terça-feira, 13 de dezembro de 2016

That’s all, folks!



Este blog está morto. Viveu uma agonia lenta nos últimos dois anos, sofrendo de inanição criativa. No primeiro trimestre deste ano ainda tentei reanimá-lo, em vão. Agora, oito anos e nove dias depois do nascimento, ele chega ao último suspiro. Dito isso, não queria abandoná-lo sem uma despedida digna. 

Afinal, foi neste lado do paraíso que eu pude desaguar minhas angústias, desvelar meus sentimentos, dissecar minhas perdas e conquistas. Um lugar acolhedor, onde fiz novas amizades e fortaleci antigas, escrevendo textos dos quais me orgulho e que dizem um pouco - talvez muito - de quem sou. É um legado valoroso, que poderá encontrar outras paragens em breve.

Ao ler as memórias do jornalista inglês Christopher Hitchens (Hitch-22), me deparei com a lista de perguntas relacionadas abaixo, conhecida como Questionário Proust, em homenagem ao autor de Em Busca do Tempo Perdido, que o respondeu duas vezes. As respostas de Hitchens são ótimas, e podem ser lidas neste link da revista Vanity Fair, que tinha como marca registrada aplicar o mesmo questionário aos seus entrevistados.  

Não tenho a estatura intelectual de Hitchens, muito menos a de Proust. Mas mesmo assim ouso encerrar em definitivo as atividades de Este Lado do Paraíso com o inventário de princípios abaixo. Uns um tanto prosaicos, outros um tanto bobos, e duas ou três coisas de algum valor. Vamos a eles:

P - O que você considera a mais profunda miséria?
A incapacidade do ser humano - eu incluído - de compreender o quanto a vida é efêmera e que deve aproveitá-la de maneira plena.

P - Onde você gostaria de viver?
A maior parte do ano em Paris. Um ou dois meses em Lisboa, uma ou duas semanas em Veneza e o verão em Salvador, para repor o estoque de dendê, brejeirice e malemolência.

P - Qual a sua ideia de felicidade terrena?
Uma conversa regada a bom vinho e boa comida ao lado de quem amo, inclusive quem está longe ou só na memória.

P - Diante de quais erros você se mostra mais indulgente?
Aqueles motivados por desespero.

P - Quais são seus heróis favoritos na ficção?
Na verdade estão mais para anti-heróis: Sal Paradise, Mathieu Delarue, Santiago Zavalita, Jake Barnes, Thomas Hudson, Florentino Ariza, Henry Chinaski.

P - Quais são seus personagens históricos favoritos?
Salvador Allende, Nelson Mandela, Rosa Parks, Chico Mendes, John Maynard Keynes, Anne Frank, Martin Luther King, Darcy Ribeiro, José Mujica, Dom Paulo Evaristo Arns e sua irmã, dona Zilda Arns. Provavelmente faltam alguns, vivos ou mortos.

P - Quais são suas heroínas na vida real?
Minha mãe. As mães pobres que perdem filhos para a violência policial ou o banditismo. Malala Yousafzai e as mulheres que vivem sob a opressão dos regimes radicais islâmicos. As avós da Plaza de Mayo. As putas do baixo meretrício. As vítimas de estupro e violência doméstica.   

P - Quais são suas heroínas na ficção?
A Maga, Úrsula Iguarán, Fermina Daza, Teresa e Sabina, Diadorim.  

P - Qual é o seu pintor favorito?
Dalí, Van Gogh, Da Vinci, Goya. Provavelmente faltam alguns.

P - E o seu músico favorito?
Miles, Coltrane, Monk, Dylan, Henri Salvador, Caetano, Renato Russo. Em outra ocasião, provavelmente faria uma lista diferente.

P - Qual a qualidade que você mais admira em um homem?
Altruísmo.

E numa mulher?
Altruísmo.

P - Sua virtude favorita?
Sensibilidade.

P - Suas virtudes que você menos aprecia?
Nenhuma. Não são muitas, na verdade.

P - Qual a sua realização de que você mais se orgulha?
Nínive.

P - Sua ocupação favorita?
Ler, viajar, ouvir música, beber vinho, ver o Flamengo jogar e conversar com quem gosto, não necessariamente nessa ordem.

P - Que outra pessoa você gostaria de ter sido?
Hemingway. Mas faria o possível para não estourar os miolos.

P - Qual a sua característica mais marcante?
Insegurança. Timidez. Ansiedade.

P - O que você mais valoriza em seus amigos?
A amizade.

P - Qual o seu principal defeito?
O comodismo.

P - Qual é o pior dos infortúnios?
Morrer com a sensação de que poderia ter feito mais.

P - O que você gostaria de ser?
Um músico, um surfista, um falcão.

P - Qual a sua cor favorita?
Todas, cada uma a seu modo.

P - Qual a sua flor favorita?
Cravo.

P - Qual o seu pássaro favorito?
Os que voam mais alto e mais longe.

P - Que palavra ou expressão você mais utiliza?
Vamos ver.

P - Quais são seus poetas favoritos?
Ferreira Gullar, Bertolt Brecht, Fernando Pessoa. Na verdade encontro mais poesia na prosa que nos versos.

P - Quais são seus nomes favoritos?
Nínive, Marcela, Heloísa, Álamo. Paulo também é um bom nome.

P - O que você mais detesta?
Ignorância e violência dividem o pódio.

P - Que personalidades históricas você mais despreza?
Hitler. Stálin. Pinochet. Nessa ordem.

P - Que personalidades contemporâneas você mais despreza?
Vladimir Putin, Bashar Al-Assad, o bando de líderes imbecis do Estado Islâmico, o bando de políticos de extrema direita da Europa, o bando de pastores vigaristas das igrejas evangélicas e, provavelmente pelos próximos quatro anos, Donald Trump. 

P - Que eventos na história militar você mais admira?
A história militar me envergonha, me revolta e me entedia.

P - Que dom natural você gostaria de possuir?
Voar.

