quinta-feira, 26 de maio de 2011

Crimes e castigos


Outro dia, reproduzi aqui no blog uma frase de Schopenhauer, na qual ele dizia que “a pior coisa que pode acontecer a alguém é nascer”. Uma frase de efeito, evidentemente, mas carregada de um ceticismo sólido e vertiginoso como um corpo caindo do oitavo andar de um prédio. Cioran também era cético, assim como Nietzsche, embora conheça muito pouco desses e de outros filósofos para falar com tanta propriedade sobre o pensamento deles. Sou apenas um leitor de romances.

Mas, do alto de minha ignorância, tenho plena certeza de que a vida merece ser devidamente degustada, acariciada, acalentada. Pelo menos neste momento tão agradável, em que levo à boca um charuto hondurenho, um vinho português e pequenos cubos de um delicioso queijo importado da Holanda, numa noite de quinta-feira. Muito fácil acreditar no real valor da vida assim, não? No som, Lester Young parece endossar o que digo, pois alguém que destila notas com tamanho lirismo ao saxofone certamente amou muito a vida, por mais que a tenha tido tão pouco tempo em seus braços - morreu antes de completar 50 anos.

Acredito no valor da existência e sobretudo no valor do homem, por mais que este faça questão de me desmentir diariamente. E, nesse aspecto, gostaria de pensar que para cada crime há sempre o castigo correspondente, como se fosse uma necessidade premente do próprio criminoso. Mas o mundo não é habitado por legiões de Raskolnikovs, para citar um dos mais célebres personagens da história da literatura, que, corroído de remorso, ansiou pela punição para o seu delito abjeto: matar sem motivo uma velha avarenta.

Havia uma ética, por mais insana e absurda que fosse, na forma como o anti-herói de Dostoievski se entregou ao próprio castigo, talvez porque o autor russo desconhecesse o cinismo e o despudor do homem moderno. Características fáceis de identificar, por exemplo, no jornalista Antonio Pimenta Neves, que se valeu de uma justiça com recursos inesgotáveis para ficar longe da prisão por 11 anos, vivendo com certo conforto e tranquilidade após ter matado com frieza a ex-namorada e destruído a vida da família dela. Ou no ex-general sérvio Ratko Mladic, que se escondeu por 15 anos para não pagar pelo genocídio de 8 mil homens e meninos que perpetrou na cidade de Srebrenica.

Ambos agora estão presos. São homens idosos, que certamente aproveitaram em maior ou menor medida alguns prazeres, frívolos ou não, que a vida oferece. Mas que negaram a outros esses mesmos prazeres. Não entro aqui no mérito da punição que merecem - e merecem, obviamente. Apenas tento entender por que neles o peso da culpa não foi suficiente para que se entregassem, dessem a cara a tapa, encarassem o mal que há neles com alguma dignidade e se lançassem no próprio castigo com a avidez de um Raskolnikov. Covardia, talvez.

Lembro agora de Bardamu, o narrador-protagonista de Viagem ao Fim da Noite, de Céline, que presenciava sem reação (apenas um cansaço perene) o mundo se liquefazer em carnificina na época da Primeira Guerra. John Updike observou que Céline enxergava na covardia o único motor para se manter vivo quando o que há em redor é apenas caos. Será que é isso mesmo? É possível. No nosso dia-a-dia, recorremos de certa forma à covardia para nos mantermos estáveis, para conseguirmos escapar da lama e ascender a lugar nenhum. Mas, neste caso, nossa covardia só faz mal a nós mesmos. A covardia de Mladic e Pimenta Neves brota de um breu muito mais profundo. Eles permanecem vivos, mas promoveram um expurgo desnecessário de vidas que poderiam estar agora, como eu, ouvindo Lester Young e fumando um charuto hondurenho nesta noite de quinta-feira. Parece pouco, mas não é.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Gente como a gente


O que mais comove em Não me Abandone Jamais, filme de Mark Romanek, é saber que a dor manifesta por seus personagens não é uma dor inexistente na vida real, como leva a crer a narrativa. Não, a dor daqueles jovens órfãos é inerente à condição humana. Confinados num mundo à parte e criados com o único objetivo de se tornarem doadores de órgãos, eles apenas expressam o desespero diante do fim, traduzido quase sempre em perplexidade e desalento, que acomete todos nós, seja qual for a nossa origem, classe social ou etnia. Nesse sentido, o longa, baseado no romance homônimo do japonês Kazuo Ishiguro, dialoga diretamente com fábulas visionárias embebidas em ceticismo, como Admirável Mundo Novo, de Huxley, e 1984, de Orwell. Nas três obras é possível, também, identificar um forte viés humanista, que se volta contra a padronização da sociedade e a supressão do indivíduo em prol do coletivo. Mas essa talvez seja a leitura menos importante a ser feita.

