sábado, 29 de setembro de 2012

Whole lotta love



Hebe Camargo morreu hoje. Ou foi ontem, não sei. Uns dias antes já tinha ido embora Ted Boy Marino, de quem guardo uma lembrança simpática, embora enevoada. Meu pai costumava chamar meu irmão mais novo de Ted Boy, e costumávamos ver o astro do Telecatch em ação no programa dos Trapalhões, que eu adorava. Lembro de quando meu pai nos levou ao cinema para ver Os Trapalhões no Planalto dos Macacos, num cinema na área central e hoje bastante empobrecida da cidade. Foi, talvez, o primeiro filme que assisti no cinema, mas pode ter sido Tentáculos, sobre um polvo gigante assassino. São reminiscências que chegam até o homem que sou hoje envolvidas numa pátina maciça de tempo. Reminiscências sem muita lógica, que me vão povoando a mente enquanto o Led Zeppelin (também ele uma lembrança de outros tempos) sacode o meu gabinete com uma sonoridade espessa. Sei apenas que me causa certo desalento saber da morte de pessoas que habitaram o meu imaginário infantil, como aconteceu há alguns meses com Chico Anísio.

Aos 42 anos, sou muito mais vulnerável do que fui. Sinto falta da redoma que durante décadas nos protegeu – a mim e a minha família – das doenças graves, dos acidentes, da violência urbana, e que se quebrou de vez quando meu pai adoeceu. É como diz aquela canção linda de Cazuza que Ney Matogrosso gravou: “De repente a gente vê que perdeu ou está perdendo alguma coisa morna e ingênua, que vai ficando no caminho”. Sim, a sensação de abrigo, morna e ingênua, que pais verdadeiramente amorosos passam aos seus filhos, e que perdemos aos poucos enquanto crescemos e nos tornamos, também, pais amorosos. “Uma infância feliz é a pátria mais invulnerável”, me disse certa vez numa entrevista o poeta argentino Juan Gelman. Acho que isso tem muito a ver também com Ted Boy Marino, Didi Mocó, o Homem de Seis Milhões de Dólares, o Homem do Fundo do Mar e tanta gente mais que nos fez companhia nas tardes solitárias da nossa aurora – ou da minha, pelo menos.  

Hoje eu protejo a minha criança em fase de metamorfose, crio um casulo impermeável a sofrimento e frustração, enquanto temo o embrutecimento coletivo ao meu redor. Mas... passou tão rápido. Sou tão criança ainda. Mal nos acostumamos a nos comportar como adultos e a vida já nos mostra o fim da linha. Que crueldade é essa que fazem com nós? Quem faz? Às vezes é muito duro ser ateu, e nesses momentos compreendo a opção pela crença sem questionamentos, pelo aceitar tranquilo e resignado de que estamos de passagem rumo ao paraíso. Mas o que tenho é apenas este lado do paraíso. Uma porção incompleta, sem a outra metade, já que à vida falta uma porta, como disse Ferreira Gullar. Sou estes ossos que apalpo, este tendão de Aquiles inflamado que me faz mancar, esta pele já não tão rígida, este ouvido que escuta agora Whole Lotta Love no volume máximo. Sou um homem que envelhece lentamente, enquanto a vida leva aos poucos nossas lembranças de infância, nossos Ted Boy particulares, nos deixando apenas a perplexidade.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Cócegas no infinito




Leio sobre a teoria do multiverso na coluna do físico e astrônomo Marcelo Gleiser na Folha de S.Paulo. Segundo ela, o universo que nós (mal) conhecemos seria apenas “um entre uma multidão de outros universos, todos parte de um multiverso que pode ter existido por toda a eternidade”. Gosto dos textos de Gleiser porque ele explica com clareza o que está à beira da nossa incompreensão. Como imaginar algo ainda maior e mais intangível do que o nosso universo? Como pensar em bolhas gigantescas convivendo em espaços-tempos diferentes e estanques desde sempre, sem começo, meio ou fim? Que seres existiriam nesses outros universos? Como eles seriam? Haveria algum tipo de inteligência superior? Ou apenas microrganismos unicelulares, como fomos um dia?

Enfim, nossa incompreensão é avassaladora. Uma avalanche de questionamentos nos leva à mais completa ignorância do que somos feitos, de onde viemos, para onde vamos e por que afinal estamos aqui. Em A Árvore da Vida,Terrence Malick trata dessa incompreensão absoluta diante da imensidão em que estamos imersos. Como encontrar respostas para a perda de quem amamos, se essa perda é só um farelo no curso da existência do universo? Se o próprio curso do planeta Terra é, também ele, só um farelo, uma centelha quase invisível? Nossa insignificância é assombrosa. Lançamos nossas preces ao céu em busca de um sinal, uma lógica, algo em que possamos nos agarrar antes de naufragar de vez na inconsciência.

Por outro lado, o quase nada que temos é crucial para que continuemos vivos. Enquanto o universo segue indiferente o seu caminho, tendo ou não a companhia de universos paralelos, nós prosseguimos como nômades por um cotidiano de perdas, frustrações, tédio, medo, cansaço e sofrimento, mas também de carinho, compaixão, amor, alguma esperança e momentos fugazes de alegria genuína. Como escreveu Christopher Hitchens em seu último livro, “Eu não tenho um corpo, eu sou um corpo”. Enfim, um mistério ainda maior e mais angustiante que o do multiverso. A carapaça que nos abriga é também tudo o que somos, em toda a nossa incompletude e finitude.

A vida é o que nos resta, portanto, já que a alternativa a ela não é nem um pouco atraente. Viver é bom, vale a pena, embora por vezes nos desencantemos com uma realidade tão brutal. Enquanto me deixo fascinar pela possibilidade do multiverso, o mundo banal e irrelevante que habito se projeta sobre mim com todo o seu tenebroso esplendor. Um mundo feito de atentados a bomba motivados por pretextos fúteis, execuções gratuitas de adolescentes pobres, corrupção desenfreada e índices alarmantes da mais pura miséria humana. E o que é pior: tudo isso é apenas farelo. Apenas uma cócega ligeira na sola do pé do infinito.