quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Que venha 2012



John Fante tem um livro chamado 1933 Foi um Ano Ruim. Eu poderia parafraseá-lo e dizer que 2011 foi um ano ruim. Não um ano terrível, daqueles que nos lançam contra nossos medos mais profundos, mas sim um ano sem graça, modorrento e marcado por episódios que preferiria não ter vivenciado. Passei por anos piores, e de cara lembro de três: 1988, 1999 e 2003, cada qual com seus próprios infortúnios. No final do ano passado, escrevi aqui no blog que gostaria de ter em 2011 “um pouco mais de finais de tarde. De ver mais vezes o sol morrendo e a lua nascendo em frente ao mar”. Não tive. Vivi menos do que gostaria.

Por outro lado, é muito difícil encerrar cada ano em compartimentos estanques, sem qualquer ligação com aqueles que o antecederam e sucederam. Mesmo porque, à medida que envelhecemos, os anos cada vez mais se parecem uns com os outros, como se fossem uma única correnteza espessa e opaca, que se desloca cada vez mais rápido rumo a um oceano de silêncio e breu. O que os diferencia é o pouco que fazemos de valoroso em cada um deles: uma viagem, uma ruptura profissional, uma nova relação amorosa. Lembro que aos 14, 15 ou 16 anos cada ano encerrava uma descoberta específica, que podia ser tanto uma epifania sexual quanto um pontapé no coração adolescente. Os anos passavam lentos, cindidos pelos dois períodos de férias escolares. O mundo se revelava com toda a sua apoteose de alegrias, temores, hesitações, triunfos e decepções.

Hoje, quando nos vestimos de branco, bebemos espumante quente e desejamos votos de paz e prosperidade a todo mundo que surge à nossa frente, estamos apenas repetindo um ritual que celebra a vinda de algo que já conhecemos intimamente. Mais do mesmo, com raras exceções. Talvez por isso, não levo muito a sério essas resoluções de ano-novo, promessas inúteis que fazemos a nós mesmos e que sempre acabam na vala comum das recaídas, seja no vício em nicotina ou na acomodação geral. Gostaria, no entanto, de imaginar que 2012 possa vir a fazer parte da lista de anos pelos quais tenho um carinho especial, como 1990, 1996 ou 2000. Um ano gostoso e aconchegante, no qual possa continuar aproveitando a companhia das pessoas que amo, ver minha filha abraçar sem medo a adolescência, ascender profissionalmente e ir para a Europa. Além, é claro, de ter um pouco mais de finais de tarde.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Espirais



Tenho lembrado nos últimos dias de uma resposta que o escritor angolano José Eduardo Agualusa me deu uma vez, durante uma entrevista, ao ser indagado se a humanidade estava sendo assombrada por um tempo particularmente sombrio: “Os budistas dizem que a gente evolui em espiral: você recua, mas vai subindo sempre. Quando você olha para trás, vê um tempo de sombras. Quanto mais para trás você olha, piores eram os tempos. Há cem anos havia escravidão aqui no Brasil, e eu não conheço sistema mais indigno e injusto que a escravatura. E era aceito. Depois houve o Hitler. Hoje já não seria possível existir um Hitler, nem a escravatura. O mundo não permitiria. Nós melhoramos muito, não há dúvida que há uma evolução ética e moral”.

Acho que Agualusa está certo, que estamos realmente evoluindo como civilização, como sociedade. Mas ele também está certo quando cita o provérbio budista, de que avançamos em espiral. Cada avanço é precedido e sucedido de retrocessos muitas vezes brutais. Se fizermos uma rápida retrospectiva do século 20, perceberemos que ele alternou movimentos radicalmente distintos de sístoles e diástoles: uma primeira década tranquila e marcada por inovações tecnológicas, seguida da explosão de violência da Primeira Guerra que, ao acabar, ofereceu ao mundo a década de paz, riqueza e hedonismo desenfreado que ficou conhecida como a Era do Jazz. Em seguida, foi a vez do Crash da Bolsa de Nova York, da Grande Depressão e da ascensão do fascismo na Europa, que iria desaguar no horror absoluto da Segunda Guerra. Tempos sombrios, mas que por sua vez culminaram, entre as décadas de 50 e 70, nos estados de bem-estar social, com um grau de prosperidade nunca visto – nem antes, nem depois.

Não tenho dúvida de que o ataque da Al Qaeda ao World Trade Center inaugurou e simbolizou uma nova era de retrocesso. Hoje, presenciamos um momento de franca deterioração moral, de retorno ao que temos de mais bárbaro e primitivo, como uma espiral que sai um pouco fora da curva e derrapa inapelavelmente rumo ao precipício. É nítida a sensação de queda. Desde que criei este blog, há exatos três anos, me vi várias vezes discorrendo sobre a perplexidade que me toma diante de alguns atos cometidos por seres humanos. Em muitas outras me calei, pois percebi que me tornaria repetitivo e enfadonho, como um cantor de um único sucesso. Mas esta semana algo parece ter provocado uma pequena fratura em algum canto da minha mente, pois me vi de novo compelido a arfar como um asmático antes de pôr para fora todo o meu desassossego.

Não vou me estender em torno de disparates como o da enfermeira que matou um cãozinho a pauladas sob o olhar complacente da pessoa que filmava o ato. Ou da garota de 14 anos atacada com facadas e pedradas por colegas da mesma idade, ao ponto de ter o pulmão e o ovário perfurados. Eles são apenas variações de uma mesma desdita. O que mais me espanta em episódios como esses é como germinam cada vez mais crimes cometidos por pessoas que, em tese, não são criminosas. Bem ou mal, podemos esperar que um assaltante ou um traficante de drogas, submersos como estão num lamaçal crônico de violência, sejam capazes de nos arrancar a vida com diferentes matizes de crueldade. Mas não esperamos isso de alguém que poderia quem sabe ser nosso vizinho ou nosso colega de trabalho.

Estamos em um ponto tão obscuro da espiral que não sabemos mais onde foi parar o significado de palavras como dignidade, compaixão ou alteridade. É o fim dos tempos, como diria um temente a Deus. Ou talvez, como apregoam os budistas, o fim de uma era de retrocesso antes que voltemos a avançar de novo.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Espelho distorcido



Certa manhã, após uma noite de sonhos intranqüilos, eu acordei com uma dor terrível na perna esquerda. Tinha 17 anos, e passara a madrugada escrevendo em sonho um romance ao qual dei o nome de O Livro Vermelho. Do conteúdo do livro restou quase nada. Mas a dor desse dia foi a primeira de muitas manifestações que desaguaram em uma doença chata, diagnosticada inicialmente como síndrome de Reiter e mais tarde como espondilite anquilosante, que me acompanha até hoje. Agora mesmo, enquanto escrevo, sinto uma pontada forte nas costas. Mas já estou acostumado.

Na época, fui tratado com antiinflamatórios e depois de algumas semanas me senti melhor. Mas em dezembro de 1991, pouco antes de completar 22 anos, a doença se manifestou de novo. O curioso é que novamente houve um componente literário nessa história. Estava escrevendo à máquina um poema enorme numa folha de fax e quando estava prestes a terminá-lo comecei a perceber os sintomas. Desta vez, eles foram ainda mais intensos. Praticamente não conseguia andar e passei mais de um mês sem sair de casa, a não ser para ir ao médico.

Os antiinflamatórios não surtiam o mesmo efeito e, ao lado de minha mãe, pulei de médico em médico à procura de uma solução. Uns deram de ombros como se eu não tivesse cura, outros insinuaram que eu estava muito deprimido e isso poderia agravar a doença, que tem um componente auto-imune (o sistema de defesa do meu organismo passa a atacar a mim mesmo, como se algumas de minhas células fossem um corpo estranho). Na verdade era a doença que estava me deixando deprimido, e não o contrário. Enfim, uma médica mais interessada me tratou com corticóides e finalmente eu melhorei, mas meu corpo nunca mais foi o mesmo.

Nos anos seguintes, a dor vinha e voltava, e eu passei por tratamentos que iam de fisioterapia e RPG a medicamentos de todo tipo. Minha mobilidade piorou sensivelmente, devido também a uma tendência irreversível ao sedentarismo, e a doença começou a formar pontes ósseas entre uma vértebra e outra. Somente há uns quatro anos minha reumatologista indicou um tratamento inovador, à base de um medicamento intravenoso que age diretamente nos sintomas da espondilite. Isso atenuou de maneira significativa as dores e me deu nova mobilidade. Mas quando o tratamento acaba, elas voltam, mesmo que com menos intensidade que antes.

Não sei por que estou relatando isso aqui. Talvez porque esteja lendo Outras Vidas que Não a Minha, um romance que, entre outros assuntos, aborda a rotina de pessoas com enfermidades muito mais graves do que essas prosaicas dores na coluna que me deixam entrevado. As histórias do livro de Emmanuel Carrère são todas reais, vividas por pessoas mais ou menos próximas a ele, embora tratadas de maneira romanceada. De certa forma, me identifiquei com o juiz Étienne, que sofre de um câncer na adolescência e depois na juventude, e acaba por amputar uma perna.

Não tenho propensão à hipocondria, e sempre que possível evito imergir nesse terrível universo de perdas e superações com que nos deparamos quando eventualmente precisamos circular por hospitais. Mas o fato é que uma doença – nossa ou de alguém que gostamos – nos lança em um território cinzento, opaco e asséptico, no qual é muito pequena a distância entre sucumbir e sobreviver. Há muitos fatores envolvidos nessa guerra interior, e temos pouquíssimo poder de decisão sobre a maioria deles.