P - Como você gostaria de morrer?
Não gostaria.

P - O que você mais detesta na sua aparência?
O cabelo.

P - Qual o seu lema?
A vida vale a pena.


quinta-feira, 31 de março de 2016

Aventura sensorial


Voltar a Hemingway é como voltar a um lugar onde fomos muito felizes. Conhecemos cada palmo do terreno: os diálogos soam familiares, aconchegantes, a narrativa provoca um prazer mais sensorial do que intelectual. É como se estivéssemos ali ao lado dos personagens, acompanhando seus conflitos silenciosos, seus ditos por não ditos, seus imensos icebergs submersos. 
Do Outro do Lado do Rio, Entre as Árvores não é um dos melhores livros do Papa, e sofreu muitas críticas quando foi lançado. Azar dos críticos. Reler as suas páginas é ainda mais prazeroso do que desbravá-las pela primeira vez. Saboreando os pratos suculentos, as bebidas que confortam os corações machucados, as paisagens arrebatadoras, hoje mais próximas de nós por conta da maturidade. 
Creio que devemos nos conceder esse tipo de prazer de vez em quando: voltar a certos livros como se volta a certas cidades.

"Meu pai e minha mãe viveram sob uma guerra. Meu avô e minha avó também. E também meu bisavô e minha bisavó. E assim por diante. Mas eu não. Sempre se diz que o esporte europeu por excelência é o futebol, mas isso é mentira. O esporte europeu por excelência é a guerra. Durante mil anos, na Europa, não fizemos outra coisa além de matar uns aos outros. E aí chego eu, e sou o primeiro, a primeira geração de europeus que não vive sob guerra. Não consigo acreditar. Há quem diga que tudo isso já passou, que uma guerra é agora impossível de acontecer entre nós, mas eu não acredito nisso... Veja este lugar aqui... eram pessoas como você e eu, morrendo aos milhares, feito cães, da forma mais asquerosa e mais indigna possível."

Javier Cercas, em O Impostor.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

A bruma do passado



Em Um Romance Russo, o escritor francês Emmanuel Carrére empreende uma busca obstinada pela memória perdida do avô. Uma procura que mexe não apenas com seus sentimentos, mas também com os de sua mãe, que prefere o silêncio mas deixa escapar um sofrido pesar ao falar do pai, desaparecido aos 45 anos depois de atuar como colaboracionista dos nazistas durante a invasão alemã na França na Segunda Guerra Mundial. Um traidor, portanto, mas muito mais complexo do que isso. Esse é só um dos pilares dramáticos que sustentam a narrativa autobiográfica de Carrére, mas foi provavelmente o que mais me comoveu. Ele vai atrás de correspondências e depoimentos que ajudam a elucidar em parte quem foi o avô, de origem russa e mente confusa, que se auto-depreciava nas cartas e viveu e criou os filhos de maneira instável, sempre com problemas financeiros e uma depressão crônica.

Essa busca de Carrére (que já havia me impressionado muito com o romance Outras Vidas que Não a Minha) me fez em muitos momentos planar além da leitura e pensar em meus próprios avôs e avós, e também nos meus bisavôs e bisavós. Pessoas das quais conheço pouco mais do que o nome. A vida de meu avô paterno, Jaime, por exemplo, é um mistério, embora o tenha conhecido relativamente bem até sua morte, aos 94 anos, quando eu tinha uns 20. Era um velhinho tímido, de sotaque lusitano, corpo frágil, olhos acinzentados e um bigode amarelado pelos charutos ordinários que fumava. Trabalhou durante 50 anos como bibliotecário no Gabinete Português de Leitura, o que dá um indício de onde vem a minha predileção pelos livros e o prazer de guardá-los e organizá-los. Sua casa, no bairro da Lapinha, continha uma extensa memorabília de pouco valor material, mas de inestimável valor afetivo. Incluindo uma cabeça de leão enorme, preta, feita de metal, que adoraria ter hoje em meu gabinete. Mas sua história verdadeira, quem ele foi, o que pensava, como eram as ruas da cidade que então percorria, isso eu nunca consegui depreender. Sei por alto que seus pais vieram da região portuguesa de Trás-os-Montes, daí o forte sotaque. 

Por incrível que pareça, sei muito mais sobre meu avô materno, Francisco, embora este tenha morrido prematuramente aos 45 anos, oito antes de eu nascer. Isso se deve a minha mãe - de temperamento mais expansivo que meu pai -, que tratou de passar para nós com um carinho imenso e muitos detalhes quem foi seu pai. Daí eu saber de quem herdei o prazer de olhar a lua na penumbra ou a necessidade de dedicar um amor inesgotável a minha filha. Só que, da mesma forma, esbarro na falta de mais fatos, o que também se dá em relação a minhas avós, Helena e Ondina. De onde vem o Sales que carrego? Seria francês (normando, para ser mais preciso), como indicam alguns sites de pesquisa de sobrenomes que andei pesquisando? Como não tenho linhagem nobre nem sangue azul, minha árvore genealógica é apenas um arbusto de galhos secos.

Esses questionamentos me levam a meus bisavós, paternos e maternos, e a partir daí a situação fica ainda mais nebulosa. São pouco mais do que borrões. Sei, novamente por minha mãe, que minha bisavó paterna Alzira era uma mulher refinada, que "tocava piano muito bem" e gostava de “uma bebida quente”. E que minha bisavó Chica era de "origem mais modesta". Do bisavô paterno Ludgero sei que escreveu um livro, A Família dos Simples, cujo exemplar tínhamos em casa até pouco tempo atrás - mais uma semelhança comigo. O outro bisavô paterno, Jacinto, assim como os maternos, também está envolto em bruma. De Floriano conservo a imagem, bigode largo e escuro, em um retrato na parede da casa da família de minha mãe no interior da Bahia. Do outro, Sizenando, nem isso. Resta a bisavó Odília, a única que conheci, e da qual guardo uma lembrança visual marcante: seus cabelos brancos longos, sua pele morena enrugada e sua casa, cujo quintal enorme e cheio de bananeiras dava para o mar da Cidade Baixa. E quanto aos tataravós, dos quais nem sei o nome?