Estamos diante de um filme que exalta a beleza e os bons sentimentos acima de todas as coisas. Mesmo que não saiam vitoriosos (e o filme é niilista o bastante para não permitir qualquer possibilidade de redenção), o amor e a amizade se apresentam como valores fundamentais do ser humano, mesmo numa civilização em franco processo de deterioração. Iniciada na infância e sedimentada na juventude, a relação que une Kathy, Tommy e Ruth se mantém sólida mesmo quando eles se separam. Por mais que cada um siga seu caminho, o destino é o mesmo: os três terão seus órgãos retirados sucessivamente até o ponto em que não conseguirão viver sem eles. Isso pode acontecer logo na primeira doação ou se estender por mais três ou quatro cirurgias.

O sentimento de opressão e desconforto é reforçado pelo registro naturalista, mesmo que a trama se aproxime em alguns momentos da ficção científica. Não existem ou existiram, ao que se saiba, escolas como o rígido internato em que as crianças são educadas, mas ele parece estranhamente palpável. Daí não ser um completo disparate imaginar um cenário histórico como o que o filme propõe. No desenrolar do século 20, vimos aberrações ganharem corpo e alcançarem status de ciência, como foi o caso da eugenia, que deu origem às experiências bizarras dos nazistas durante a Segunda Guerra. O ideário nazista – ou mesmo a insânia coletiva promovida por Trujillo, Pol Pot e tantos outros – não é em si absurdo? Mas nem por isso deixou de existir. Não me Abandone Jamais trafega nessa fronteira em que o absurdo caminha lado a lado com nosso delírio cotidiano.

Do meio para o fim, a narrativa se adensa ainda mais, tornando-se quase insuportável de tão espessa. É nesse momento que nos damos conta do quanto ela é uma metáfora perfeita da condição humana. O grito primal jogado aos céus por Tommy é o mesmo grito que quase todos nós guardamos em alguma reentrância da garganta, mas que de alguma maneira deixamos de expelir, seja por fé ou resignação. Seu desespero nasce do fato de ter que partir tão cedo, mas de certa forma todos nós não partimos cedo demais? O que são 60, 80, 110 anos se a alternativa é o oblívio? Li outro dia um texto do jornalista Paulo Nogueira no qual ele cita a seguinte frase de Schopenhauer: “A pior coisa que pode acontecer a alguém é nascer”. Eu penso que a pior coisa que pode acontecer a alguém é morrer, salvo raras exceções. A fala derradeira de Kathy mata a charada: “No final, acho que nossas vidas não são muito diferentes das vidas das pessoas que recebem nossos órgãos”. A metáfora, enfim, se completa. 

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Entre os muros da escola



Outro dia, conversava com um amigo sobre a projeção que as discussões envolvendo bullying vêm alcançando dentro e fora do ambiente escolar. Para ele, tudo agora é bullying. Até mesmo uma prosaica discussão entre colegas seguida de um palavrão é recebida pelos pais como um atentado à dignidade do filho. "É a moda do momento. Se uma criança tropeçar no pátio da escola, estará sofrendo bullying por parte da pedra". Talvez ele tenha razão. Afinal, o bom senso anda escasso nessas discussões chatíssimas presentes em reuniões de pais e mestres. Principalmente no caso de pais que costumam parar em filas duplas e lançam os filhos para fora dos carros sem se importar se as suas mochilas estão pesadas ou se eles gostariam de companhia no trajeto até a sala de aula. Talvez estejamos diante de mais um sinal dos tempos. Tempos em que não cabe mais o bullying, mas por outro lado cabem a indiferença, o desapego e a falta de tempo e paciência para lidar com as crianças.