Acredito que tiramos algum tipo de lição quando conseguimos escapar mais ou menos incólumes de uma temporada no inferno dos hospitais. O juiz do livro de Carrère, por exemplo, se tornou um profissional íntegro, que livra da falência pessoas às voltas com dívidas gigantescas. Não sei que tipo de pessoa eu me tornaria caso conseguisse me safar de tamanha provação, e espero nunca saber. Mas certamente não seria o mesmo, com os mesmos valores, preconceitos e idiossincrasias. O sofrimento não costuma aliviar: ele é como um espelho distorcido no qual nos miramos e enxergamos um estranho. Sendo que esse estranho representa quem fomos antes da tormenta, e quem nunca mais voltaremos a ser.  

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Em vão



Dois textos publicados hoje na Folha de S.Paulo se complementam à perfeição, exibindo sem cortes as vísceras do país no qual vivemos. O primeiro é a coluna da comentarista política Eliane Cantanhêde, que aborda a disparidade entre a percepção que se tem do Brasil na Europa e Ásia, altamente positiva, e a realidade que nós, brasileiros, vivemos por aqui. O segundo texto relata o bárbaro linchamento de um motorista de ônibus que, após sofrer um mal súbito e perder os sentidos, bateu em alguns carros e atropelou um rapaz na noite de anteontem, no Jardim Planalto, zona leste de São Paulo.

Em seu artigo, Eliane conclui, após listar alguns dados sobre a violência no país: “Falta, portanto, muita coisa para o Brasil ser toda essa cocada preta: educação, saúde, produtividade, inovação, combate à corrupção, distribuição de renda. E, enquanto os brasileiros não pararem de se matar à toa, é melhor deixar o oba-oba para a mídia estrangeira e pensar o estágio e as fraquezas do país com um mínimo de racionalidade”. Ela está coberta de razão, e não vejo qualquer pendor partidário na sua análise (acho mesmo que se tivéssemos um outro partido no poder a realidade seria a mesma).

O crescimento inequívoco do Brasil, sem dúvida positivo e necessário, não vem acompanhado de um avanço significativo na nossa cidadania. É mais ou menos o que acontece nas outras nações emergentes, China, Índia e Rússia, que não conseguem estancar a pobreza extrema nem anomalias como o trabalho semi-escravo, máfias incrustadas em diversos setores da economia e castas rígidas que inviabilizam a mobilidade social. Porém, mais do que a corrupção endêmica, entraves burocráticos insolúveis e saúde e educação públicas à beira da falência, nossa enfermidade social mais grave é outra: a propensão atávica à violência. O Brasil é um país minado pela barbárie.

E é aí que entra em cena o segundo texto da Folha, que desvela o que somos de verdade, para além dos clichês do povo cordial e do país tropical abençoado por Deus: arrastado para fora do ônibus por cerca de 40 pessoas, que estavam em um baile funk próximo ao local do acidente, o motorista Edmilson dos Reis Alves, de 60 anos, teve o crânio esmagado por extintores de incêndio. O ônibus que dirigia foi alvejado por pedras enormes, que por pouco não atingiram os passageiros. A reportagem de André Caramante e Fernanda Barbosa revela que Edmilson era um profissional exemplar, que não bebia e tinha acabado de deixar a esposa que viajava com ele perto da casa dos dois, a apenas dez minutos do local do acidente. A polícia ainda vai investigar se ele morreu do mal súbito ou das pancadas.

Não interessa. Um linchamento como esse na maior cidade do Brasil – episódio corriqueiro, como os que lemos todos os dias nos jornais – expõe a fratura moral de uma sociedade em declínio. Uma sociedade fortemente armada, brutalizada e sem escrúpulos, que da classe A à classe Z fabrica cidadãos dotados de um senso de justiça enviesado e incapazes de coexistir com regras básicas de convívio. É nesse habitat inóspito que eu, você e pessoas como Edmilson vivemos e tentamos não morrer de morte matada. No caso dele, em vão.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O mesmo amor duas vezes



Outro dia, conversando com um grande amigo numa noite de domingo, em um barzinho de frente para o mar, ele me falou da impossibilidade de reviver um amor perdido e reencontrado. Havia desalento e alguma resignação em seu rosto, e ao ouvi-lo remoer as cinzas do passado e degustar o sabor amargo do presente, eu me lembrei de Scott Fitzgerald. Ou melhor: dos amores impossíveis dos contos de Scott Fitzgerald. Scott é sob qualquer aspecto um de meus escritores favoritos, e nem sei se gosto mais dos seus contos ou de seus romances. Ele canta a dissipação das grandes paixões, o hedonismo da era do jazz substituído pela melancolia da crise de 29, o desencanto de uma geração que teve – e perdeu – tudo.

No início do ano, eu retirei da estante o livro 24 Contos de Scott Fitzgerald, lançado há alguns anos pela Companhia das Letras com tradução de Ruy Castro (aqui tem uma resenha que escrevi à época do lançamento). Senti um prazer dolorido ao reler aquelas histórias de beleza cadente, fadadas inevitavelmente ao malogro, seja pelo poder destrutivo dos vícios (Scott legou o próprio alcoolismo à maioria dos seus personagens masculinos) ou pela incapacidade que temos de assumir um amor avassalador com toda a plenitude que ele exige.  

Há, em um dos contos, uma frase que talvez tenha provocado em mim a lembrança do livro enquanto conversava com meu amigo: “Há todas as espécies de amor neste mundo, exceto o mesmo amor duas vezes”. Para Scott, é inútil reviver aquilo que fomos um dia, até porque as pessoas mudam, as cidades mudam, os sentimentos mudam. Meu amigo deve ter plena consciência de que, no homem que ele é agora, há muito pouco do que ele foi há 20 anos. São, um e outro, estranhos que não se conectam nem se comunicam, separados por compartimentos estanques de memória e esquecimento.

O fato é que qualquer amor que resgatamos de um tempo até então enterrado e posteriormente exumado não é o mesmo amor de antes, embora também não seja um amor diferente. É como um morto-vivo, um zumbi de aparência ambígua, que nos sorri com uma face e nos amedronta com a outra. Cabe a nós escolher qual delas será revivida em nosso presente. E, se revivido, como ele pode conviver com aquilo que nós e o outro nos tornamos, incluindo aí casamentos, filhos, emprego, pressão social e certa letargia de ter que largar tudo isso para encarar uma aventura de êxito incerto.

Bem, em tempos de sexo casual e casamentos mais casuais ainda, talvez eu esteja me portando como um romântico tolo, falando de um sentimento em extinção. O mesmo sentimento que em outros tempos fez o jovem Werther do livro de Goethe abandonar a vida, inspirando na vida real muitos outros suicídios na Alemanha do século 18. Mas, naquela noite de domingo, eu percebi uma centelha, uma tempestade por trás da calmaria, como o silêncio que precede o ataque de um cachalote. Ali estava, à minha frente, uma manifestação inequívoca de amor em estado bruto. Desgastado pelo avanço do tempo, esmaecido por décadas de hibernação, mas nem por isso menos amor.  

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A melancolia do fim



Na semana passada, um asteróide passou muito perto da Terra, chegando a ficar mais perto de nós do que a Lua, a apenas 325 km de distância. Do tamanho de um porta-aviões, o asteróide teria feito um estrago danado se caísse por aqui: poderia abrir uma cratera de 6,4 km de diâmetro e 528 metros de profundidade. E se tivesse caído no oceano, teria provocado um tsunami com ondas de até 21 metros. Nada, porém, que acabasse com a vida no planeta. Mas convém lembrar que uma chuva de meteoros é a hipótese mais aceita pelos cientistas para o desaparecimento dos dinossauros – e o percurso dos dinossauros pela Terra foi muito mais extenso do que a nossa humilde aventura pelo planeta, ainda em andamento. Daí que não devemos ficar tão tranqüilos quanto a uma vida eterna por aqui.

Quando a natureza se manifesta – e ela tem se manifestado com incômoda freqüência nos últimos anos – vemos o quanto é cruel. Terremotos e tsunamis varrem cidades inteiras, levando sem nenhum tipo de compaixão seletiva homens, mulheres e crianças. Não existe piedade, apenas o acaso brutal e sem sentido. A natureza do universo não é muito diferente e poderia, quem sabe, nos presentear com a aproximação de um planeta gigantesco na órbita da Terra. É o que se vê em Melancolia, a parábola niilista de Lars Von Trier sobre o fim do mundo. Não o fim do mundo como o conhecemos, mas o fim do mundo mesmo: a Terra sendo engolida por um astro muito maior, levando a tiracolo tudo que somos nós: mamíferos, aves, insetos, flores e algas marinhas, mas também oceanos, cordilheiras e florestas.

Não sei se foi essa a intenção de Lars Von Trier, mas Melancolia faz também uma crítica à incapacidade que temos de compreender nossa própria insignificância. Na primeira parte, um casamento caríssimo celebra um amor inexistente, que não se consuma nem se justifica. Na segunda, já com o planeta gigante se aproximando inexoravelmente, o que se vê é um microcosmo da humanidade encerrado num casarão isolado, à espera da morte ou de uma improvável redenção. Em dado momento, Claire (uma das duas principais personagens femininas, ao lado de Justine) se lamenta: “Mas meu filho não vai ter onde crescer”. É uma afirmação puramente egocêntrica, que não dá a medida do que a espera. Não é apenas um lugar onde o filho poderia crescer que será eliminado, mas sim o próprio significado das palavras “filho”, “onde” e “crescer”.