Sei que essa ignorância em relação a nossos antepassados faz parte do curso natural do tempo. Mas acho injusto que saibamos tão pouco de pessoas que de certa forma moldaram quem somos. Os poucos exemplos acima demonstram isso, o quanto deles sobrevive em mim, no meu jeito introspectivo, nostálgico. A pergunta permanece: de onde eu vim? Quem eu sou? Sei que trago a Europa em minha alma, isso me é claro, mas que parte dela? Será que ainda existem vestígios por lá? Quem sabe um pequeno cartório numa cidadezinha de Trás-os-Montes, informando que em determinado dia, mês e ano um jovem português deixou o país para emigrar rumo ao Brasil. Ou na Normandia, no Alentejo, na Ilha da Madeira, sei lá. 

Fico imaginando como poderia começar uma busca nos moldes da empreendida por Carrére, as pessoas com quem poderia falar, os documentos e cartas ainda existentes, mas acho que perdi tempo. Muitos parentes que poderiam ter fornecido informações preciosas já foram embora, sendo o principal deles meu pai, que tão pouco nos contou de seus pais e avós, talvez porque a relação, ali, nunca tenha sido tão afetuosa quanto a de minha mãe com os seus. O que tiro de tudo isso, dessa busca que sei que vou acabar não empreendendo, é a tristeza de perceber que todos eles estão relegados ao oblívio. Como sombras num retrato antigo. Como eu, daqui a 200 anos.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Cicatrizes



À medida que envelhecemos, cicatrizes e outras marcas do tempo se colam ao nosso corpo. São restos de feridas profundas, tatuagens ou vestígios de antigas enfermidades que, aliados a rugas e cabelos brancos, dão forma a quem somos quando atingimos uma certa maturidade. Nosso rosto e principalmente nosso corpo mudam, deformando-se ou alcançando uma inesperada harmonia. De certa forma, somos como rochas desfiguradas pela erosão dos ventos e do sol, ou como rios assoreados pela falta de vegetação nas margens. Eu tenho cá minhas marcas do tempo: uma cicatriz quase imperceptível de uma queda de mobilete, que prendeu meu pé esquerdo ao pedal e ao motor fervendo; a marca de uma cirurgia nas costas para a retirada de um cisto no sacro-ilíaco; uma pequena deformação na pálpebra direita, causada por um terçol mal-curado; a coluna rígida que me tira a mobilidade, consequência mais evidente de uma doença reumática; e por fim um sulco entre as sobrancelhas fruto de uma herpes-zóster. Esses sinais - aliados aos cabelos grisalhos, às pequenas bolsas sob os olhos e aos quilos a mais - contam a minha história exterior.

Mas a nossa verdadeira história é aquela contada pelas cicatrizes que ficam voltadas para o lado de dentro. Se fosse possível fazer um exame de ressonância magnética ou tomografia computadorizada que mostrasse essas cicatrizes, saberíamos de verdade qual a matéria-prima de que somos feitos. Nosso cérebro, como o de qualquer pessoa que passou pelas intempéries que a vida impõe, é tomado em toda a sua extensão por feridas, na forma de frustrações, remorsos, arrependimentos. Algumas, provavelmente, estão lá desde que começamos a ser gente, ainda no útero. Outras cicatrizaram completamente, mas sua presença deixa claro que elas existem e fazem parte do que somos. E há aquelas que nos deixam em permanente alerta, como uma perda particularmente dolorosa, equivalente a marcas de dentes de tubarão numa perna dilacerada. Elas estão lá para nos dizer que é preciso ter cuidado, que não dá para se jogar com tudo. Enfim, que o mundo costuma aplicar peças traiçoeiras.

Tenho estado triste nos últimos dias. Porque pela primeira vez estou sentindo pontadas que me afetam em cheio, mesmo não me atingindo diretamente. Uma dor forte e persistente que minha filha vem sentindo nas costas, nos fazendo ir a médicos e realizar um sem-fim de exames, vem mexendo comigo como jamais imaginei. Eu sinto a dor dela em meu íntimo, pesando feito cruz nas minhas costas, me retalhando em postas e me dilacerando por dentro, como se arames farpados arranhassem meus órgãos internos. Sei que ela não tem nenhum problema grave, o que me tranquiliza em termos racionais, e sei que vai ficar boa logo. Mas emocionalmente estou abalado e cheio de feridas. É claro que momentos como esses são inerentes ao ato de viver. São essas situações-limite que nos ajudam a criar uma couraça e aguentar trancos futuros. Senão, seríamos apenas aquelas caras felizes das redes sociais, vidas sem matizes ou sombras, como nos folhetos de lançamentos imobiliários. A dor é necessária, eu sei. Mas hoje só quero uma coisa: que ela termine o mais breve possível.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Fronteiras



Houve um tempo em que não existiam fronteiras. Os homens vagavam por terrenos sem dono em busca de comida, água e abrigo. O mundo não pertencia a ninguém. Era um campo vasto e inóspito a ser desbravado e conquistado. Depois erigiram muralhas, criaram bandeiras, consolidaram idiomas e guerrearam (como ainda guerreiam) por territórios. No século 21, depois do tal fim da história apregoado por Francis Fukuyama, a guerra deveria soar anacrônica, uma enfermidade típica de tempos passados, como a peste negra ou a gripe espanhola. Mas, assim como o cólera ou a malária, ela insiste em se fazer presente. Para além das mortes de civis atingidos em suas casas, o que se vê é a fuga em desespero, a migração em massa através de desertos e oceanos, onde o caminho é também uma armadilha letal. 