Entendo a preocupação do meu amigo com os exageros que vêm envolvendo essa questão (que hoje serve de justificativa para todo tipo de atitude, incluindo até um massacre numa escola). Nesse sentido, é possível que a longo prazo o combate indiscriminado a todo tipo de zombaria acabe destruindo a imunidade natural da criança, que teoricamente precisaria desenvolver uma couraça para se virar na escola. Mas, e quanto aos que não conseguem desenvolver essa couraça? Ficam à míngua? Transformam-se em adultos retraídos e atemorizados – ou, pior, violentos? É por isso que acho válido o combate ao bullying. Acho válido até mesmo que esse cotidiano imemorial de intimidações, maltratos e humilhações escolares tenha ganhado um nome, por pior que ele seja. Já fui criança, já fui adolescente e conheço bem o poder de destruição da violência moral (e às vezes física) praticada por alunos contra colegas que carregam, como chagas, algumas características que os tornam particularmente vulneráveis à insânia coletiva. Sofri (e também pratiquei) bullying, e acho que me saí relativamente incólume dessa experiência, mesmo acreditando que a timidez que manifesto até hoje tenha se exacerbado nos tempos de escola.

Tudo isso me veio à mente após assistir ao filme As Melhores Coisas de Mundo, de Laís Bodanzky. Poucas vezes vi o universo adolescente retratado com tamanha fidelidade. Nele, o bullying representa um dos papéis capitais, e nos faz perceber o quanto podemos passar de algozes a vítimas em questão de semanas. É o caso de Mano, o personagem principal. Sua vida desaba ao saber que seu pai acaba de largar a mãe para assumir um romance com um homem. Até então, Mano transitava com certa habilidade entre a turma dos "populares" e a dos "nerds" (utilizo aqui expressões que minha filha usa ao se referir a alguns de seus colegas de escola). Com a nova situação a que se vê exposto, tudo que ele mais teme é a descoberta desse segredo na escola. Em desespero, ele confessa ao irmão mais velho: "Se o pessoal da escola descobre que nosso pai é viado, a gente está fodido". Bem, o pessoal descobre. Apesar do tema, As Melhores Coisas de Mundo é um filme alto-astral, divertido e bem dirigido, que mostra também o lado bom de ser adolescente, que pode simplesmente não existir para alguns deles.

Tive colegas de escolas que foram muito humilhados. Lembro de um deles: Lisédino. Nome estranho, muito magro, introspectivo ao ponto de parecer invisível. Mas não era. Por ser física e emocionalmente muito frágil, era costumeiramente sacaneado, e mudou de escola. Encontrei-o uns dois anos depois na escola para a qual também mudei, e ele continuava do mesmo jeito e continuava sendo sacaneado, até se transferir novamente. Lembro de uma vez em que ele precisou ir até a frente da sala cantar uma música, como parte de um trabalho valendo pontos. Era Fruto do Suor, do grupo Raíces de América, mas acho que só eu e ele a conhecíamos. Ele cantava muito mal, a voz rouca e sem ritmo saía após exaustivo esforço e concentração. Os outros alunos riam, e eu fiquei meio encabulado, porque afinal percebia que havia algo de mim em Lisédino. Admirei e me apiedei dele naquele momento. Era só um garoto, mais culto e inteligente do que a maioria, mas incapaz de se valer de alguma forma dessas virtudes. Não fiquei amigo dele, até porque, na nossa estúpida ética adolescente, não era uma atitude recomendável se juntar a "perdedores".

Talvez o grande problema do bullying seja gestar visões de mundo que mais tarde se revelarão profundamente equivocadas. Preconceito é um troço terrível, e é na adolescência que ele desabrocha, após passar anos sendo inoculado em nós por nossos pais ou pelas pessoas com quem convivemos. Opiniões de cunho racista, homofóbico, misógino ou de discriminação social ouvidas na infância se manifestam mais tarde em comportamentos imbecilizados, mas que - dependendo de quem os ostenta - tornam-se profundamente admirados no ambiente escolar. Talvez por isso a adolescência seja o paraíso dos fascistas. A prática do bullying apenas reverbera tudo isso em forma de agressão, causando lesões por maltrato repetitivo na mente e no corpo de centenas, talvez milhares de meninos e meninas.