A destruição da Terra representaria, portanto, um fim absoluto. Não o meu ou o seu fim, mas o fim de toda uma concepção de existência, que gerou romances, sinfonias, enciclopédias, cidades e sonhos, mas também genocídios, massacres e muitas outras variações da barbárie (afinal, como diria Justine, “a terra é má”). Mas ainda estou sendo por demais antropocêntrico na minha avaliação: a Terra, ao longo de sua história, gerou muito mais maravilhas do que apenas a humanidade, que habita o seu epílogo. E quanto ao que veio antes de nós? E a saga dos seres unicelulares se reproduzindo e se perpetuando em ambientes inóspitos? E as sequóias desafiando a eternidade com seus dois mil anos de vida? E os próprios dinossauros, com a força bruta que os tornava invencíveis, como às vezes nós, humanos, julgamos ser? Seria, de qualquer forma, um fim melancólico e até injusto. Bem ou mal, mesmo com todo o caos e toda a violência, nosso planeta representa uma centelha de inquietação. Um clarão de som e fúria, em meio à monotonia eterna e escura de um universo que se expande em direção ao nada. 

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Lugar acolhedor




Não lembro quem escreveu que nunca devemos voltar aos lugares onde fomos muito felizes. Correríamos o risco, dessa forma, de dissolver uma valorosa sensação de nostalgia, encerrada em algum canto do nosso imaginário, que tem como matérias-primas um vago sentimento de felicidade e imagens devidamente enevoadas pelo tempo. Acredito que deve existir algo semelhante em relação aos livros que lemos e amamos, e que guardamos na memória como pequenos diamantes de celulose. Eles seriam, portanto, muito mais do que um volume esquecido na estante. Talvez algo como um território acolhedor, que visitamos há muito tempo e que deixou em nós lembranças imperecíveis, como instantâneos de uma época bem-vivida.

Tudo isso me veio à mente hoje, após uma amiga comentar no Facebook que se sentia uma personagem de Cem Anos de Solidão, por conta das chuvas torrenciais que não abandonam Salvador (numa alusão aos anos de chuva ininterrupta que assolaram Macondo na obra de Gabriel García Márquez). Sim, Cem Anos de Solidão. Difícil encontrar outro romance que personifique melhor a imagem de um lugar acolhedor. Ele é muito mais do que um livro, assim como Macondo é mais do que uma cidade e José Arcádio, Ursula Iguarán, Remédios, Amaranta, Rebeca, Pilar Ternera e Aureliano Buendía (os tantos que habitam aquelas páginas) são mais do que personagens.

Lembro de ter lido o livro de Gabo pela primeira vez aos 15 anos, logo depois de abandonar com tristeza O Amor nos Tempos do Cólera, outra obra inesquecível do colombiano. Voltei a ele umas duas ou três vezes em um espaço relativamente curto de tempo. O certo é que há uns 20 anos não volto lá. A edição que tenho, muito simples e com as páginas quase amarronzadas pelo tempo e o manuseio, só é tocada quando preciso rearrumar minha estante para a inclusão de novos volumes. Um tesouro velho e esquecido, pelo qual pouquíssimas pessoas pagariam mais do que um ou dois reais. Mas nem por isso um tesouro menor. Não esqueço jamais o parágrafo inicial: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía se lembraria do dia em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Não deve ser exatamente desse jeito, mas é algo assim.

O fato é que hoje senti muita vontade de voltar a esse lugar onde fui muito feliz. Rever, agora com os olhos de homem maduro (ou nem tanto), toda aquela gente que eu adorava. Mas tenho receio de romper a tímida membrana de nostalgia que o envolve e me decepcionar com o reencontro. Perceber que os personagens envelheceram mal, tornaram-se imperfeitos – ou serão eles que enxergarão em mim um estranho, intruso em território explorado um dia por um outro leitor, muito parecido comigo, mas sem a mesma capacidade de vivenciar o delírio silencioso? Não sei. Talvez seja mesmo melhor deixá-los em paz, dormindo serenamente naquela cidade de papel amarronzado, imprensados entre outros livros do homem que os criou.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

"Indignados"




Nos últimos dias, o assunto mais citado na imprensa e nas redes sociais foi o câncer de Lula. Talvez nem pela doença em si, mas sim pelos comentários irados, preconceituosos e consequentemente estapafúrdios que proliferaram como um tumor maligno por vários territórios da tal aldeia global a que chamam de internet. Um dos territórios mais afetados foi a coluna de Gilberto Dimenstein na Folha de S.Paulo. Tanto que ele resolveu escrever um novo texto, dias depois do primeiro, para se manifestar: "Senti um misto de vergonha e enjoo ao receber centenas de comentários de leitores para a minha coluna sobre o câncer de Lula. Fossem apenas algumas dezenas, não me daria o trabalho de comentar. O fato é que foi uma enxurrada de ataques desrespeitosos, desumanos, raivosos, mostrando prazer com a tragédia de um ser humano. Pode sinalizar algo mais profundo."

O mais grave nessa doença virtual - mais até do que os ataques a Lula e ao que ele representa - é a capacidade que uma parcela significativa da população possui de escolher sempre os alvos mais disparatados para a sua indignação. São milhares de pessoas gastando seu tempo para vociferar virtualmente contra um ex-presidente, assim como vociferam (invariavelmente em letras maiúsculas e invariavelmente em português trôpego) contra um participante de reality show, uma prova anulada do Enem ou um juiz que prejudicou seu time. O ódio se materializa em ofensas estúpidas a jornalistas, que agora possuem um canal direto com seus "leitores".

O que mais me intriga nisso tudo é: por que esse ódio indignado nunca se lança com a mesma virulência contra assuntos muito mais graves? Estou me referindo a um fato que considero gravíssimo, e que pelo jeito não sensibilizou as manadas de indignados virtuais: Marcelo Freixo, deputado estadual do Rio de Janeiro pelo PSOL, está deixando o país após sofrer sérias ameaças de grupos de extermínio. Para quem não sabe (eu não sabia), Freixo presidiu a CPI das Milícias na Assembléia Legislativa do Rio, que indiciou mais de 200 policiais e políticos ligados diretamente ao esquema de extorsão, assassinatos e tudo aquilo que eu e mais 12 milhões de pessoas vimos em Tropa de Elite 2. Não por acaso, Freixo foi consultor do filme de José Padilha. Sua partida para lugar incerto é fruto de algo dolorosamente banal: ele não confia em quem tem a obrigação de protegê-lo. Daí ter aceitado um convite da Anistia Internacional para passar um tempo na Europa com a família. Marcelo não é bobo. Sabe o que acontece com quem se levanta contra o poderio das milícias no Rio.

A juíza Patrícia Acioli, que pôs um montão de gente barra pesada na cadeia, foi assassinada há apenas dois meses quando chegava em casa. Patricia não tinha proteção, carro blindado ou qualquer obstáculo à ação dos executores que, agora se sabe, são policiais militares: o tenente Daniel dos Santos Benitez Lopes e os cabos Sérgio Costa Junior e Jefferson de Araújo Miranda. Sim, policiais militares. Algo tão corriqueiro que sequer nos damos conta do quanto é absurdo e inadmissível. Marcelo Freixo e Patrícia Acioli iniciaram uma luta contra um inimigo praticamente invencível. Afinal, policiais foram criados para nos proteger, e sabem como a engrenagem funciona - e quando não deve funcionar. Aliados a políticos e a apresentadores de programas sensacionalistas na tevê, eles se tornam onipresentes, onipotentes e oniscientes.

Com tudo isso posto, onde entra a tal indignação dos brasileiros? É tão inflamada a torcida para que o carcinoma na laringe do ex-presidente ganhe a dimensão de metástase que não há saliva suficiente para ser derramada num hipotético protesto contra os superpoderes de uma bandidagem sem freios. Estulta, arrogante e truculenta, uma horda numericamente expressiva de brasileiros se engaja em causas equivocadas, derramando pelos becos do mundo virtual sua concepção de vida tosca, sua aversão à vida em sociedade, sua sordidez bairrista e demófoba. Estamos nos apequenando como sociedade e como nação, batendo recordes de mortes no trânsito e assistindo com certa conivência as cidades se brutalizarem. Enquanto isso, quem pode fazer a diferença precisa escolher entre o cemitério e o aeroporto, rumo ao exílio. Ou às vezes nem isso, como provam os 21 disparos que fizeram com que a juíza Patrícia só pudesse optar pela primeira alternativa.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Alumbramento perdido



Sem que me desse conta, a poesia foi aos poucos se afastando de mim. Não foi uma escolha deliberada, e sim um afastamento natural, como ocorre com nossos amigos de juventude. Deixamos de nos encontrar, compartilhamos poucas afinidades e, com o passar dos anos, percebemos que nada mais justifica uma reaproximação. Uma pena, porque na maior parte dos meus anos de formação, poesia e prosa conviveram lado a lado, como variações de um mesmo alumbramento. É fato que sempre preferi os romancistas aos poetas, mas grande parte da minha produção juvenil foi construída com versos. Versos livres, sem preocupação formal, muitas vezes se derramando por páginas e mais páginas, livres de qualquer busca por concisão ou aprimoramento estético. Apenas frases caudalosas, que deixavam entrever as entranhas do jovem que fui, tão afeito a silêncios, tão impregnado de uma dor da qual desconhecia a origem.