A invasão de refugiados na Europa é provavelmente a maior tragédia coletiva que se abate sobre o continente (e sobre todo o mundo) desde a Segunda Guerra Mundial. Uma hecatombe silenciosa que nos enche de vergonha, tristeza e perplexidade. E quando eu vejo multidões espremidas em fronteiras, contidas por guardas, arames e fuzis, penso com saudade no tempo em que não havia fronteiras. Involuímos, como as bombas atômicas, as armas químicas e a indiferença dos atuais donos do mundo fazem crer? Ou essa é uma forma diferente de avançar rumo ao futuro, contando para isso com a solidariedade que se manifesta em parte da população europeia, disposta a ajudar famílias devastadas? Talvez sejam as duas coisas, convivendo em total desarmonia. Nesse sentido, um tipo torpe como a cinegrafista húngara que chuta pais com filhos no colo seria apenas uma deformidade, uma pedra no meio do caminho de um porvir mais justo.

Não é novidade que convivemos com diferentes eras em um mesmo planeta, muitas vezes delimitadas por (olha elas aí mais uma vez) fronteiras: a prosperidade de Israel em detrimento da miséria na Faixa de Gaza, a opulência dos Estados Unidos cirurgicamente cindida da violência extrema dos cartéis mexicanos, ou mesmo a faixa invisível que separa os casebres da Rocinha dos arranha-céus de São Conrado, no Rio de Janeiro. Esse recorte geopolítico superficial deixa claro que a concentração de renda e a desigualdade social são os principais entraves para o desenvolvimento perene e inclusivo, como defende o economista francês Thomas Piketty. Tudo é explicado, e não há como fugir disso, a partir daí: a trajetória errática das civilizações, a ascensão da barbárie personificada no Estado Islâmico e até mesmo o menino sírio Ayslan deitado de bruços na beira de uma praia.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Variações em torno de uma taça



Amo os vinhos com um ardor silencioso. Amo as cores, o sabor, os aromas que evocam tempos remotos, como a imagem de meu pai bebendo seus vinhos portugueses baratos em canecas simples, enquanto assistia à tevê. Amo meu ritual particular de escolhê-los, comprá-los, guardá-los e por fim bebê-los, de preferência ao lado das mulheres que amo ou de amigos que admiro.

Daí me entristecer com o esnobismo que rodeia esse universo, sobretudo nas altas rodas, nos meios abarrotados de gente com dinheiro de mais e sabedoria de menos; a falsa reverência com que os vendedores me tratam quando retiro uma garrafa mais cara da prateleira, mesmo que não vá levá-la (e quase sempre não levo); as bobagens que leio quando quero saber mais sobre um vinho.

Por mais pernóstica que possa soar essa afirmação, me aproximo dos franceses na forma como encaram o vinho, com sua simplicidade espartana. Filmes como Amor, de Michael Haneke, e Azul é a Cor Mais Quente, de Abdellatif Kechiche, mostram a relação dos franceses com o vinho. Uma relação de cumplicidade silenciosa, prosaica como beber um copo de água. O vinho é aquilo: um companheiro da refeição e de eventuais conversas que nascem desse momento.

Ouço Henri Salvador cantar Dans Mon Ile enquanto termino de beber um ótimo tinto do Douro, que acompanhou um delicioso ensopado de carne com macarrão. Prato que me fez lembrar de um boef bourguignon simples e gostoso que comi um dia no Quartier Latin. Não esqueço dessa tarde, do vinho simples que bebemos em um copo também simples, da sisudez do proprietário, um homem velho e calado, que nos serviu com frieza, mas de forma impecável, e no final me deu uma dica preciosa, me indicando como chegar à livraria Shakespeare & Co, que tanto havia procurado sem sucesso pelas ruelas do bairro.

Amo os vinhos com um ardor silencioso. De quem sabe da passagem do tempo, e de como ela age sobre nossos corpos frágeis e profundamente vulneráveis. Amo os vinhos porque eles alimentam minha alma, muitas vezes tão maltratada, outras tão exausta. E por saber que um dia a taça vai permanecer vazia, sem alguém para enchê-la. 

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Compositor de destinos




Em uma das cenas finais de Cinema Paradiso, que revi recentemente ao lado de minha filha, o personagem principal, Totó, retorna à cidadezinha natal na Sicília depois de 30 anos. Está lá para o enterro de um velho amigo, o projecionista Alfredo, que inoculou nele o amor pelo cinema. É um reencontro comovente com um passado no qual Totó foi muito feliz, mas que julgava sepultado. Após rever as filmagens antigas de um grande amor perdido, ele diz à mãe: “Sempre tive medo de voltar. Agora, após tantos anos, achei que estava mais forte, que tinha esquecido muita coisa. No entanto, está tudo diante de mim, como se eu tivesse ficado sempre aqui”. Enquanto minhas lágrimas escorriam, em meio aos beijos proibidos que se sucediam ao final da pequena obra-prima de Giuseppe Tornatore, me dei conta da capacidade que a memória tem de conservar a nossa essência, mesmo com a erosão causada pelas dores e intempéries de décadas etéreas e fugidias. 

Assistir novamente a Cinema Paradiso depois de tanto tempo fez o meu próprio passado emergir, como se visitasse a casa onde morei na infância ou viajasse num Fusca para a cidadezinha onde minha mãe nasceu. Lembrei de momentos bons com meus pais e irmãos, do início complicado da adolescência, das primeiras namoradas (onde estarão?) e dos amigos que até hoje estão firmes e fortes ao meu lado. Lembrei das minhas aspirações literárias, dos poemas insossos que considerava sublimes, dos escritores, músicos e cineastas que contribuíram para a minha formação. Enfim, fui invadido por essa massa espessa da qual somos feitos e que nos impulsiona, junto com nossos sonhos cada vez mais escassos, rumo ao epílogo. Vinte, trinta, quarenta anos são na verdade pouco mais do que horas, e de tempos em tempos, quando acionamos algum gatilho na memória, eles voltam a nos assombrar. 

