sábado, 30 de abril de 2011
Sobre um herói
Em 2002, durante um curto período em que morei e trabalhei em Fortaleza, comprei e li um livro que se tornaria referência de grande literatura para mim nos anos seguintes. Era Sobre Heróis e Tumbas, de Ernesto Sabato. Varei madrugadas solitárias naquela cidade tendo apenas cigarros e as páginas de Sabato como companhia, e era muito bom. O texto fluía, e eu me deixava levar fascinado. Na época, tentava escrever um romance (que permanece inacabado) e não encontrava o tom, a forma, a linguagem. Sabato me ajudou a desenvolvê-lo. Já de volta a Salvador, após uma longa entrevista com Hector Babenco (uma das mais tensas e ricas que tive a oportunidade de fazer), ele me pediu que permanecesse ao seu lado mais alguns minutos para jogarmos conversa fora. Falamos de livros e lhe falei do impacto que tinha me causado a leitura de Sobre Heróis e Tumbas. Ele sorriu e concordou: "Esse livro é uma obra-prima. O capítulo do Relatório sobre os Cegos é uma das coisas mais lindas que já li na vida".
Curioso que agora, ao saber que Sabato morreu, aos 99 anos, após um longo e escuro inverno, peguei o livro na estante e o acariciei. Li a introdução, a nota preliminar e o primeiro parágrafo. E me dei conta de que recordo muito pouco dele, da sua trama, dos seus personagens. Lembro de Alejandra, uma jovem impetuosa, e vagamente de alguns momentos do Relatório sobre os Cegos, mas onde foi parar, na minha memória, o livro que tanto me fascinou há apenas oito anos? É como se houvesse retirado o conteúdo da obra da pasta onde deveria estar arquivado, no gigantesco arquivo morto de minha mente, e bagunçado tudo. Isso me entristeceu, pois queria falar um pouco de Sabato e do seu livro mais conhecido, refletir um pouco sobre seu humanismo exacerbado ou sua invejável capacidade de invadir com inquietações nossos recantos mais sossegados. Quem sabe até lembrar de alguma frase capaz de definir o seu pensamento.
Mas não. Restam apenas páginas em branco aqui dentro, ligeiramente borradas por arremedos de diálogos e acontecimentos. Sabato não merecia isso de um leitor que o admira tanto, mas é provável que compreendesse. Pretendo saldar essa dívida com ele relendo Sobre Heróis e Tumbas e também outros livros seus que tenho por aqui. E finalizo citando uma frase retirada de A Resistência, obra que encerra memórias e reflexões outonais de Ernesto, sobre a qual já falei aqui no blog: “Antigamente a morte era para mim a prova da crueldade da existência. O fato que diminuía e até ridicularizava minhas prometéicas lutas cotidianas. O atroz. Então eu costumava dizer que, para me levarem até a morte, precisariam do auxílio da força pública. Era assim que eu exprimia minha decisão de lutar até o final, de não me entregar jamais. Mas agora a morte se avizinha, sua proximidade me irradiou uma compreensão que nunca tive; neste entardecer de verão, a história do vivido está à minha frente como que posta em minhas mãos, e às vezes um tempo que eu julgava desperdiçado se mostra com mais luz que outro, que eu tinha por sublime".
Sabato não precisou da força pública. Entregou-se à morte docemente, legando um mundo só seu para nosso deleite.
domingo, 24 de abril de 2011
Dentro da noite veloz
Acho que foi Gabriel García Márquez quem uma vez disse que um escritor escreve sempre o mesmo livro, não importa quantos títulos publique. Ou seja, uma obra nada mais é do que uma peça num rol de variações em torno do mesmo tema. Um inventário de obsessões que se sucedem infinitamente, por mais que variem os enredos, épocas e personagens. É possível, partindo desse pressuposto, que Gabo tenha passado as últimas três ou quatro décadas reescrevendo Cem Anos de Solidão. Mas acredito que a frase do mestre colombiano não se aplica apenas a escritores - ou pelo menos a escritores na acepção mais restrita do termo: homens e mulheres que escrevem e publicam livros e dedicam quase todas as horas úteis dos seus dias ao ofício de transformar palavras e frases em surtos de delírio silencioso.