Desse conjunto de frases caudalosas saíram três livros: A Canção Nômade, Dias Estranhos, Noites Solitárias e Olhos na Estrada Aberta. Nenhum deles publicado, nenhum deles conhecido para além do meu círculo de amizades, que tratava aqueles poemas como animais raros que obviamente eles não eram. E, aos poucos, os livros deixaram de ser uma necessidade para se tornarem apenas uma expressão do passado. Nos anos seguintes, ainda escrevi alguns versos, que permanecem guardados em caixas abarrotadas de inutilidades. O último poema que escrevi, quando minha filha nasceu, pode ser considerado meu canto de cisne.

Também deixei de ler versos. Raramente compro livros de poemas – o último foi Em Alguma Parte Alguma, de Ferreira Gullar, que não me encantou como seus trabalhos anteriores. A última descoberta que realmente mexeu comigo foi a poesia de Manoel de Barros, quando ainda morava em São Paulo, lá se vão quase 15 anos. Mas tenho o costume de reler coisas antigas para perceber o efeito que elas têm sobre mim hoje, muitos anos depois de tê-las lido pela primeira vez. Alguns versos provocam em mim um instante de luminosidade, outros me entediam.

Guardo muitos deles na mente: “Sua voz quando ela canta me lembra um pássaro. Mas não um pássaro cantando. Lembra um pássaro voando” (Gullar). “Eu faço versos como quem chora, de desalento, de desencanto” (Bandeira). “Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura” (Ginsberg). “Numa noite fria, nessa terra crua, cada qual leva a morte que é sua. Cada homem certamente amou a vida, coberto por palmos de terra batida” (Brecht). “Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios” (Quintana). “Que fazer, com o inferno no peito?” (Maiakovski). E muitos, muitos outros versos que me habitam como espectros de outras eras numa casa mal-assombrada.

Não me dou por vencido. De vez em quando, pego um volume de poesias na estante e o folheio. Não consigo entender Pound, mas me encanto com alguns versos avulsos de Eliot, Dylan Thomas, Rimbaud. Pessoa me fascina de um modo particular. Mas a verdade é que nada parece me fazer ser fisgado de volta. Outro dia, depois de muito tempo, reencontrei uma antiga namorada. Ela me chamou de Paulinho Poeta e perguntou se eu ainda escrevia versos. Sorri intimamente, e percebi que falávamos de um tempo que ruiu, atropelado pela cinza das horas.

O que aconteceu? Será que minha mente, exaurida por tanta brutalidade e insensatez e sempre às voltas com preocupações e compromissos cotidianos, não se permite um pouco de lirismo? Será que perdi a conexão com uma forma de literatura que parece extirpada diretamente do que temos de mais íntimo e obscuro? É possível. Ou talvez todo aquele desassossego que havia em mim tenha enfim repousado. Hoje, livre daquelas rajadas de angústia que me faziam viver em constante estado de turbulência, já me permito não escrever mais poesia. E ler alguns versos alheios quase como um gostoso passatempo, não como uma necessidade.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A reboque



Hoje eu me deparei com um texto que me deixou comovido. Foi escrito em janeiro deste ano por Marcelo Rubens Paiva e fala sobre o desaparecimento e a morte do seu pai, ocorridos há 40 anos, em janeiro de 1971. Engenheiro e deputado cassado, Rubens Paiva foi preso em casa, por agentes da Aeronáutica, quando se preparava para ir à praia com os filhos numa manhã de feriado. Brutalmente torturado nas dependências do DOI-Codi, ele acabou morrendo por conta dos ferimentos. Não se sabe o paradeiro do seu corpo. “Dia 20 de janeiro é o dia em que a família decretou a data de sua morte. Não temos um jazigo, mas temos uma data artificial”, escreveu Marcelo. 

Rubens Paiva era casado e pai de cinco filhos. Tinha, obviamente, envolvimento com pessoas que atuavam em grupos de combate à ditadura. Mas não estava na linha de frente, nem era o que na terminologia da época se poderia chamar de um “traidor da pátria”. Ao olhar as fotos que acompanham o texto, notei algo de curiosamente familiar. Não sei se porque ele tinha, ao morrer, a mesma idade que eu, 41 anos. Bem, compartilhei o link (postado anteriormente por uma amiga) no Facebook e foi meu irmão mais novo quem matou a charada, após ler o texto e ver as fotos: “O que aconteceu com Rubens Paiva poderia ter acontecido com a nossa família. Você percebeu como até as fotos lembram as da gente quando crianças?”.

Explico: na época do golpe militar, meus pais abrigaram em casa um tio nosso que estava diretamente ligado ao chamado “movimento subversivo”. A polícia estava à caça dele, que acabou conseguindo fugir e se exilar na Itália, se não me engano. Foram dias de tensão e medo, segundo relatos de minha mãe, então grávida do meu outro irmão (eu e meu irmão mais novo sequer éramos nascidos). Só que, para a sorte de todos nós, o ano era 1964, e não 1971, um período muito mais sombrio e particularmente violento da ditadura. Nós nos salvamos. Os Paiva, não.

Voltando às fotos, o fato é que elas, com sua cor desbotada e seus personagens em roupas e penteados hoje fora de moda, simbolizam algo crucial daquele período: a forma com que cidadãos comuns eram levados a reboque pela grande história, aquela que narra os acontecimentos de uma nação, e não de um indivíduo. Paiva, sua família e seus amigos eram gente como a gente, envolvidos em maior ou menor grau naquela sujeirada toda. Daí a semelhança daqueles retratos com os de nossa família e com os de muitas outras famílias que tentavam ganhar a vida naqueles nebulosos anos 70. Uma época de polarizações, de confrontos ideológicos acirrados, de heroísmo e insubordinação, mas também de traição e covardia.

Nem vou entrar nessa questão, mas me parece claro que precisamos repensar o julgamento dos responsáveis pelos mortos e desaparecidos na ditadura, nos moldes do que foi e está sendo feito na Argentina. Uma prova disso está na entrevista do Cabo Anselmo no Roda Viva da última segunda-feira, na qual ele justifica a execução da própria namorada, a paraguaia Soledad Viedma, por ela pertencer a um grupo de luta armada. Guerra é guerra, afinal. Mas, e daí? Eles viviam juntos e ela estava grávida dele. Agente duplo, Anselmo delatou a companheira e seu grupo, pertencentes à VPR, que acabaram massacrados de forma particularmente cruel, até mesmo para os padrões do aparelho de repressão brasileiro. Soledad foi encontrada morta dentro de um barril, com o feto arrancado dela lá no fundo. Eu me pergunto: existe motivo para tal brutalidade? O fato de ela ser uma guerrilheira é suficiente?

Lembro agora do filme Pra Frente, Brasil, de Roberto Farias. Nele, um homem comum é seqüestrado por engano pelas forças da repressão, para em seguida ser torturado e morto, enquanto o Brasil se deliciava com a conquista da seleção brasileira no México. Guardo bem clara uma cena: o personagem de Reginaldo Faria correndo por um campo aberto, tentando fugir dos seus algozes, e logo em seguida sendo alcançado por um veículo do exército. Não deixa de ser uma metáfora interessante: a história alcançando o indivíduo, reduzindo a pó o seu livre-arbítrio e o arrastando violentamente para o esquecimento.

sábado, 15 de outubro de 2011

Frankensteins




Numa das cenas cruciais de Deuses e Monstros, o ex-cineasta de filmes de terror James Whale, vivido por Ian McKellen, aponta para a própria testa e diz: "Meus monstros estão aqui". Whale está em uma festa de casamento, na qual reencontra os atores de suas antigas produções, estrelas de clássicos como A Noiva de Frankenstein e O Homem Invisível. Mas os monstros que habitam sua cabeça são muito mais assustadores. Após um ataque cardíaco, as lembranças represadas durante toda a vida adulta romperam os diques construídos por sua mente para se proteger do passado. E é como se ele nadasse em um lago formado por destroços de reminiscências, tentando inutilmente chegar à margem.

O filme de Bill Condon capta James Whale em seus estertores. Velho, doente e quase esquecido por Hollywood, ele é assombrado pela imagem de sua primeira paixão, um fuzileiro com quem dividiu as trincheiras durante a Primeira Guerra, e pela ausência de carinho do pai repressor, incapaz de aceitar a sua homossexualidade. Tudo isso se manifesta em delírios que trazem à tona seus velhos filmes e no desejo que sente pelo jardineiro bronco e ingênuo vivido por Brendan Fraser, que se torna seu último amigo e seu último refúgio contra o enlouquecimento.

Deuses e Monstros é, portanto, muito mais do que a biografia de um cineasta à beira do fim. Ele fala do poder muitas vezes incapacitante da memória. Das imagens, sons e sentimentos que carregamos desde que nascemos e que vão nos povoando como um paraíso bíblico recebendo seus primeiros habitantes. Pode-se dizer que chegamos ao mundo com um HD limpo, sem qualquer arquivo ou software a corromper nossa ignorância absoluta. Mas nem sei se isso é verdade. Da concepção ao nascimento, são nove meses em que nos transformamos em algo muito maior e mais complexo do que um personagem de terror B. E é claro que nesse período recebemos pelo cordão umbilical não apenas nutrientes, mas possíveis sentimentos de tristeza, depressão e angústia passados por nossas mães. Quando somos tirados da escuridão e do conforto morno do líquido amniótico, já carregamos alguma nódoa.

Em vinte, trinta, sessenta anos, essas nódoas se acumulam, dando forma aos monstros a que se refere Whale. Somos remorso, perda, brutalidade, mesquinhez, frustração e melancolia, mas também somos compaixão, altivez, bondade, amor e - sempre que possível - felicidade. Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Ou, como no poema de um grande amigo chamado Rodrigo Brasil: "Somos Frankensteins formados por tristezas esfarrapadas, por noites de tempestade. Seguimos remendando retalhos de esperança, de mendigos que nos tornamos".

