Alguns vinhos envelhecem bem. Alguns filmes também. Queria assistir algo interessante, indisponível na tevê naquele momento, e ao olhar para a minha prateleira de DVDs encontrei Sideways, que não via desde a época em que foi lançado nos cinemas, acho que em 2005. Revê-lo foi uma experiência hedonística, semelhante à queima do charuto dominicano que fumo agora, aos fraseados de Phil Woods que escuto neste momento e ao chardonnay chileno que me acompanha, já na última taça, enquanto escrevo. Estou me referindo, claro, a prazeres sensoriais, mas que trazem embutido um prazer intelectual, feito uma ligeira epifania. Os quatro ou cinco anos que me separam da primeira vez que assisti ao filme de Alexander Payne se fazem nitidamente presentes. Hoje conheço – pelo menos de nome – alguns dos vinhos citados por Miles, o personagem principal, e entendo algumas referências a aromas e sabores que ele elenca no decorrer da história. São motivos a mais para apreciá-la.
O registro humorístico de Sideways é seu grande trunfo, porque confere leveza a temas áridos, como depressão, carência afetiva, alcoolismo e um lancinante sentimento de inadequação. Miles é um grande personagem, assim como Jack, o amigo tosco que o acompanha para viver uma inusitada despedida de solteiro em meio aos vinhedos da Califórnia. Ambos fogem, nessa jornada, da mediocridade de suas vidas: o primeiro, de um casamento desfeito. O segundo, de um casamento sem futuro, para além do conforto financeiro que irá proporcionar. Um busca alento nos grandes vinhos, outro, no sexo descompromissado. O filme contempla a primeira semana do resto dessas vidas com ironia e leveza, mas também com lirismo e desalento. Há o fim de um ciclo, mas também um recomeço.
Mas foi o pano de fundo que mais me encantou desta vez. Aqueles vinhedos ensolarados despertaram em mim um desejo imediato de viajar até o Vale de Napa. De, como fizeram Miles e Jack, ir parando em pequenos bares e vinícolas para beber vinhos de produção limitada, feitos com afinco por gente de origem rural, meio bronca, como é o norte-americano típico: conservador, protestante, generoso e empreendedor. Nesse sentido, Sideways diz muito mais sobre o espírito da produção do vinho na região do que um filme meio tolo que vi recentemente, chamado Bottle Shock, sobre os bastidores do Julgamento de Paris, quando os rótulos locais superaram os franceses numa histórica degustação às cegas em 1976. Talvez porque, no trabalho de Payne, a bebida seja apenas uma companhia ilustre para as dores e delícias experimentadas pelos personagens, e não um fim em si para a narrativa.
Para mim, também, os vinhos são uma companhia ilustre. Um aprendizado ininterrupto, que passa ao largo do pedantismo e do exibicionismo tão comuns no consumo da bebida entre novos-ricos esnobes. Aprecio seus aromas, sua textura, o prazer singular que proporcionam e a trajetória que fazem desde quando são apenas o sumo dentro das uvas ainda não colhidas até o longo e complexo caminho que enfrentam antes de serem engarrafados, e mesmo lá dentro, quando evoluem lentamente como seres vivos – para usar a expressão de Maya, o par romântico de Miles –, passando pelo auge e decaindo inexoravelmente rumo ao fim. Em muitos finais de noite, como neste, há sempre um deles comigo, proporcionando um prazer solitário herdado de meu pai, perfeito para quem preza o ensimesmamento, a introspecção e as luas minguantes que nascem de madrugada.
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Segue abaixo a crítica de Sideways, escrita na época do seu lançamento:
A comédia humana*
`Sideways - Entre umas e outras´ empreende uma peregrinação pelas dores e delícias da existência
Não seria exagero afirmar que Sideways - Entre umas e outras é, na essência, um filme sobre prazeres. Alguns essencialmente masculinos e viscerais, como o sexo e o fascínio desmedido pela sedução, outros delicados e universais, como a primeva atração do homem pelo álcool e o delírio silencioso que só os livros são capazes de provocar. Mais do que isso, porém, a comédia sensível e humana assinada por Alexander Payne fala também da inadequação de certos homens ao universo que habitam.
