroso, o romance me faz lembrar das minhas próprias amizades. Enquanto bebo um agradável vinho chileno e escuto um solo de Coltrane, percebo que gostaria muito de ter um dos meus velhos amigos aqui agora para podermos conversar, ouvir música e beber, não necessariamente nesta ordem. É claro que nossos diálogos não mereceriam ser reproduzidos em livro (embora alguns tenham inspirado certos questionamentos e reflexões presentes neste blog), nem acho que tenhamos essa intenção. Mas uma relação mais próxima com meus amigos – como a de Chick/Bellow e Ravelstein/Bloom – me faz uma falta imensa. Não chegamos ainda à fase crepuscular das nossas vidas, mas, aos 40 anos, já é possível fazer balanços, tecer comentários auto-depreciativos e ridicularizar ou lamentar as nossas escolhas. É possível, também, projetar o que faremos no futuro, de preferência pensando que estaremos juntos sentados numa varanda de apartamento ou numa mesa de bar para questioná-lo ou louvá-lo.
Há algo de único na amizade entre homens que, creio, não pode ser reproduzido na amizade entre um homem e uma mulher. É a cumplicidade silenciosa de quem conhece intimamente os conflitos do outro, num momento da vida em que a competição mútua já foi devidamente mitigada. De quem sabe perfeitamente o que é uma crise no casamento ou o tédio causado por anos seguidos numa mesma profissão. Só um velho amigo sabe compartilhar aquele saco cheio do mundo ou o desejo irrefreável de rever (e se possível reacender) um amor de juventude e acertar as contas com o passado. Só homens falam de futebol, mulheres e bebidas com a autoridade necessária para que a opinião de um seja levada em conta pelo outro (uma afirmação profundamente machista, admito).
A maioria dos meus grandes amigos está longe. Meu melhor amigo é certamente o que vive mais distante, embora nos vejamos com alguma freqüência, quando ele vem ao Brasil. É curioso como nos entendemos com pequenos silêncios ou com frases que dizem muito mais do que os substantivos, artigos e verbos são capazes de expressar. E como a bebida nos une sem que precisemos tomar um porre para explicitar o que sentimos – embora, após a terceira garrafa de vinho, sejamos capazes de edificar reflexões arrebatadoras, fruto das nossas visões de mundo ao mesmo tempo próximas e distantes.
É fato que muitas dessas amizades foram e são essenciais na minha formação. Lembro das muitas madrugadas que jamais acabavam no Puppy, um boteco sagrado cravado no meio da Avenida Paulista, nas quais um mundo se descortinava para mim e onde eu cultivei um número significativo de amigos que permanecem comigo, apesar da distância. Ou de uma noite em que fiquei falando sobre filosofia e literatura com um grande amigo na varanda de uma pousada em Florianópolis, enquanto minha mulher e minha filha dormiam lá dentro e nós acabávamos com os maços de cigarro e com o conteúdo de duas garrafas de vinho e uma de uísque. Ou de uma vez em que mostrei meus poemas recém-escritos para um velho amigo no Extudo, um barzinho que abrigava a boemia baiana nos anos 90. Boas lembranças. Mas agora estou sozinho em casa, numa noite de segunda-feira, bebendo um vinho chileno, ouvindo um solo de Coltrane, e não tenho com quem conversar.