O fato é que nossos monstros não são necessariamente maus, mas nem por isso são menos assustadores. E chega uma época na vida em que, não importa que se assemelhem a um ursinho de pelúcia, eles vão nos apavorar como um Frankenstein na porta do nosso quarto. Porque até as boas lembranças se reduzem a isso: lembranças. Os dias de alegria que ficaram para trás, a família aos poucos desfeita, o verão em que nos tornamos adultos, o grande amor da nossa vida agonizando numa foto esmaecida. A vida, infelizmente, não nos oferece um retorno para que possamos, como o Benjamin Button do conto de Fitzgerald, pegar a estrada de volta. Reviver o que foi bom, consertar o que foi ruim e depois se esvair na bruma.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Sobre homens e rinocerontes



Leio na Folha de S.Paulo que os rinocerontes estão sendo dizimados na África. Animais portentosos, eles são vítimas de caçadores que chegam até as savanas com artefato pesado: helicópteros, fuzis AK-47 e óculos de visão noturna. Ou seja, o que existe de mais inovador em tecnologia a serviço do que existe de mais primitivo na civilização. Este ano, foram mortos 279 rinocerontes só na África do Sul, todos eles com chifres amputados. É que na China (e também no Vietnã) o pó obtido com a moagem dos chifres é considerado milagroso: a ele são atribuídos desde o fim da impotência sexual até a cura do câncer, entre outros benefícios.

Não há, obviamente, qualquer comprovação científica. Nem haverá, já que o chifre é feito de queratina, o mesmo material de que são feitas as nossas unhas. Mas, em vez de arrancá-las das próprias mãos e pés e depois transformá-las em pó, os novos-ricos do império em expansão chinês preferem pagar até US$ 60 mil pelo quilo do pó de chifre de rinoceronte. Já não bastavam o espermacete extirpado das baleias e o marfim arrancado dos elefantes: agora se mata outro gigante para obter a poeira afrodisíaca do seu chifre. Chineses são particularmente afeitos à crueldade com animais. É só lembrar o que fazem com os ursos, torturados diariamente para a extração de bile, usada também para fins medicinais sem comprovação científica.

Mas seria injusto culpar apenas os chineses pela estupidez coletiva que se espalha para muito além das fronteiras asiáticas. Matar rinocerontes é apenas mais uma das aberrações rotineiras cometidas pelo ser humano. O que me faz pensar no quanto a evolução da nossa espécie é capenga, torta, como se assentada em areia movediça. Pelo visto, a seleção natural não legou necessariamente ao presente os seres mais inteligentes e sensíveis, e sim os mais brutalizados e capazes de transferir essa brutalidade às gerações seguintes. Basta uma rápida zapeada pelos canais de notícia ou uma folheada sem compromisso pelo jornal do dia para nos darmos conta da nossa própria bestialidade. E, por outro lado, da nossa própria genialidade.

Somos capazes de descobrir um planeta semelhante à Terra nos confins do universo, o HD85512 b, mas não conseguimos tirar o ronco crônico da barriga do nosso cardápio, mesmo sabendo que a produção global de alimentos é mais do que suficiente para prover três refeições diárias a todos os habitantes da Terra. Podemos nos comunicar via Skype ou MSN com um amigo na Nova Zelândia ou no Nepal, mas somos incapazes de nos comunicar com o cara que nos dá uma fechada no trânsito ali na esquina, pronto para uma briga, um tiro ou ao menos algumas palavrinhas pouco amistosas. Construímos prédios com mais de cem andares, mas também sequestramos aviões para jogá-los - e a nós mesmos - contra esses mesmos prédios. Sei que o uso da primeira pessoa do plural pode soar estranho nas frases acima, mas recorro a ela porque tenho consciência de que pertenço à mesma espécie de Amadeus Mozart, mas também à de Adolf Hitler.

A verdade é que, neste início de século cheio de som e fúria, idade contemporânea e idade da pedra prosseguem convivendo lado a lado, irmanadas e indissociáveis como gêmeas siamesas. Civilização e barbárie, sabedoria e abjeção. A mão que afaga é a mesma que apedreja, como escreveu Augusto dos Anjos. Não há diferença significativa entre matar um homem, um rinoceronte ou um percevejo. Mata-se sem objetivos claros, quase como um espasmo, um cacoete. É a nossa sina, a nossa maldição. Estamos ainda muito no início, por mais que as Ferraris, os Ipads e as tomografias computadorizadas digam que não. Habitamos um paradoxo feito de água, terra e ar, mas também de aço, concreto e fibras óticas. É nesse paradoxo que vivemos e nos abismamos, assistindo a neandertais modernos prosseguirem em sua busca por mais chifres, dólares e gigantes abatidos.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Sentado à beira do caminho



Quando comecei a viajar sozinho, sem meus pais, a classe média ainda não tinha chegado ao paraíso das viagens aéreas. Conheci o Brasil em longas jornadas noite adentro, muitas vezes enfrentando 18, 24, 32 horas em ônibus que pareciam fincar raízes na estrada. Não me arrependo. Muitas imagens se apagaram da memória, mas ainda guardo na retina cenas pungentes: velhos surgindo do nada e indo para lugar algum no meio da noite, neblinas que encobriam pastos e lagoas pouco antes da aurora, casinhas coloridas e já descoloridas pelo tempo e a miséria. Conheço o Brasil, sua vegetação monótona a se estender por quilômetros e estados intermináveis, sua pobreza quase intransponível, sua aridez acolhedora. Suportei o desconforto de ônibus que mesmo no início da viagem já revelavam o mau-cheiro do banheiro e do suor acumulado nas poltronas por viagens e passageiros sem fim. Suportei o tédio das noites insones, das manhãs de calor quase insuportável, dos finais de tarde arrebatadores.

Em janeiro de 1988, pouco antes de completar 18 anos, fiz minha primeira viagem desgarrado de meus pais. Mas ainda era uma viagem adolescente: fui com os pais de um amigo, e com mais outros dois amigos, para Brasília e em seguida para uma pequena cidade chamada Ipameri, ao sul de Goiás. Ficamos numa fazenda linda, com tucanos, pés de goiaba e pessoas cuja bondade era quase uma característica física, como a pele torrada de sol e os traços ligeiramente oblíquos. Foi o primeiro clarão, a chama primordial, e percebi ali que amaria conhecer novas paragens, deixar enfim o ninho e enveredar pelo país. Repito: ainda não era possível, para um adolescente de classe média, ir à Europa ou mesmo à Argentina. Afinal, estávamos na década perdida.

Aos 20 anos, em outubro de 1990, deixei tardiamente a puberdade e me lancei na idade adulta. Depois de 50 horas, completei o percurso que separa Salvador do Rio Grande do Sul. Estava, enfim, longe da zona de conforto e da companhia dos amigos no ônibus. Sozinho como um espantalho na lavoura. Chegava ao sul, então o ponto extremo, a minha Terra do Fogo particular. Essa viagem até hoje representa uma cisão na minha existência, uma fratura no meu percurso linear. Não conheci apenas um estado. Conheci novas formas de convivência, novos sotaques e um novo olhar sobre o que queria para mim mesmo (embora ainda hoje não faça idéia do que queira para mim mesmo). Ao lado de uma grande amiga, percorri o estado de carona, subindo em carros e caminhões desconhecidos, deixando o frio me tomar e me levar ao acaso, sem rumo, guiado por intuições de última hora. No sul conheci amigos genuínos, mulheres inebriantes e a exata percepção de que a vida era muito mais do que minha provinciana rotina soteropolitana julgava crer. Ali eu me achei, e me perdi.

Continuei viajando nos anos seguintes, enveredando Brasil adentro de ônibus, das serras mineiras ao agreste cearense. Mas algo em mim se perdeu no sul, e não foi minha inocência. Talvez a percepção de que o mundo não me reservaria mais noites como aquelas, pessoas como aquelas, descobertas como aquelas. Hoje, duas décadas depois, percorro distâncias bem maiores em bem menos tempo, me enchendo de Lexotan para evitar o pânico da vulnerabilidade absoluta. Recorro ao conforto dos bons hotéis, dos carros alugados e dos bons restaurantes. E tento resgatar quem fui: aos 20 anos, cantando Belchior na beira de uma estrada da Serra Gaúcha: "Até parece que foi ontem minha mocidade". O polegar levantado, o olhar impetuoso e uma sensação inequívoca de que a vida inteira se descortinava à minha frente.

sábado, 17 de setembro de 2011

Nossa grande geração perdida



Outro dia, Adriano Silva escreveu no blog Manual de Ingenuidades um texto muito interessante sobre o legado – ou a ausência de – que a nossa geração (os milhões de brasileiros nascidos entre 1965 e 1975) vai deixar para o futuro. Nele, o jornalista faz uma comparação entre os quarentões de hoje e os da geração anterior à nossa, e sua constatação é impiedosa: “Nós não estamos deixando marca alguma na música, nas artes, na cultura. Somos uma geração pequena. Ínfima em termos de manifestações que captam, marcam e traduzem o espírito de um tempo e que fazem a história. E que não está deixando nenhuma herança, nenhuma contribuição anímica relevante para a próxima geração. Não implantamos nenhum paradigma para ser superado por eles. Nós não fizemos nenhuma revolução, não trouxemos nenhuma voz nova ao microfone. Somos uma geração conservadora, de manutenção – e não uma geração renovadora, de ruptura”.