É mais ou menos o que imagina o velho Eguchi em A Casa das Belas Adormecidas, de Yasunari Kawabata, que estou lendo agora: “Pensando melhor sobre o assunto, mesmo que se falasse de passado muito distante, talvez, no ser humano, memória e reminiscências não pudessem ser definidas como próximas ou distantes unicamente por ser sua data antiga ou recente. Pode acontecer que, mais do que o dia de ontem, os acontecimentos da infância, sessenta anos atrás, tenham ficado guardados na memória e fossem recordados de uma forma mais nítida e mais viva. Isso não acontece com mais frequência na velhice? Além disso, não haveria casos em que os acontecimentos da infância contribuiriam para formar o caráter e dar direcionamento à vida de uma pessoa?".

Outro dia, uma amiga escreveu sobre o sentimento de inadequação que teve ao assistir recentemente a um show da Blitz, banda que fez um sucesso avassalador no início dos anos 80, mas que hoje sobrevive do saudosismo que esse período ainda provoca em muita gente. Ela não se reconhecia no plateia ao redor, formada em sua maioria por pessoas com mais de 40 anos. E concluiu: “O tempo passa, mas você não passa junto com ele. O seu corpo já tem 45 anos, mas você tem certeza que ainda não passou dos 30. Não é nenhum tipo de síndrome, nem é nenhuma não-aceitação da idade. É só uma sensação ruim de não estar em ‘casa’. Deu vontade de sair correndo dali, entrar no Circo Relâmpago e abraçar minha gente”. Como ela, eu também estava lá no Circo Relâmpago. Um garoto de 14 anos, que andava tranquilo pelas ruas da Pituba e idolatrava aquela gente bronzeada mostrando seu valor nos palcos, como hoje minha filha idolatra Demi Lovato ou os rapazes de um tal One Direction. 

Mas no meu caso, ao contrário de minha amiga, o tempo passou e eu passei junto com ele. É impossível não sentir fisicamente, e sobretudo emocionalmente, a pressão do compositor de destinos, como bem definiu Caetano, sobre meus ombros, me vergando como a um velho mastro cansado de cruzar oceanos. Mas quero ainda cruzar outros mares antes de sair para fora do círculo, sem entender nada do que foi estar dentro dele. Em suma, valem as palavras de Cortázar em O Jogo da Amarelinha: “Vaidade de crer que compreendemos as obras do tempo: o tempo enterra seus mortos e guarda as chaves. Somente nos sonhos, na poesia, no jogo, aproximamo-nos às vezes do que fomos antes de ser isto que ninguém sabe se somos.”

quarta-feira, 30 de abril de 2014


“Na maturidade da vida, você espera um certo descanso, não é? Você acha que merece isso. Eu, pelo menos, achava. Mas aí você começa a entender que premiar a virtude não compete à vida. Também, quando você é jovem, acha que pode prever as prováveis dores e tristezas que a velhice poderá trazer. Você imagina a si mesmo solitário, divorciado, viúvo, imagina os filhos crescendo e indo embora, os amigos morrendo. Você imagina a perda de status, a perda do desejo – e de ser desejado. Você pode até pensar na sua própria morte, que, por mais que esteja acompanhado, só poderá enfrentar sozinho. Mas tudo isso é olhando à frente. O que você não consegue fazer é olhar à frente e depois imaginar a si mesmo olhando para trás daquele ponto no futuro. Aprendendo as novas emoções que o tempo traz. Descobrindo, por exemplo, que à medida que as testemunhas da sua vida vão diminuindo, existe menos confirmação, e portanto menos certeza, a respeito do que você é ou foi. Mesmo que você tenha registrado tudo assiduamente – em palavras, sons, imagens – você pode descobrir que se dedicou à forma errada de registro.”

Julian Barnes, em O Sentido de um Fim.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Cem anos de fascínio



Macondo está órfã. José Arcádio, Úrsula, Rebeca, Remédios, Melquíades e todos os Aurelianos Buendía, incluindo aquele primeiro, que o pai levou para conhecer o gelo numa tarde remota, também estão órfãos. Florentino Ariza e Fermina Daza estão órfãos. O senhor muito velho com umas asas enormes está órfão, assim como Estevão, o afogado mais bonito do mundo. Assim como a moça que deixou um rastro de sangue na neve antes de morrer. Ou como Erendira e sua avó desalmada, ou como o general em seu labirinto, o patriarca em seu outono, o coronel a quem ninguém escreve. Assim como o sábio triste que desejou uma noite de amor com uma adolescente virgem no dia dos seus 90 anos. Assim como eu.

Gabo nos deixou a todos órfãos porque foi um pai que nos mostrou como ninguém o caminho a ser seguido. Um pai que aprendemos a amar à medida que o conhecíamos, à medida que desbravávamos lentamente (ou melhor: avidamente) o seu infinito particular. O que dizer do fascínio que senti aos 15 anos, quando tomei um livro seu pelas mãos e me embrenhei nos amores contrariados de O Amor nos Tempos do Cólera? E o que dizer quando, logo em seguida, ainda impregnado pelo fascínio daquela história eterna, ele me levou pela mão e me mostrou o universo de desencanto e fantasia em estado bruto que encontrei em Cem Anos de Solidão? Quantos alumbramentos, quantas descobertas, quanto delírio silencioso.

Li muitos livros seus ao longo dos meus primeiros vinte anos. Depois, por já ter lido quase tudo, demorei a voltar a ele. Não importa. Seu lugar está garantido aqui, no monstro que se debate no lado esquerdo do meu peito. Há duas semanas, reli Memória de Minhas Putas Tristes, seu pequeno, singelo e derradeiro romance. E senti uma pontinha daquele sentimento avassalador que seus romances provocavam no jovem que fui. No homem que sou. Era um velhinho querido, amado, como são os velhos por quem devotamos doses maciças de afeto. Fique em paz, Gabo. Meu querido Gabo. Nós, que pertencemos às estirpes condenadas a cem anos de fascínio, teremos muitas outras oportunidades sobre a Terra de reencontrar você. 

terça-feira, 1 de abril de 2014

Depois do pesadelo




Para quem nasceu em 1970, as recordações mais nítidas da ditadura militar, iniciada há exatos 50 anos, se concentram no seu fim. Sou testemunha dos estertores da barbárie institucionalizada, que foi embora mais ou menos como começou: meio como farsa e como prenúncio de tempos difíceis. Volto aos meus 14 anos, numa manhã de 1984, e vejo meu pai entrando no quarto em que eu e meus irmãos dormíamos, o rosto contrariado e um jornal nas mãos, que jogou no meio das nossas camas, dizendo: “Diretas já era”. Começávamos mal, algo que se estendeu por muito tempo com consequências desastrosas. 

