Alguns homens sobrevivem à própria morte. Permanecem na Terra por tanto tempo, tendo acumulado tantas experiências e reminiscências, que se convertem em oráculos do seu tempo. Desde que venha acompanhada de uma produção intelectual intensa e fértil e de condições dignas de saúde, a longevidade é uma bela dádiva. Apesar dos seus efeitos colaterais: a perda de quase todos os que conhecemos, a sensação de vácuo existencial trazida pela aposentadoria e pelo fato de que a maciça maioria dos seres humanos vivos é bem mais nova do que você, as mudanças nos costumes, o sentimento de inadequação diante de um mundo que se transforma como extrema ferocidade. E, acima de tudo, a longa convivência com a própria velhice e tudo que vem com ela a tiracolo: doenças cardíacas, senilidade, raciocínio embotado. Por tudo isso, admiro profundamente pessoas como o bibliófilo José Mindlin, o arquiteto Oscar Niemeyer ou o cineasta português Manoel de Oliveira, que diariamente aplicam dribles certeiros na morte e continuam produzindo em escala industrial.
Ernesto Sabato é outro desses grandes homens do nosso tempo. Seu principal romance, Sobre Heróis e Tumbas, está incluído no rol dos grandes livros que tive a honra de conhecer. E ontem concluí A Resistência, um livro de ensaios em forma de cartas ao leitor, sugestão de um amigo que conhece do riscado (http://verbotransitivo.blogspot.com/). Mas este não me agradou muito, sobretudo pelas reflexões ingênuas e saudosistas que perpassam todo o livro e enfraquecem o seu discurso. De qualquer modo, seu humanismo me comove. Um humanismo atávico, orgânico, secular, arraigado há muito tempo em sua visão de mundo. E Sabato vê um mundo sombrio neste início de século. Um mundo prestes a desmoronar e dar lugar a outro, que o seu fiapo de otimismo acredita que poderá ser um mundo melhor.
Mas o que me marcou em A Resistência não foi nada disso. Foram aqueles pequenos parágrafos confessionais nas duas derradeiras páginas do livro, nos quais ele reflete sobre a própria longevidade e o outro lado dessa moeda: o fim, há tanto tempo esperado que é quase como um velho conhecido. Valeu a pena chegar até essas páginas e poder ler coisas como as que seguem abaixo:
“Algumas vezes na vida senti que corria perigo e podia morrer. E, no entanto, aquele sentimento de morte em nada se parece com este que vivo agora. Então ela teria sido parte das minhas lutas ou de alguma outra circunstância: um fracasso dos meus projetos. Eu poderia ter morrido inesperadamente, e não teria sido como agora, quando a morte vai tomando conta de mim aos poucos, quando sou eu quem se inclina a ela.”
“Há dias em que me invade a tristeza de morrer e, como se fosse possível enganar a morte, corro a me entrincheirar em meu estúdio e me ponho a pintar com frenesi, ciente de que ela não me arrebatará a vida enquanto houver uma obra inacabada entre minhas mãos. Como se a morte pudesse entender as minhas razões.”
“Antigamente a morte era para mim a prova da crueldade da existência. O fato que diminuía e até ridicularizava minhas prometéicas lutas cotidianas. O atroz. Então eu costumava dizer que, para me levarem até a morte, precisariam do auxílio da força pública. Era assim que eu exprimia minha decisão de lutar até o final, de não me entregar jamais. Mas agora a morte se avizinha, sua proximidade me irradiou uma compreensão que nunca tive; neste entardecer de verão, a história do vivido está à minha frente como que posta em minhas mãos, e às vezes um tempo que eu julgava desperdiçado se mostra com mais luz que outro, que eu tinha por sublime”.
A Resistência foi lançado originalmente em 2000. Ou seja, nove anos depois de escrever esses textos, Sabato continua por aqui, sem dúvida surpreso com a generosidade da dita cuja para com ele. Não deixa de ser curioso que, mesmo tendo vivido tanto tempo, ele ainda reflita sobre o fim com perplexidade e torpor semelhantes às de um homem de 20 ou 40 anos, só que com muito mais sabedoria e dignidade. Afinal, como ele mesmo diz, a morte é a prova da crueldade da existência. Seja ela longeva ou curta como um sopro.
Ernesto Sabato é outro desses grandes homens do nosso tempo. Seu principal romance, Sobre Heróis e Tumbas, está incluído no rol dos grandes livros que tive a honra de conhecer. E ontem concluí A Resistência, um livro de ensaios em forma de cartas ao leitor, sugestão de um amigo que conhece do riscado (http://verbotransitivo.blogspot.com/). Mas este não me agradou muito, sobretudo pelas reflexões ingênuas e saudosistas que perpassam todo o livro e enfraquecem o seu discurso. De qualquer modo, seu humanismo me comove. Um humanismo atávico, orgânico, secular, arraigado há muito tempo em sua visão de mundo. E Sabato vê um mundo sombrio neste início de século. Um mundo prestes a desmoronar e dar lugar a outro, que o seu fiapo de otimismo acredita que poderá ser um mundo melhor.
Mas o que me marcou em A Resistência não foi nada disso. Foram aqueles pequenos parágrafos confessionais nas duas derradeiras páginas do livro, nos quais ele reflete sobre a própria longevidade e o outro lado dessa moeda: o fim, há tanto tempo esperado que é quase como um velho conhecido. Valeu a pena chegar até essas páginas e poder ler coisas como as que seguem abaixo:
“Algumas vezes na vida senti que corria perigo e podia morrer. E, no entanto, aquele sentimento de morte em nada se parece com este que vivo agora. Então ela teria sido parte das minhas lutas ou de alguma outra circunstância: um fracasso dos meus projetos. Eu poderia ter morrido inesperadamente, e não teria sido como agora, quando a morte vai tomando conta de mim aos poucos, quando sou eu quem se inclina a ela.”
“Há dias em que me invade a tristeza de morrer e, como se fosse possível enganar a morte, corro a me entrincheirar em meu estúdio e me ponho a pintar com frenesi, ciente de que ela não me arrebatará a vida enquanto houver uma obra inacabada entre minhas mãos. Como se a morte pudesse entender as minhas razões.”
“Antigamente a morte era para mim a prova da crueldade da existência. O fato que diminuía e até ridicularizava minhas prometéicas lutas cotidianas. O atroz. Então eu costumava dizer que, para me levarem até a morte, precisariam do auxílio da força pública. Era assim que eu exprimia minha decisão de lutar até o final, de não me entregar jamais. Mas agora a morte se avizinha, sua proximidade me irradiou uma compreensão que nunca tive; neste entardecer de verão, a história do vivido está à minha frente como que posta em minhas mãos, e às vezes um tempo que eu julgava desperdiçado se mostra com mais luz que outro, que eu tinha por sublime”.
A Resistência foi lançado originalmente em 2000. Ou seja, nove anos depois de escrever esses textos, Sabato continua por aqui, sem dúvida surpreso com a generosidade da dita cuja para com ele. Não deixa de ser curioso que, mesmo tendo vivido tanto tempo, ele ainda reflita sobre o fim com perplexidade e torpor semelhantes às de um homem de 20 ou 40 anos, só que com muito mais sabedoria e dignidade. Afinal, como ele mesmo diz, a morte é a prova da crueldade da existência. Seja ela longeva ou curta como um sopro.
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