Lembrei do texto de Adriano ao assistir, na noite de anteontem, ao documentário Uma Noite em 67, que rememora o 3o Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, ocorrido em 21 de outubro daquele ano. O filme de Renato Terra e Ricardo Calil mescla imagens de arquivo com depoimentos atuais dos principais protagonistas do festival. E através dele vemos uma geração vitoriosa. Recém-saídos da adolescência, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Roberto Carlos e Edu Lobo começavam ali a consolidar seu nome na história da cultura nacional. Havia muito talento reunido, mas havia também a percepção de que eles não seriam apenas um hiato entre uma geração e outra. Seriam A geração.

Todos os artistas que citei acima são hoje sessentões. Há pelo menos 40 anos têm uma carreira solidificada e fazem parte, merecidamente, do cânone da música popular brasileira. Eles chegaram lá. E, como Adriano Silva em seu texto, eu também pergunto: e nós, onde chegamos? Há, é claro, artistas respeitados no país com idade entre 35 e 45 anos. Gente boa, talentosa e batalhadora na música, na literatura, no cinema, no teatro. Mas que, quando reunida, não dá voz a uma geração. Nosso principal legado é a invisibilidade. Somos culturalmente desimportantes.

Eu mesmo acreditava, aos 20 anos, que possuía um talento particular. Via em mim um pequeno gênio incompreendido, capaz de escrever poemas cheios de som e fúria e romances que mudariam o curso das letras mundiais. Mas basta uma rápida folheada na papelada amarelada que escrevi nesse período para perceber que os poemas não foram escritos por algum Rimbaud tropical nascido nos estertores do século 20. Nem os arremedos de romances cheios de diálogos pueris deixam entrever um novo Hemingway ou Fitzgerald. Não fui o único. Os amigos que fiz ao longo de décadas, muitos dos quais me pareciam talentosíssimos, também não vingaram. Hoje sobrevivem em empregos para os quais não parecem ter sido talhados e toda aquela centelha dá mostras de ter se apagado.

Mas por que não conseguimos? O que fez com que fracassássemos como arautos do fim de século? Acho que faltou, sobretudo, talento. Mas houve também alguma imaturidade, falta de senso de oportunidade e uma opressora dificuldade de lidar com as obrigações da vida moderna. No início dos anos 1990, não havia mais espaço para a porralouquice nem para o desbunde, muito menos para o engajamento nas questões sociais que foram marca registrada da geração anterior. Estou chutando, claro, e discordâncias serão bem-vindas. Apenas tateio as nossas vulnerabilidades para tentar entender o que deu errado. Mas, por outro lado, será que não estou sendo rigoroso demais, pegando pesado demais? Afinal, se ainda não fizemos não significa que não faremos. Como diria Renato Russo, é preciso acreditar na nossa grande geração perdida. Tenho 41 anos. O que me impede de começar agora, do zero, uma improvável carreira literária ou quem sabe até me lançar como um roqueiro temporão (não, a coluna não deixaria, muito menos o senso do ridículo). O negócio, enfim, é partir para cima, como um atacante veterano em busca do milésimo gol. Quem sabe a gente não consegue?

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Gangorra


Hoje acordei repentinamente às seis da manhã e um fragmento de reflexão me atingiu como uma pedrada na nuca: vou morrer. Não hoje ou amanhã, mas um dia. E a certeza desse dia, combinada com a mente ainda enevoada pelas horas de sono, me causou um calafrio, como se ao lado da cama em que me aconchegava houvesse um abismo. E que a qualquer momento, quando cochilasse, eu pudesse escorregar pelo lençol. Não é a primeira vez que recebo essa pedrada, tampouco será a última. Desde os 14, 15 anos ela me visita de vez em quando, principalmente nas horas mais adiantadas da madrugada, quando a insônia vence o cansaço. Não devo ser o único.

Imagino que Copérnico deve ter causado uma baita depressão na humanidade quando, em torno de 1500, lançou sua teoria do heliocentrismo, praticamente provando que a Terra não era o centro do universo, e sim apenas mais um planeta que orbita uma estrela pequena e desimportante a que chamamos sol. Essa descoberta jogava por terra (pelo menos para alguns) toda uma concepção de supremacia humana, de que éramos a espécie escolhida, destinada a reinar sobre os demais seres vivos e povoar os demais planetas. É a mesma coisa quando tomamos consciência de que morreremos. O mundo não gira em torno de nós, como imaginávamos quando éramos crianças, em nosso narcisismo pueril. E nossa vida é só um hiato entre duas formas muito semelhantes de silêncio e escuridão. Não foi fácil, e ainda não é, perceber isso, mas uma certa resignação e a plena constatação de nossa desimportância diante do universo facilitam as coisas.

Muito antes de mim, Elias Canetti, brilhante escritor búlgaro, já manifestava sua revolta contra a certeza da extinção: "Enquanto existir a morte, nenhuma beleza será bela e nenhuma bondade, boa". Pesado, não? Discordo dele. Como Caetano, eu digo que a vida é gostosa. Canetti achava que a morte deveria ser extinta, e dizia lutar para que isso acontecesse, infelizmente sem sucesso. Claro que faltava a ele - e a mim também - a crença em um início para além do fim. Um universo paralelo pós-último suspiro, onde pudésssemos nos refestelar em uma atmosfera celestial e rever os que foram antes, além de poder dar uma espiada nos que ficaram. Mas será que mesmo o mais fanático dos beatos não se confrontou em alguma noite sem lua com o horror da própria finitude? Parafraseando Shakespeare e Sartre, há menos mistérios entre o ser e o nada do que supõe a nossa vã filosofia.

Hoje à tarde, assisti ao jogo do Flamengo contra o Vasco. Em vários momentos, a televisão mostrou closes do técnico cruzmaltino, Ricardo Gomes, tenso, ansioso para que seu time vencesse, pensando em alguma estratégia para neutralizar as jogadas ofensivas do rival. Agora, menos de 12 horas depois, Ricardo Gomes está numa UTI de hospital, recém-saído de uma cirurgia de três horas que estancou a hemorragia cerebral causada por um AVC que ele sofreu ainda no campo. Seu estado é considerado gravíssimo. É a gangorra da vida se manifestando da maneira mais nítida, diante de todos nós. E, enquanto isso, cá estou eu, nesta madrugada insone, pensando num mundo sem mim - em noites como esta, silêncios como este, mas sem a minha consciência para assombrá-los.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Afagos e safanões



É comum, quase um clichê, elogiar um romance dizendo que seus personagens parecem de carne de osso. Estariam, nesse sentido, tão próximos de nós quanto a vizinha do décimo andar, o colega do setor financeiro ou quem sabe até um velho amigo dos tempos de faculdade. Tendemos a nos identificar mais com esses livros que mostram gente como a gente, com os mesmos defeitos e virtudes que encontramos em nós mesmos ou nas pessoas que amamos ou com quem convivemos. Suas páginas emulam o efeito reconfortante de um abraço, que nos ampara e protege da nossa própria vulnerabilidade.

Os personagens criados por Jonathan Franzen em Liberdade são assim: lembram invariavelmente alguém com quem cruzamos em algum momento da vida, antes de cada um seguir o seu caminho. Mas não é apenas por isso, por parecerem “de carne de osso”, que eles tornam o livro tão prazeroso. Mais do que um painel incisivo da América dos últimos 30 anos, Liberdade é um livro sobre as escolhas que fazemos ao longo da vida adulta. Estão lá nossas decisões equivocadas ou certeiras a cada bifurcação, nossos temores mais íntimos, nossas fugazes conquistas cotidianas. E, acima de tudo, a inevitável constatação de que poderíamos ter nos empenhado mais. 

Liberdade mostra como o destino que almejamos aos 20 anos vai sendo aos poucos demolido para dar lugar a um viaduto que leva a tudo aquilo que chamam lar: a necessidade de trabalhar, pagar contas, criar os filhos e envelhecer. Um processo mais do que pessoal, quase uma necessidade natural da espécie, e os que não se adaptam a ele correm o risco da inadequação. Ao longo de mais de 600 páginas e cerca de 30 anos, Walter, Patty e Richard - e mais alguns personagens que orbitam em torno deles - viverão as angústias da juventude e o desalento da maturidade (ou seria o contrário: o desalento da juventude e as angústias da maturidade?), enquanto recebem da existência afagos e safanões. Franzen também subverte o conceito de liberdade, caminhando no sentido inverso ao de Sartre em A Idade da Razão. Para o autor americano, ela é uma espécie de mal que desejamos profundamente, mas que quando o alcançamos nos arremessa contra o vazio. O encanto da liberdade, portanto, se converte em solidão e amargura, porque afinal não somos lobos da estepe.  

Escritor talentoso, Franzen nos envolve com sua prosa, embora o livro tenha altos e baixos e alguns personagens não sejam tão palpáveis. É um texto sedutor, recheado com muita erudição e doses fartas de conhecimento político, econômico e de cultura pop. Em algumas noites, me vi desbravando suas páginas até a alta madrugada, incapaz de abandonar o desencanto crônico de Patty ou a mordacidade de Richard, que deixava entrever sua infelicidade abissal. Nada tão diferente do que o autor já havia feito em As Correções, outra imersão no universo familiar norte-americano contemporâneo. São romances que atestam o nascimento de um autor vigoroso (no conteúdo, não tanto na forma, como a maioria dos escritores que admiro). Deve melhorar com o tempo, mas já é dono de uma sensibilidade comovente para dissecar nossa penosa aventura pela Terra.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O horror, o horror



Numa cena clássica de Apocalypse Now, o tenente-coronel Bill Kilgore, vivido por Robert Duvall, aspira o ar e diz: “Adoro o cheiro do Napalm pela manhã. Nada mais no mundo cheira dessa forma”. Kilgore está há muito tempo no front do Vietnã, e seu pelotão certamente já lançou toneladas de Napalm sobre as aldeias vietnamitas. As bombas passam ao redor dele sem que esboce sequer uma reação instintiva de se proteger delas. Kilgore está impregnado de guerra, daí não se dar conta de que o cheiro que adora é o mesmo cheiro que mata indiscriminadamente homens, mulheres e crianças. “O horror, o horror”, como diz Kurtz (Marlon Brando) a Willard (Martin Sheen) já no terço final do filme.