De acordo com esses parâmetros, não posso ser considerado um escritor. Nem mesmo um escritor medíocre. Mas acredito que há algo a me aproximar da literatura nas prosaicas reflexões que escrevo aqui no blog. Afinal, como um autor de verdade, passei os últimos dois anos reescrevendo textos que, com raras exceções, abordam invariavelmente os mesmos assuntos. Textos que ultimamente andam mais escassos, como se houvesse esgotado todo o meu estoque de obsessões. O problema é que minhas obsessões não são muitas, e nos últimos meses tenho falado demais sobre coisas de menos. Desde que criei este blog, ele vem reverberando o que sinto necessidade de exprimir: sejam flechadas no calcanhar ou pequenos nós de marinheiro que insistem em permanecer na garganta. Afinal, à maneira de Sylvia Plath, também sou habitado por gritos. É como se retirasse fardos do ombro e os colocasse na tela, na forma de palavras. O chato é que esses fardos possuem muita semelhança entre si, e há, obviamente, um limite de palavras para descrevê-los.
De que adianta repetir os mesmos argumentos, revelar os mesmos temores, manifestar as mesmas desilusões, num leitmotiv prolixo e enfadonho? Como compreender o mundo se quanto mais escrevo, menos racional ele se mostra para mim? Mais do que cansar os meus poucos leitores, temo cansar a mim mesmo com discursos tolos, que apenas expõem a ferida, mas não oferecem o tratamento para que ela cicatrize. Bem, adianto que não vou deixar de escrever, abandonar o blog à míngua. Mas existem momentos em que não encontro forças para falar de novo sobre o que considero injusto, absurdo, incompreensível ou mesmo maravilhoso. Certas coisas me calam, como aquele massacre em Realengo. O que teria a acrescentar, como poderia conferir ordem a um caos tão avassalador?
Certa vez, numa entrevista, o escritor angolano José Eduardo Agualusa me disse que, segundo um preceito budista, o mundo evolui em forma de espiral: você recua, mas vai subindo sempre. Talvez eu esteja vivendo um período de recuo, um pequeno momento de recolhimento antes de voltar ao front. Não sei, tudo isso me faz lembrar aquelas conversas para boi dormir do Paulo Coelho, mas quem sabe não existe algum sentido nessa baboseira toda? Afinal, por que outro motivo estaria aqui, faltando vinte minutos para as três da manhã, escrevendo este texto enquanto Dexter Gordon sola sem freios no aparelho de som?
Em Cartas a um Jovem Poeta, Rilke aconselhou seu discípulo a investigar nos "recantos mais profundos da alma" qual o motivo que o mandava criar versos. E pediu que confessasse a si mesmo: "Morreria, se lhe fosse vedado escrever?". Não lembro agora qual foi a resposta do jovem poeta, se é que houve. No meu caso, talvez não morresse de imediato. Mas certamente morreria aos poucos, bem devagar, agonizando de sede de palavras. Daí ser tão importante estar aqui, vivo, ouvindo um latido na rua vazia e me lançando dentro da noite veloz.
sexta-feira, 8 de abril de 2011
Chuva forte
Hoje baixei meio que por acaso um disco de Joan Baez. Procurava uma canção de Bob Dylan chamada Farewell, que não ouço há pelo menos uns 15 anos. Não encontrei. Mas achei um disco de mesmo nome, gravado por sua namorada lá nos paleolíticos anos 60. E o escuto agora pela segunda vez seguida, neste fim de noite que encerra um dia triste. Não deve existir nada mais fora de moda do que ouvir Joan Baez em abril de 2011, assim como não há nada mais fora de moda do que defender a dignidade do ser humano ou o anseio por um mundo menos desigual, como ela defendia quando gravou o disco. Devo ser um indivíduo extemporâneo, de princípios arcaicos, incapaz de me adequar aos valores e sonoridades do meu tempo, pois adorei ouvir de novo aquela voz cheia de vibrato e idealismo que só a garganta de Baez é - ou era - capaz de produzir.