Um ano antes, creio, escrevi uma redação para o colégio intitulada “Uma medalha para o presidente”, que de forma meio irônica enaltecia a capacidade do general Figueiredo em conduzir o país à Abertura. Lembro que a redação terminava de maneira patética com a frase “Ok, Figueiredo, você venceu”, obviamente inspirada na canção da Blitz que era sucesso naquele tempo: “Ok, você venceu, batata frita”. Minha mãe adorou a redação e saiu mostrando a todos os parentes que iam lá em casa, me deixando ainda mais ensimesmado. Fui alçado às incertezas da adolescência nesse ambiente de fim de festa, depois de passar as tardes da infância vendo filmes e seriados importados e notícias distantes sobre o governo Geisel. Lá em casa não havia milagre econômico. Meus pais batalhavam em seus trabalhos e nós crescíamos de certa forma alheios aos anos de chumbo, protegidos por uma redoma de afeto. 

A ditadura acabou e aos 15 anos eu descortinei o mundo real. Enquanto as histórias de García Márquez me fascinavam, numa espécie de escapismo involuntário, passei a me debruçar (na maioria dos casos sem entender nada) sobre temas como capitalismo, comunismo, totalitarismo, fascismo, imperialismo e outros ismos menos notórios. E, principalmente, me dei conta da devastação que os 21 anos de ditadura provocaram. Lembro do sentimento de asco que o livro-relatório Brasil: Nunca Mais provocou em mim, do horror à tortura como método sistemático de trabalho, daquelas coisas horríveis feitas com insetos, choques elétricos e paus-de-arara. 

Com Feliz Ano Velho, conheci, a partir da tragédia individual de Marcelo Paiva, a tragédia coletiva que levou a reboque o seu pai, Rubens, um caso que até hoje me dilacera. Já Feliz Ano Novo me mostrou que essa mesma tragédia coletiva podia produzir boa literatura. Passei a ouvir Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso. A usar camisas com estampa de Che Guevara. A escrever poemas engajados horrorosos. A descobrir ecos do nosso sofrimento no Chile, na Argentina, no Uruguai. Era apenas um filho da revolução, um tímido e sonhador integrante da geração Coca-Cola, menino demais para tomar atitudes que se assemelhassem a uma rebelião juvenil. Cheguei tarde às dores do mundo. E, com os hormônios em ebulição e a vida inteira pela frente, só queria desfrutar dos prazeres e tentações que ele me oferecia.

segunda-feira, 3 de março de 2014


“Penso nos gestos esquecidos, nos muitos salamaleques e palavras dos nossos avós, pouco a pouco perdidos, não herdados, caídos um atrás do outro da árvore do tempo. Esta noite encontrei uma vela sobre a mesa e, para brincar, acendi-a e andei com ela pelo corredor. O ar causado pelo movimento ia apagá-la e, então, vi levantar-se sozinha a minha mão esquerda, abrigando e protegendo a chama como uma cortina viva que afastava o ar. Enquanto o fogo se endireitava, outra vez alerta, pensei que esse gesto fora o gesto de todos nós durante milhares de anos, durante a Idade do Fogo, até que a trocaram pela luz elétrica. (...) Como as palavras perdidas da infância, escutadas pela última vez na boca dos velhos que iam morrendo. (...) Como as músicas do momento, as valsas dos anos vinte, as polcas que enterneciam nossos avós. Penso nesses objetos, nessas caixas, nesses utensílios que aparecem às vezes em galpões, em cozinhas ou esconderijos, e cujo uso já ninguém é capaz de explicar. Vaidade de crer que compreendemos as obras do tempo: o tempo enterra seus mortos e guarda as chaves. Somente nos sonhos, na poesia, no jogo – acender uma vela, andar com ela pelo corredor –, aproximamo-nos às vezes do que fomos antes de ser isto que ninguém sabe se somos.”

Julio Cortázar, em O Jogo da Amarelinha

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Terceira classe





Dos 17 aos 28 anos, viajei muito de ônibus. Era a maneira que encontrava para desafiar distâncias enormes, como o trecho da BR-116 que liga Salvador a São Paulo e que percorri inúmeras vezes quando vivi na capital paulista. Ou mesmo para conhecer outros cantos do Brasil, como Fortaleza, Porto Alegre, Brasília ou Belo Horizonte. Avião nem pensar. Como hoje, pertencia à classe média. A mesma classe média beneficiada pelo bolsa-avião involuntário que nos permitiu lotar aeroportos e atrasar voos, para desespero dos quatrocentões do ar. Agora também posso dar meu rolezinho nos saguões de embarque internacional, pagando em não tão suaves prestações a minha viagem.

A inclusão aérea, proporcionada pela inclusão social dos últimos 15 anos, deveria ser vista sob qualquer aspecto como algo positivo. Na Europa, vemos pessoas de várias classes, cores e crenças reunidas pacificamente nos salões de embarque, com voos saindo praticamente sem atraso. Assim como vemos por lá essas mesmas pessoas no metrô e nas ruas. Mas parece que não queremos ser como a Europa. Queremos manter o segregacionismo social dos velhos tempos, para evitar que aeroportos virem rodoviárias e exponham a chaga da nossa falta de educação, do nosso atraso, da postura jeca dos nossos meio-pobres. Queremos evitar pessoas como o advogado fotografado de bermuda e camiseta em um aeroporto do Rio por uma professora, ela também - provavelmente - de classe média como ele, mas que imaginava estar tirando sarro de um alien social perdido num lugar que não lhe cabe. 