Emocionalmente arruinado pela brutalidade de um conflito absurdo e desnecessário, Kurtz constrói um império que promove atrocidades em escala industrial no coração das trevas vietnamitas. Mas a chave para o seu enlouquecimento está em um trecho da sua conversa com Willard. É quando ele relembra da pilha de braços empilhados de criancinhas vietnamitas que tinham acabado de ser vacinadas contra a poliomielite pelas tropas norte-americanas. O próprio exército vietnamita tratou de decepar os braços, para dar uma idéia do quanto estavam determinados. A interpretação de Brando é particularmente arrebatadora nesta cena, e ele prossegue: “Eu chorei. Berrei como uma avó. Eu queria arrancar meus dentes. Não sabia o que queria fazer. E eu quero me lembrar disso. Não quero me esquecer.”

Apocalypse Now é provavelmente o filme definitivo sobre a guerra. Em seus 153 minutos está condensado todo o horror que o homem é capaz de infligir a outros homens. Mas o filme de Coppola diz muito também sobre a alma humana mesmo em tempos de suposta paz. Será que nós também não sentimos o cheiro de Napalm pela manhã? Afinal, estamos tão impregnados de violência que ela já se integrou à nossa rotina. Mas parece que não queremos lembrar disso. Queremos esquecer o genocídio silencioso de garotos pobres e pretos, soldados rasos em um front indefinido. Ou os chamados cidadãos de bem que agridem e matam por qualquer discussãozinha boba no trânsito. Ou os assaltantes que puxam o gatilho como se abrissem uma lata de cerveja numa festa. Na sociedade brasileira (e mundial, provavelmente), a indiferença talvez seja o Napalm do século 21. Ela nos embriaga e entorpece, mas só até o momento em que a barbárie nos atinge em cheio, e nos faz berrar como uma avó.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

A doce dama do lixão



Pouca gente sabe quem foi Estamira Gomes de Souza, que morreu ontem no Rio de Janeiro. Eu, por exemplo, só a conheço por ter assistido ao comovente documentário que leva seu nome, dirigido por Marcos Prado em 2005. Quem viu o filme não esquece dela, nem a sensação de desconforto quase físico que a sua tragédia pessoal provoca em nós. Estamira tinha 72 anos. Presto minha homenagem a ela reproduzindo aqui uma crítica que escrevi na época do lançamento do filme.

 *

Vida e pensamento de uma habitante do submundo
são retratados com ternura em ‘Estamira’

Além dos arranha-céus da zona sul carioca, dos conjuntos habitacionais da zona norte, das favelas e casinhas de tijolo aparente da Baixada Fluminense, existe um lugar onde os deserdados se encontram. São milhares deles, homens, mulheres e crianças vindos do nada e indo para lugar nenhum, sobrevivendo das toneladas de restos humanos despejadas diariamente no aterro sanitário de Jardim Gramacho. Entre eles, no ponto mais baixo da escória, vive Estamira. Mulher de pouco mais de 60 anos, mãe, avó, portadora de distúrbios mentais e dona de um olhar singular e surpreendentemente arguto sobre o absurdo da existência, sobretudo da de gente como ela.
O sofrimento, as lembranças e a tortuosa vida de Estamira estariam irremediavelmente fadados ao oblívio caso ela não tivesse topado, no ano 2000, com o cineasta Marcos Prado, que há tempos desenvolvia um trabalho fotográfico no lixão do Jardim Gramacho. Ficaram amigos, e o diretor começou a ser seduzido pelas frases enigmáticas, recheadas de reflexões filosóficas, daquela senhora de olhos esbugalhados, que dava início a um tratamento psiquiátrico no Centro de Assistência Psicossocial José Miller, em Nova Iguaçu. Resolveu imortalizá-la num filme que leva seu nome.

Prado dá plena voz a sua biografada, registrando seus delírios e seus momentos de intensa lucidez, enquanto conduz o espectador para dentro do universo em que ela sobrevive. Lá, entre montanhas de detritos, urubus e lagos imundos que borbulham pela ação dos dejetos orgânicos, Estamira encontrou a afeição e o amparo que lhe faltaram durante quase toda a vida.

Filha de uma mulher com problemas mentais e neta de um indivíduo que a violentou quando criança e a levou para um bordel, ela casou, teve um menino, descasou e encontrou outro homem, um italiano mulherengo, com quem teve uma menina. Já mais velha, foi duas vezes estuprada no local onde vivia e ainda deu à luz outra filha, que acabou sendo criada por uma família. É doloroso perceber, em fotos antigas, que Estamira chegou a ter alguma estabilidade. Andava bem-vestida e criava os filhos – que também dão seus depoimentos – com dignidade. Com uma linha de pensamento muitas vezes enviesada e aparentemente desconexa, ela rememora essa existência que acabou por levá-la ao aterro de Jardim Gramacho.

Há frases lapidares, como “não existe mais inocente no mundo. Tem esperto ao contrário, mas inocente, não” ou “aqui só tem escravo disfarçado de liberto. A Isabel libertou todo mundo mas não deu comida, não deu trabalho. Ficou isso aí”. Estamira nutre uma revolta profunda contra Deus, a ponto de se descontrolar e expulsar de casa seu filho, quando ele tenta lhe passar ensinamentos aprendidos na Igreja Adventista. É quando a senhora dócil e de olhar distante dá lugar a uma mulher violenta e fora de si, que despeja afirmações como “Quem seguiu direitinho tudo que ele (Deus) e a quadrilha dele mandou largou de morrer? Largou de passar fome? Largou da miséria?”.

Marcos Prado foca o mundo de Estamira com câmera ágil, trilha envolvente e fotografia granulada (oscilando entre o colorido e o preto-e-branco), mostrando com fidelidade a vida no aterro, seus personagens e a dignidade (ou a completa ausência dela) que viceja por trás da imundície. Poderia ter sido mais sucinto, reduzindo em pelo menos 20 minutos a narrativa, para deixá-la mais ágil. Mas é um defeito menor em meio a tantas virtudes. Ao mostrar a brutalidade cotidiana da vida no lixão, Estamira transporta para nossa realidade o mundo dos invisíveis. E o que vemos nos sufoca, mas também nos enternece.

* Publicado originalmente no Correio da Bahia.

Odisséia americana



Pouco antes de morrer, Johnny Cash gravou uma série de canções de outros compositores. Há coisas lindas, como a releitura de Hurt, do Nine Inch Nails, que ganhou com ele um tom abissal, quase apocalíptico. E também One (U2), Bridge Over Troubled Water (Simon & Garfunkel) e In My Life (Beatles). Mas, entre todas essas gravações outonais, há uma música do próprio Cash que me comove mais do que qualquer outra: Give my Love to Rose. Ela pertence à linhagem de canções que deram forma à faceta de “storyteller” do cantor, da qual fazem parte pérolas como The Reverend Mr. Black, The Ballad of Ira Hayes e The Last Gunfighter Ballad.

Cash conta a história de um homem que encontra um sujeito agonizando ao lado de uma estrada de ferro. Ele vira seu corpo para ajudá-lo e escutar o que tem a dizer. E o que esse homem tão perto da morte diz é de cortar o coração: após passar 10 anos numa prisão em São Francisco, pagando por algum crime que havia cometido, o desconhecido queria apenas voltar para a Louisiana para rever a esposa, Rose, e conhecer seu filho. Pede ao seu interlocutor que leve até Rose a sacola onde está todo o seu dinheiro, para que ela possa comprar umas roupas, e que diga ao garoto que seu pai está muito orgulhoso dele. E, num lamento desesperado, pede para que leve todo o seu amor para Rose.

Há toda uma concepção de país por trás dessa pequena história de amor e solidariedade. Na sua simplicidade, Cash deu forma a uma odisséia impossível de retorno à Louisiana natal. Está ali toda a vastidão da América, a solidão inabalável dos seus grandes espaços abertos, a porta que abre e fecha em Rastros de Ódio, de John Ford, trazendo desconhecidos e com eles boas ou más notícias. Estão ali o crime e o castigo, e também a confiança no próximo, traduzida no conceito anglo-saxão de “trust”, que permeia as relações entre as pessoas no país. É essa percepção de confiança que permite que um homem à beira da morte transfira a um desconhecido todo o seu dinheiro e a missão de levá-lo à mulher que ama.

Estamos, claro, falando de um mundo ideal, onde a bondade e a honestidade seriam tão rotineiras no cotidiano da América profunda quanto a torta de maçã esfriando na janela ou os ovos com bacon no café da manhã. Mas o fato é que essa relação de respeito e confiança no próximo é parte integrante do imaginário norte-americano. Ela está presente, por exemplo, em A História Real, filme de David Lynch, nas pessoas que ajudam o velho viajante Alvin a continuar sua jornada a bordo de um cortador de grama para reencontrar o irmão e acertar as contas com o próprio passado. Está presente também na forma destemida com que Sal Paradise e Dean Moriarty cruzavam a América de carona, carro, ônibus ou trem em On The Road, de Jack Kerouac, sempre louvando a generosidade pura das pessoas simples e confiando que haveria alguma alma boa para ajudá-los caso houvesse algum problema.