Enquanto bebo um vinho siciliano na escuridão da varanda, ouço o disco com um prazer mudo. Até o momento em que ela chega à última canção, aquela que talvez seja a que mais me comova entre todas as canções de Dylan. Ele escreveu A Hard Rain's a-gonna Fall em 1962, durante a crise dos mísseis em Cuba, que quase provocou a terceira guerra mundial e o fim de tudo isso que conhecemos e a que nos agarramos como náufragos. Tinha 22 anos. Voltei a prestar atenção na letra, como faço desde que me deparei pela primeira vez com a canção, num disco de vinil gravado ao vivo não sei mais onde (depois ganhei de uma amiga em CD o clássico The Freewheelin' Bob Dylan e pude ouvir a gravação original).
Está tudo lá. Toda nossa dor está lá. O massacre de Realengo está lá. Os massacres de Columbine e Beslan também estão, assim como os terremotos do Japão ou do Haiti ou os bombardeios contra civis que viraram regra em nosso tempo. Dylan escreveu uma canção definitiva, apocalíptica. Peguei na minha estante um velho volume com suas letras traduzidas e na introdução do livro o editor reproduz um depoimento do poeta: "É uma canção de desespero. Cada verso dela é realmente o começo de uma nova canção. Mas quando a escrevi, pensei que não ia viver tempo suficiente para fazer essas canções e portanto pus nessa tudo que pude".
Já escrevi poemas igualmente desesperados aos 22 anos, um período particularmente difícil da minha vida. Mas não levado por uma avalanche poética como Dylan. Como ele conseguiu? Ouço neste momento Joan Baez cantá-la. Um mantra terrível, com versos como "Vi armas e espadas afiadas nas mãos de crianças" ou "Ouvi o rugir de uma onda que podia engolir o mundo inteiro" ou ainda "Eu ouvi uma pessoa morrendo de fome, eu ouvi muitas pessoas rindo". Baez canta esses versos com uma dor que comove, e em nenhum momento acalenta. Ela nos arremessa contra nossos próprios medos sem qualquer expectativa de redenção. E nos deixa sós, na noite alta, à espera de mais tragédias absurdas, suportando o nosso vazio sem voz, o nosso desencanto tolo e sem sentido.
quinta-feira, 7 de abril de 2011
Um dia
Quando estou muito triste é como se o ar fosse sólido. Como se eu tentasse aspirar concreto. Os pulmões se retraem e os demais órgãos acusam o golpe, trabalhando em dobro. Há uma ferida aqui dentro, oculta não sei exatamente em que ponto da minha anatomia. Talvez tenha início do lado esquerdo da face, que é onde noto sua presença, mas sua extensão e sua profundidade me são desconhecidas. Vontade de ir. De levar quem eu gosto para longe do meu próprio sofrimento. E há o cansaço, pleno e vaporoso, ocupando todos os espaços. Hoje, a dor alheia se junta à minha. Um dia ruim, fechado em si mesmo, refratário a qualquer espécie de alívio.
sábado, 2 de abril de 2011
Trocando em miúdos
Um estudo recente, realizado pela Universidade de Michigan, parece endossar o que mentes feridas mundo afora já sabiam há muito tempo, mas não tinham como provar: sofrer uma rejeição social é algo tão doloroso quanto o sofrimento físico. Nesse sentido, um corte profundo no pé pode ter o mesmo efeito de uma relação encerrada subitamente. Ethan Kross, coordenador da pesquisa, afirma: “A princípio, derramar uma xícara de café quente em você mesmo ou pensar em uma pessoa com quem experimentou recentemente um rompimento inesperado parece que provoca tipos diferentes de dor, mas nosso estudo mostra que são mais semelhantes do que se pensava”. Os resultados do estudo - que serão publicados na revista Proceedings of the National Academy of Sciences - mostram que a dor, seja ela física ou psicológica, ativa as mesmas áreas do cérebro: o córtex somatossensorial e a ínsula dorsal posterior.
