Nos extras do DVD de Desejo e Reparação, o diretor Joe Wright conta que deixou uma cena de fora da edição final do longa, argumentando que, quando a assistiu, ela não lhe pareceu suficientemente realista: três soldados ingleses caminhando pelos campos devastados da França durante a Segunda Guerra se deparam com uma perna de criança no alto de uma árvore. Apenas a perna, que se desprendera do corpo após uma bomba ter atingido a casa em que ela morava com a família. Daquela criança anônima restara apenas a perna na árvore. Vi a cena, também incluída nos extras, e ela nem me pareceu assim tão insólita, embora seja mesmo difícil transformar em imagem e movimento o que antes era apenas um bloco de palavras, nascidas da imaginação prodigiosa de Ian McEwan, autor do romance em que o filme é baseado.
McEwan imaginou uma perna no alto de uma árvore, mas a realidade muitas vezes consegue se embrenhar ainda mais fundo no território do absurdo. Hoje, vi a foto de um filhote de elefante morto no alto de uma árvore, a quatro ou cinco metros do rio que corria embaixo. Era como uma fruta estranha, pendendo dos galhos de uma floresta no Sri Lanka, onde – assim como no Brasil – as águas estão matando. Na região onde o elefante foi achado, elas subiram 5,5 metros, o que explica um animal tão pesado pendurado lá em cima quando voltaram ao nível normal. Não há ficção capaz de recriar uma imagem assim sem que o romance em questão não seja rotulado como uma obra de realismo fantástico. Trata-se de território exclusivo do absurdo, do onírico, mas ao qual de tempos em tempos a vida real se lança, deixando o mundo atordoado.
No Brasil, ao contrário, o que temos é um romance enfadonho, que se repete a cada ano com o festival de horrores habitual: casas, ruas e bairros desaparecendo em minutos e mortos aparecendo em escala semelhante à de grandes terremotos. Aqui, o nonsense tem como matérias-primas a monotonia e a reincidência. Mesmo as imagens – com algumas exceções que só confirmam a mesmice – parecem saídas do banco de dados das emissoras, num espetáculo de som e fúria que não significa nada. Contabilizamos nossos prejuízos, choramos nossos mortos, festejamos nossos sobreviventes e não identificamos nossos culpados. Nossa jornada é a dos errantes, que esquecem o passado para tentar prosseguir. Calando a dor, escondendo as lágrimas e caminhando inapelavelmente rumo a lugar nenhum.
6 comentários:
Aliás, Paulo, o livro que deu origem a este filme, "Reparação", do Ian McEwan, é uma obra-prima. Adoro este escritor!
PS: O Caroço voltou. Passa lá!
Seja bem-vindo de volta, João.
Sim, claro, é um belíssimo livro, assim como Sábado. Já escrevi aqui no blog sobre McEwan, depois dê uma olhada. O título do post é "Animal Sorrateiro", eu acho.
Grande abraço.
p.s. - Já dei uma passada lá no Caroço da Fruta. Continue escrevendo. Uma dica, se é que você não já leu: Conversa na Catedral, de Vargas Llosa. Escrevi sobre ele recentemente.
O que me assusta, talvez por ser um tanto ingênuo, é a cara de espanto que os responsáveis fazem ao ver a tragédia. Fora o discurso, como o do Carlos Minc: "Faltou apenas retirar as famílias das áreas de risco". Isso aqui não tem jeito, não...
É, e pior que a retórica estabanada é a incapacidade de se prevenir a mais banal das tragédias. Vai-se empurrando com a barriga para ver se no próximo ano a coisa melhora. Não melhora.
Paulinho, demorei mas postei. Desculpaê pela demora e mais uma vez, muito obrigado, velhinho! Todo mundo se amarrou no texto! Segue o link:
http://caderno2mais.atarde.com.br/?p=2467
Fala, Poetinha.
Eu é que agradeço por voltar à imprensa soteropolitana graças a você. Já peguei o Caderno 2 e levei pra casa pra ler com calma. Gostei da diagramação, ficou modernosa. Essa parceria pode render mais.
Grande abraço,
P.
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