Sim, somos um povo mal-educado, grosseiro, que fala alto e ouve arrocha ou sertanejo universitário no celular sem se importar com os outros ouvidos. Afinal, a inclusão social não trouxe a reboque uma educação formal decente, e nesse sentido permanecemos patinando no século 20, que escancarou nossas desigualdades existentes desde a colônia. Mas ao menos “eles” têm uma boa desculpa. Já os ricos, ah, os ricos. São aqueles que, com raras exceções, estacionam SUVs enormes no passeio, que destratam garçons, vendedores ou vigilantes por qualquer falha mínima, que se exibem com guardanapos na cabeça e fazendo trenzinho em restaurantes chiques de Paris, como a turma de Cabral e Cavendish. Nossa elite é tosca, preconceituosa e, como alguns de nossos pobres, profundamente mal-educada. O recato e a discrição não parecem ser características admiradas pelos brasileiros. Arrotamos vantagens em restaurantes, nos vangloriamos das bocas-livres, dos convites VIPs, da exclusividade a qualquer custo. 

Como consequência, estamos criando uma nova espécie de apartheid, gestando um ovo de serpente que pode ter consequências imprevisíveis. Cada vez mais nos odiamos, algo que pode ser mensurado facilmente nas brigas de trânsito e de torcida, nos espancamentos de negros e gays, na proliferação de quadrilhas da fé que perseguem religiões africanas. Tudo isso observado por um Estado ausente, que deixa os aeroportos lotarem, os imbecis se matarem e os inocentes se ferrarem. Não evoluímos como sociedade. Continuamos primitivos e mal-acompanhados por nações que se desenvolvem a qualquer custo, sem políticas de bem-estar social ou ambientais, como Rússia, China e Índia. É isso que queremos? Um ódio desmedido e sem sentido? No Brasil, ao contrário do que disse Sartre, o inferno somos nós.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Uma foto em preto e branco



"Alguém clamando por socorro
A 2000 km de distância
É tão longe
É como aquela velha foto
Esquecida amarelada
De teus pais andando à beira da estrada
Aquele mato aquela cachoeira
As crianças nuas
É tão longe
É como aquele tempo em que
A bondade tinha sua recompensa
Uma foto em preto e branco
De um mundo tão remoto
Não dá mais para lembrar
Aquela juventude.
Um bebê roubado sem carinho
Sem mãe sem leite
É tão longe
É como aqueles dias nos
Nossos corações
Em que antes de tudo
Imperava a felicidade.
O mato cresce revolto
Desafiando os céus."

Esse poeminha foi escrito no dia 10 de fevereiro de 1991, aniversário de minha mãe, durante uma viagem a Recife, por um rapaz que acabara de completar 21 anos e dava vazão a uma inevitável propensão à nostalgia, algo inusitado para alguém tão jovem. Talvez fosse um recado ao homem de 44 anos, fios brancos em profusão dominando paulatinamente o cabelo e a barba, que agora bebe os últimos goles de um vinho espanhol no aconchego de sua casa. Difícil crer que o “tão longe” a que ele se refere no poema é um intervalo de pouco mais de dois anos, quase um sopro de horas para quem já atravessou tantas outras, muitas delas desperdiçadas. Há um idealismo enviesado, ou ao menos um esboço de um tempo feliz que curiosamente pertence ao passado, e não ao futuro, como se ele de certa forma já enxergasse o outrora, e não o porvir.

Mas talvez o rapaz de 21 anos já antevisse naquela época a incômoda capacidade do tempo de se converter em cinzas. Provavelmente sabia que o seu poema ficaria esquecido num armário até ser lembrado por acaso pelo seu autor, ou pela pessoa em que o seu autor se transformou, eu, tão diferente e ao mesmo tempo tão íntimo dele, como um irmão mais velho ou um velho amigo. Lembro que ficava intrigado quando ouvia minha mãe relembrar da sua infância e arrematar com um “parece que foi ontem”. Para mim, a sua aurora tinha a distância de uma eternidade, se é que podemos medir dessa forma o tempo ao qual não pertencemos. Mas a minha aurora é também medida em eternidades, embora alguns fatos permaneçam vívidos como um tropeção.

Ouvi há pouco um disco lançado em 1980, quando eu tinha 10 anos, e ele me trouxe reminiscências vívidas de casas, ruas, pessoas, casos prosaicos, sentimentos confusos, saudades avassaladoras e, principalmente, a sensação de que a memória é uma companheira de jornada muitas vezes cruel, mas da qual não conseguimos – e provavelmente não queremos – nos livrar. “Olhe bem nos meus olhos. Olhe bem pra você. O fato é que a gente perdeu toda aquela magia. A porta dos meus 15 anos não tem mais segredo. E velha, tão velha, ficou nossa fotografia. A quem é que a gente engana com a nossa loucura. Decerto a gente perdeu a noção do limite”, cantava Oswaldo Montenegro em Aquela Coisa Toda, o autor do disco que eu ouvia ainda agora. Pergunto a mim mesmo onde foram parar meus 15 anos, meus 18 anos, meus 21 anos sem portas ou segredos, abarrotados de poemas, viagens e amores que pareciam imortais. Estão aqui, em algum canto obscuro, ajudando a sustentar a essência do que sou, um emaranhado de lembranças que me impelem inevitavelmente para o futuro. 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Antes do fim




Não por acaso, o que mais se vê em Nebraska, filme de Alexander Payne, são vidas desperdiçadas. Vidas escorrendo numa sala em frente à tevê ou vendo carros passar. Vidas esperando ansiosamente por um nome na sepultura. Daí ser tão comovente a tentativa vã do seu protagonista de imprimir, já nos estertores da vida, um esboço de sentido em uma trajetória que até aquele momento foi pouco mais do que um borrão, um quadro em branco. Prestes a sucumbir de vez à senilidade, Woody Grant (Bruce Dern) se agarra a uma propaganda enganosa, um folheto que diz ser ele o ganhador de 1 milhão de dólares. Para  receber o prêmio, precisa ir até Lincoln, no Nebraska. Uma distância significativa do lugar onde mora, mas nem por isso capaz de demover um homem determinado. Mais do que ganhar um bom dinheiro, o que impulsiona Woody é legar algo para depois que for embora, em vez de apenas sumir da paisagem.