Johnny Cash registra magistralmente essa confiança em sua canção singela, e imprime tamanha sinceridade à sua voz que ninguém duvida de que tenha realmente viajado até a Louisiana para levar a mensagem do homem à beira da morte para a sua família. É impossível não sentir uma pontada de tristeza quando ele canta: “Give my Love to Rose, please won’t you, mister?”, num lamento desesperado de quem não pode mais prosseguir na odisséia rumo à felicidade perdida. Ao ouvi-lo, nós também sentimos na pele a necessidade premente de levar adiante o último desejo de um desconhecido, pelo simples fato de ele acreditar na nossa honestidade.

*

Give my Love to Rose

I found him by the railroad track this morning
I could see that he was nearly dead
I knelt down beside him and I listened
Just to hear the words the dying fellow said

He said they let me out of prison down in Frisco
For ten long years I've paid for what I've done
I was trying to get back to Louisiana
To see my Rose and get to know my son

Give my love to Rose please won't you mister
Take her all my money, tell her to buy some pretty clothes
Tell my boy his daddy's so proud of him
And don't forget to give my love to Rose

Tell them I said thanks for waiting for me
Tell my boy to help his mom at home
Tell my Rose to try to find another
For it ain't right that she should live alone

Mister here's a bag with all my money
It won't last them long the way it goes
God bless you for finding me this morning
And don't forget to give my love to Rose

Give my love to Rose please won't you mister
Take her all my money, tell her to buy some pretty clothes
Tell my boy his daddy's so proud of him
And don't forget to give my love to Rose

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Cinzas do paraíso



A morte de Amy Winehouse não aconteceu ontem: há dois ou três anos ela agonizava à vista de todos, com a conivência obsessiva dos tablóides e sites de internet sempre à cata de fotos escandalosas, e era motivo de chacota entre as platéias que se deslocavam até seus shows para vê-la cambalear e esquecer as letras. Enquanto sucumbia, Winehouse alimentava fartamente o universo de frivolidades e mitos forjados que leva a alcunha de cultura pop. O mesmo universo que agora vai incluí-la no patético panteão dos ídolos mortos aos 27 anos, e diluí-la em pequenas porções até que se esgote o seu parco legado. Seu fim, tão óbvio, me chocou e me entristeceu, até porque vislumbrava algo de vibrante e genuíno em sua música. Mas estes dias nos reservaram uma morte ainda mais trágica, e é dela que gostaria de falar.

Estou me referindo à morte da inocência, ou do que restava dela. Com o assassinato de uma centena de pessoas na Noruega, caiu por terra a última fronteira ainda imune à barbárie. Ela enfim chegou a um país onde as políticas de bem-estar social implantadas no pós-guerra deram forma a uma das civilizações mais avançadas do mundo. Ao lado de seus vizinhos escandinavos, a Noruega é um exemplo sem igual de como a social democracia é o melhor (o único, talvez) caminho a ser seguido para se criar uma sociedade homogênea, consolidada a partir de investimentos maciços em políticas públicas e na presença do estado onde ele é estritamente necessário. Enfim, a Noruega é o mais próximo que o homem chegou do paraíso, mas agora se vê tomada por cidadãos perplexos e incapazes de entender as motivações para tamanho sofrimento.

É o século 21 se mostrando por inteiro. Não, desta vez não há nenhum radical de origem árabe e pertencente a alguma organização islâmica para ser responsabilizado. A doença, neste caso, vem de dentro, como um câncer. A princípio, lembra muito aquele atentado de Oklahoma, cometido por Timothy McVeigh. Pelo pouco que li - e quero ler cada vez menos sobre tragédias como essas - o sujeito era um desses fanáticos de extrema direita com idéias difusas e absolutamente tolas, que para azar de todos nós (sim, essa tragédia também nos atinge) estava armado até a raiz dos cabelos. Panacas como esse surgem de vez em quando, como anomalias numa ninhada sadia, e costumam fazer um estrago danado. Mas é sintomático que o novo século esteja sendo cada vez mais povoado por eles.

Há algo de errado em nós, na forma como vemos e agimos no mundo, e nesse sentido vale ler O Mal Ronda a Terra, do historiador Tony Judt, que explica de forma lúcida como deixamos de exportar Noruegas em série para nos tornarmos reféns do individualismo e do culto ao consumo em nações abarrotadas de miseráveis. Uma coisa, é claro, não tem nada a ver com a outra. Mas ambas fazem parte de um mesmo cenário desolador, no qual o que mais se destaca é a banalização (e o recrudescimento) da violência. Seja na forma de armas de destruição em massa, bombardeios "cirúrgicos" ou mesmo de um .38 de numeração raspada que um sujeito numa moto usa para atirar em nós e nos roubar o celular. É a grande marcha da história e as pequenas tragédias individuais se unindo para tragar o máximo de vidas possível. E nós, sobreviventes vulneráveis e desnorteados, seja no Brasil, na Líbia ou na Noruega, apenas lamentamos o azar alheio e louvamos a nossa sorte.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O preço da nostalgia



Ao longo de décadas de leitura conheci alguns personagens com os quais me identifiquei profundamente. Havia muito de mim em Mathieu Delarue, o anti-herói existencialista que clama intimamente por liberdade em A Idade da Razão, de Sartre. Ou em Sal Paradise, o aventureiro que cruzava as estradas da América em busca da própria essência no clássico beat On the Road, de Jack Kerouac. Ou ainda em Jake Barnes, o beberrão atormentado e hedonista de O Sol Também se Levanta, meu Hemingway preferido. Mais recentemente, ao ler Conversa na Catedral, de Vargas Llosa (sobre o qual comentei aqui recentemente), vi a mim mesmo na pele de Santiago Zavala, um dos personagens mais palpáveis com que me deparei nessas andanças imaginárias por milhas e milhas de palavras e entrelinhas. Todos eles fazem parte do que sou, assim como alguns personagens dos contos e romances de Fitzgerald ou tipos momentaneamente esquecidos por minha mente cansada.

Mas nenhum deles se parece tanto comigo – seja pela forma de pensar, pelos ídolos literários ou pela propensão à nostalgia – quanto um sujeito que encontrei no cinema domingo passado: Gil Pender, o frustrado escritor e roteirista de Meia-Noite em Paris, novo filme de Woody Allen. Um filme delicioso, diga-se de passagem, que marca o retorno do cineasta ao auge (por menos pretensiosa que seja esta comédia de acento fabular). Sim, eu me vi espelhado nos cabelos loiros e no nariz torto de Owen Wilson, que empresta sua estampa ligeiramente desajeitada e melancólica a um indivíduo fascinante. É claro que um personagem de cinema dificilmente alcançará a profundidade de um congênere literário, ainda mais em se tratando de um personagem alegórico, que habita uma trama amparada em clichês bem definidos – e magistralmente subvertidos. Gil está longe de ostentar, por exemplo, a complexidade de um Raskolnikov.

O fato, porém, é que meus pequenos sonhos românticos estão lá no filme, verbalizados por ele: morar em Paris, trabalhar com literatura e, principalmente, ser capaz de viver em um período histórico que me fascina acima de todos os outros. Gil cultiva a nostalgia de um tempo não vivido – no caso, a década de 1920, quando a capital francesa foi invadida por hordas de escritores e artistas, em grande parte americanos expatriados, imortalizados com a alcunha de Geração Perdida. Tanto eu quanto ele consideramos esse hiato que separa a humanidade de duas guerras absurdamente brutais o ápice da civilização. Tanto eu quanto ele lamentamos a nossa inadequação ao mundo atual e alimentamos o desejo de ter nascido e vivido em uma outra era (já falei sobre isso aqui no blog).

Meia-Noite em Paris trata desses assuntos com leveza, doçura e humor, mas sua conclusão é de certa forma amarga. Ao voltar ao passado e reencontrar Hemingway, Scott e Zelda Fitzgerald, Salvador Dalí, Cole Porter, Luis Buñuel e Gertrude Stein, entre tantos outros ícones dos anos loucos, Gil se depara com o fato de que, para quem vivia aquele presente, a Era de Ouro já havia passado. Ao voltar ainda mais no tempo e encontrar Toulouse-Lautrec, Edgar Degas e Paul Gauguin no final do século 19, eles se queixam que a verdadeira Belle Époque foi a Renascença. E assim por diante – ou melhor, para trás. Não existe, portanto, um lugar ideal no espaço-tempo, um útero imaginário para onde podemos voltar sempre que o sentimento de inadequação nos toma de assalto. Passado, presente e futuro são apenas monótonas variações sobre um mesmo tema.

Quanto à nostalgia, até que ponto ela é salutar e até que ponto revela um aspecto negativo da nossa personalidade? Ansiar pelo passado não seria uma forma de negar o futuro, ou mesmo o presente? E, ao negar o presente, não corremos o risco de nos abrigarmos numa bolha, refratária a uma existência mais tranqüila e menos desconfortável? Provavelmente sim. Embrenhar-se na nostalgia é como fazer pesca submarina no oceano sem o auxílio de tubos de oxigênio. Imergimos até certo ponto, mas é preciso guardar um pouco de ar para o retorno à superfície, caso contrário permaneceremos num limbo. Ao final, Gil irá descobrir que o presente tem lá seus atrativos – desde, é claro, que tome decisões cruciais, que o aproximem do homem que quer ser. Isso vale para ele, para mim e para qualquer um de nós.