Ou seja, em ambas as situações, a sensação é de um machucado, uma ferida que pode ou não ser curada com o tempo. Perder alguém dói, e muito. Pode ser o equivalente a uma xícara de café quente no nosso colo, para usar a imagem do pesquisador norte-americano, ou quem sabe até um tiro, um atropelamento, uma crise de hérnia de disco. Acho que todos nós, em algum momento da vida, passamos por isso, e o resultado é a cabeça pesada, a visão turva e um vácuo lancinante em alguma parte do tórax, além da sensação de desamparo e impotência tomando conta de nós como um manto nos cobrindo aos poucos. Já passei por isso algumas vezes (poucas, felizmente), e posso dizer: é quase insuportável. É como se toda a imagem que cultivamos de nós mesmos repentinamente se transformasse num borrão, numa caricatura que ressalta o que temos de mais grotesco. Viramos um arremedo de nós mesmos, pequenos monstros de argila amorfos e sem vida, a procurar um sentido para o espaço vazio deixado no guarda-roupa ou a ligação jamais atendida. Dá um trabalho danado reconstruir o que fomos, embora a cicatriz em algum ponto do nosso córtex somatossensorial continue coçando de vez em quando. Cura? Sinceramente, não sei se existe. Prosseguimos, e é o que interessa.
Quem dera as relações amorosas fossem idílicas, solares e uniformes como nos comerciais de lançamentos imobiliários. Um sorriso, um abraço e os filhos correndo pelo gramado. O que há na verdade é uma negociação constante, uma permuta na qual um ou outro lado sai ganhando. Enquanto há um equilíbrio nesse escambo de sentimentos e aspirações, vamos levando. Quando não há, cada um segue o seu caminho - carregando a reboque eventuais filhos, partilhas na justiça e pensões alimentícias - e tudo bem. São as sobras de tudo que chamam lar, como diriam Chico e Francis. O problema é quando não fica tudo bem. Já presenciei amigos e amigas literalmente desmoronarem, enveredando pelo labirinto da própria rejeição e se alimentando dela para sobreviver. Como se arrancassem o cascão de uma ferida para mantê-la viva. Gente centrada, experiente, que parecia capaz de tirar de letra um pontapé na bunda e partir para outra. O fato é que, voltando à letra de Chico e Francis, não deveríamos cobrar pelo estrago alheio. Mas o que fazer com o peito tão dilacerado?
A pesquisa também, de certa forma, nos faz entender - embora jamais justifique - o que deve sentir quem comete um crime passional. É a lógica da legítima defesa: você está me machucando cada vez mais, então preciso revidar. É óbvio que se trata de um raciocínio enviesado, obtuso, mas não deixa de fazer sentido. Você está matando não o objeto do seu amor, mas sim a fonte do seu sofrimento. Mas aí entra um raciocínio inverso, que vai além das consequências legais: matando a pessoa que ama, quem fica no lugar dela? Como ocupar o vazio duplamente inserido lá na ínsula dorsal posterior? É um labirinto sem saída. O que me assombra em tudo isso é a frequência cada vez maior de crimes passionais, e a forma cada vez mais brutal com que são cometidos. Há, nitidamente, um processo de desintegração social, que permite a qualquer um fazer sua justiça com as próprias mãos. Quando matar se torna uma solução - sob qualquer aspecto - é porque estamos falidos como sociedade. E não há amor no mundo que justifique um ato tão extremo.
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