Há algo do Alvin Straight de História Real, o magnífico filme de David Lynch, em Woody Grant. Ambos são velhos turrões, que se apegam a uma última cartada oferecida pela vida para se tornarem pela primeira vez protagonistas da própria história. Lançam-se pelas libertadoras estradas da América na tentativa de concretizar o seu pequeno naco de sonho e fazer um acerto de contas final com a família antes que chegue o oblívio. Tanto em Alvin quanto em Woody, o senso de urgência, de que é preciso viver enquanto há tempo, chegou tarde demais. E a velhice é território propício à proliferação de frustrações e arrependimentos altamente nocivos.

Transpondo o drama derradeiro de Woody para o nosso dia a dia, chegamos a uma conclusão implacável: não temos qualquer controle sobre o nosso destino, além do fato de que cuidarmos razoavelmente da nossa saúde eleva as nossas probabilidades. Mas são apenas estatísticas, regras cheias de exceções, que não levam em conta a brutal insensibilidade do acaso. Intimamente, projetamos nossa trajetória com princípio, fim e um meio com duração minimamente generosa. Talvez por isso, procuramos – eu pelo menos – não contar com a sorte e tratamos de realizar nossos prosaicos sonhos de felicidade fugaz. Mas é sempre muito menos do que quase todos gostaríamos.

Não sei, algo me diz que não devo contar com o futuro. Ele não é muito confiável. Basta lembrar de Tomas e Teresa no final de A Insustentável Leveza do Ser, dirigindo plenamente felizes pela estrada, pouco antes do acidente fatal. A morte encontrou os dois justamente quando superaram tudo, o fim abrupto da Primavera de Praga, as dificuldades de uma vida complicada, com amantes em série, do lado dele, e uma insegurança crônica, do dela. Recordo da vez em que chorei copiosamente enquanto subiam os créditos do filme numa madrugada solitária em São Paulo, acossado pela sensação de impotência e vazio que nos provocam as mortes no auge.

Lembro também de Tony Judt, intelectual brilhante, tomado pela esclerose lateral amiotrófica aos 60 anos, talvez o melhor momento da sua vida. Reproduzi aqui no blog o trecho em que ele fala, no livro O Chalé da Memória, que a maior frustração causada pela doença terminal é não poder voltar a viajar de trem. “Waterloo nunca mais, paradas no interior nunca mais, solidão nunca mais”. É muito doloroso. De minha parte, pretendo conhecer os países possíveis, cultivar os afetos que me são caros e aproveitar os pequenos tesouros que passam vez ou outra à minha frente. Afinal, um dia também não poderei mais andar de trem.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Viagem ao fim da noite



Um pesadelo: eu e meu irmão íamos no banco de trás de um carro. Estávamos na área externa de um hospital aqui da cidade e, ao passarmos por uma área gramada, vimos vários caixões enfileirados dos dois lados da pista. Então meu irmão disse algo como: “Não importa o que se faça, a gente acaba sempre em silêncio e sozinho”. Aquilo provocou em mim um soluço imediato, entre o choro e a falta de ar, e meu irmão me abraçou forte, tentando me consolar. Logo depois, descíamos uma ladeira íngreme à noite, agora com meu outro irmão no banco do carona conversando amenidades, e do lado de fora eu via um precipício enorme ao lado da estrada. Continuava chorando e sentindo falta de ar. Fui lançado para fora do sonho e me vi numa madrugada fria, por conta do ar condicionado. Senti uma tristeza intensa e uma sensação de confusão mental, como se não conseguisse entender a cena que acabava de presenciar. Custei a reencontrar a inconsciência.
Nunca li Freud, portanto minha interpretação do sonho é a mais rudimentar possível, embora também exista uma outra leitura plausível, mais pessoal, que não cabe contar aqui. Na minha analogia onírica, aqueles caixões pertenciam aos mortos em série que encontrei nos noticiários do dia anterior. O cinegrafista morto por um morteiro. O jovem morto por um imbecil enciumado numa festa. O pai de família morto numa briga de trânsito na frente da mulher e do filho bebê. O rapaz gay morto aos 18 anos depois de ser brutalmente espancado por um grupo. Parece claro, para mim, que a realidade ao redor vem provocando efeitos nocivos na minha inconsciência, interferindo nos pacatos devaneios que desenvolvo na zona abissal todas as noites. Porque não estou diante de uma realidade qualquer. O pesadelo de verdade está aqui fora, inescapável e opressor.

Não tem sido fácil acompanhar o crescimento avassalador da violência urbana no Brasil. E, principalmente, o recrudescimento de uma nova modalidade de fascismo. As pessoas não estão sendo abatidas apenas por conta de assaltos, sequestros relâmpagos ou outros tipos de crimes que têm como objetivo tomar o que é do outro (os quatro mortos listados acima comprovam isso). Em alguns casos, o objetivo é eliminar o outro, negar a sua existência, como Narcisos broncos que acham feio o que não é espelho. Caminho assustado por essa terra devastada, oca de bom senso, atulhada de opiniões rasas, derivativas e sem matizes de parte a parte. Tenho medo do que me cerca e lamento com soluços os que vergam rumo ao chão. Sou um pouco como o Barnabu de Céline em Viagem ao Fim da Noite ou o garoto cigano de Kosinski em O Pássaro Pintado, tentando sobreviver em campo minado, presenciando um mundo em dissolução, uma nova era dos extremos, o apogeu da idiotia. E minha viagem particular ao fim da noite de ontem diz muito sobre esse estado de coisas.