Há algum tempo já era possível perceber que o debate político nos Estados Unidos equilibrava-se de forma perigosa sobre placas tectônicas movediças – e que em algum momento o terremoto seria inevitável. Pois ele (ou sua primeira manifestação) aconteceu no último sábado, em Tucson, no Arizona. Um sujeito com nebulosas motivações políticas matou seis pessoas e feriu outras 14, incluindo a deputada democrata Gabrielle Giffords, uma das mais ativas representantes do Partido Democrata no Congresso americano, que permanece em estado gravíssimo. Atentados como esse ocorrem vez por outra nos Estados Unidos, país que tem entre seus pilares o belicismo atávico e o respeito sagrado às liberdades individuais – até mesmo para comprar uma pistola automática no supermercado da esquina.
Mas há algo de diferente neste caso em relação ao massacre de Columbine, por exemplo. Estamos diante da personificação, na prática, da retórica extremista do Tea Party, o movimento da extrema direita capitaneado, entre outros, por Sarah Palin, ex-senadora e candidata derrotada ao cargo de vice-presidente. Uma retórica que insufla preconceitos e reverbera ao máximo os já virulentos discursos do Partido Republicano e as manifestações de cunho racista contra Barack Obama. É a incapacidade de aceitar o outro, ainda mais quando esse outro mexe com conceitos arraigados, ao pregar o fim de privilégios seculares e a necessidade de se repartir o bolo entre mais convidados. É curioso que o presidente esteja sofrendo ataques verbais tão pesados por conta principalmente de um projeto tão legítimo: a reforma da saúde, que vai proporcionar o acesso a hospitais e tratamentos para gente que nunca pôde contar com ele. Gente que pertence à escória, como aquela que George W. Bush largou à própria sorte em New Orleans para morrer na passagem do furacão Katrina. Como alguém em sã consciência pode se opor a isso? Ou melhor: como uma nação em sã consciência pode ter uma oposição liderada por Sarah Palin?
Obama, de fato, não conseguiu ainda retirar o país da sua pior crise econômica desde 1929, provocada em grande parte pela incompetência do antecessor. Parece claudicar em momentos cruciais, e em outros se vê paralisado pela complexidade e extensão da presença americana em outros países, mais um legado amargo de Bush. Se por um lado conseguiu avançar nas investigações em Guantánamo e programar a retirada do Iraque, por outro seu exército ainda continua matando civis indiscriminadamente no Afeganistão. Mas, acima de tudo, Obama passa a impressão de ser um sujeito bem-intencionado e preparado para conduzir os Estados Unidos a um novo patamar, distante do belicismo estúpido e da farra de bancos e especuladores imobiliários. Além, é claro, de se dispor a elevar milhares de pessoas à categoria de cidadãos americanos.
A verdade é que algo vai muito errado quando o respeito às idéias e comportamentos alheios são solapados pela intolerância e pela estupidez de maneira tão aberta e ostensiva. É possível que estejamos assistindo ao despertar de um “momento novo e assustador”, como disse o jornalista Matt Bai, do New York Times (em artigo publicado hoje na Folha de S.Paulo). Bai acrescenta: “A questão mais premente é onde tudo isso vai acabar – se vamos começar a reavaliar o tom exacerbado de nosso debate político ou se estamos mergulhando em alta velocidade em um período assustador, mais semelhante ao final dos anos 1960. Tucson ou será a tragédia que nos trará de volta da beira do abismo, ou será a primeira de uma série de recordações sinistras que ainda estão por vir.”
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