Miles (Paul Giamatti) é um desses homens. Professor do ensino secundário, escritor fracassado, separado há dois anos de uma mulher que não consegue esquecer, ele vê a vida como algo em que se perde muito para se ganhar migalhas. Miles chegou a um ponto da existência em que até os pequenos prazeres que ela proporciona não conseguem mitigar o incômodo de um vácuo gigantesco. É esse homem que parte com o amigo Jack (Thomas Haden Church) numa viagem até o Vale de Santa Inez, conhecido por abrigar os melhores vinhedos da Califórnia.
Lá, eles vão se dedicar à degustação de algumas dezenas de vinhos das melhores cepas, jogar golfe e refletir sobre o bom da vida no meio das plantações de uva. Bem, pelo menos esses são os planos de Miles, enófilo obcecado, que nutre uma devoção exacerbada pelas uvas Pinot, e também um desprezo extremado pelas Merlot. Mas esses não são os planos de Jack, ator de seriados e comerciais de tevê, que tenta reter ao máximo os derradeiros fiapos de juventude fazendo sexo com o maior número possível de mulheres. Na viagem, que é também a sua despedida de solteiro, ele não anseia mais do que sexo rápido e intenso.
Miles e Jack são radicalmente diferentes entre si, e isso de certa forma os complementa. É o amigo que faz Miles permanecer de pé quando as crises de depressão o levam a uma inércia perigosa. E é também quem o protege dos arroubos de violência e da tendência à queda. Miles, por sua vez, serve de reserva moral para a ausência de escrúpulos e o excesso de imaturidade de Jack. Quando eles encontram e se relacionam com Maya (Virginia Madsen) e Stephanie (Sandra Oh), essa amizade se torna vital.
Baseado em livro de Rex Pickett, Sideways - Entre umas e outras se alicerça num roteiro consistente, a cargo de Jim Taylor e do próprio Payne. Há divagações arrebatadoras sobre vinhos e uvas. Numa delas, ao justificar para Maya a sua paixão pela Pinot - uva frágil, que só sobrevive em poucas e remotas regiões do planeta -, Miles está na verdade definindo a si mesmo. É uma seqüência belíssima, na qual a casca da timidez que envolve o personagem finalmente deixa entrever o ser humano valioso que se oculta por trás dela.
Giamatti oscila com a mesma desenvoltura entre o humor desbragado e o drama intimista. Sua atuação é um achado, assim como a de Church, com suas feições schwarzeneguianas e seu olhar bronco. Diretor de As confissões de Schmidt, Payne fez de Sideways uma comédia dramática que jamais cede ao óbvio. Miles e Jack são tipos que a princípio poderiam soar esquemáticos, mas ganham vigor e autenticidade ao longo da projeção. Ao final dela, temos à nossa frente seres humanos que poderiam ser nós mesmos. Ou nossos amigos, ou alguém que conhecemos em determinado momento da vida. E a aflição com o grau de insignificância e efemeridade da existência humana, que os atinge em maior (caso de Miles) ou menor (caso de Jack) medida, também nos acompanha ou acompanhará em algum momento do nosso percurso pela Terra.
* Publicado originalmente no Correio da Bahia
6 comentários:
Muito bom!
Obrigado, Karla.
bjs
Parabéns, Paulão! Belíssimo texto.
Obrigado, meu velho.
Grande abraço.
Acabei chegando até aqui, Paulão. Mto bom o blog e esse texto me fez lembrar de olhar com mais cuidado para a Pinot. Estou descobrindo o prazer de beber vinho, e como não me acho pedante - nem novo rico - ainda não passo dos R$40 numa garrafa. Tenho curtido, se quiser indicar uns, aceito. Abraço, Vini.
Valeu, meu velho, que bom que você gostou.
Também estou descobrindo esse prazer, e sem pedantismo fica ainda mais gostoso. Com R$ 40,00 dá pra comprar bons vinhos, embora poucos pinot. Quer algumas dicas? Olha aí (todas por até R$ 40):
Ventisquero Reserva Cabernet Sauvignon
Serrera del Pecado Cabernet/Malbec
Norton DOC Malbec
Palo Alto Reserva (Cabernet/Shiraz/Carmenére)
E quando você ganhar seu décimo, torre uma graninha a mais no Marquês de Casa Concha Cabernet ou no Ventisquero Gran Reserva Queulat Carmenere.
Grande abraço.
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