domingo, 26 de agosto de 2012

As cidades invisíveis




Tenho um interesse muito peculiar por cidades soterradas pelo tempo. Fico intrigado ao ver programas de tevê que mostram expedições arqueológicas desvendando segredos de civilizações ancestrais, encobertos por camadas e mais camadas de terra e concreto. Gosto de saber da existência dos guerreiros de terracota, milhares de estátuas em tamanho natural que guardavam o mausoléu do imperador Qin, na China, e que só foram descobertos na década de 1970. Ou que em cidades como Cairo e Alexandria, no Egito, qualquer obra subterrânea – seja uma extensão do metrô ou uma instalação de tubulações de gás ou esgoto – acaba sempre revelando porções generosas de passado. Antigos objetos de uso doméstico, afrescos, vestígios de antigas residências ou mesmo corpos mumificados dentro de esquifes de ouro.  

Assim como cidades são soterradas com o passar dos séculos, sociedades inteiras também são. É uma parcela enorme da humanidade que deixa o mundo paulatinamente para dar lugar a uma nova era. Mas não me refiro aqui às velhas civilizações da idade antiga. Falo das pessoas que viveram há pouco menos de 200 anos em cidades relativamente parecidas com estas em que vivemos. Tenho pensado nelas ao ler os primeiros livros de James Joyce, Os Dublinenses e Retrato do Artista quando Jovem. Seja nas desventuras em série do adolescente Stephen Dedalus ou na festa de confraternização das velhas irmãs do conto Os Mortos, Joyce fala de um mundo extinto: a Dublin de fins do século 19. São pessoas, comportamentos, objetos e formas de lazer e diversão soterrados pela modernidade. Por um mundo habitado por aviões a jato, telefones celulares, festas movidas a música eletrônica e drogas sintéticas, computadores com internet, pendrives com centenas de músicas e filmes e nada menos que seis bilhões de pessoas espalhadas pela Terra.

O curioso de tudo isso é que, daqui a 200 anos, todos esses seis bilhões de seres humanos estarão literalmente soterrados. Incluindo eu, você e os bebês que acabam de nascer neste exato momento, seja em Roma, Porto Príncipe, Tóquio ou num povoado esquecido do Sri Lanka. A dita modernidade de hoje dará lugar a um mundo radicalmente diferente do nosso, que será relembrado por alguém no futuro – do mesmo modo que faço agora – como um tempo tão exótico e remoto quanto a Dublin de Joyce. Não por acaso, é dele a frase: “O mundo real, sólido, em que os mortos tinham vivido e edificado, desagregava-se”. Joyce se referia ao mundo de Gabriel e sua esposa, Gretta, personagens de Os Mortos. Após ouvir por acaso uma canção há muito esquecida, Gretta se lembrara de um amor adolescente, um garoto chamado Michael Furey, morto aos 17 anos. A reminiscência desse trecho de juventude esquecido trouxe a tiracolo um misto de saudade e tristeza, que a deixou prostrada.

Fico imaginando o que permanece de nós quando nos tornamos invisíveis. Uma saudade que deixamos em nossos filhos e nossos amigos. Algo que escrevemos e que se reproduz por um tempo entre leitores que não conhecemos. Uma foto muito antiga que escapa das nossas gavetas e vai parar em um museu. Mas, em seguida, tudo se aniquila. Nossas cidades serão soterradas, assim como nossos corpos, nossa memória e nossos sentimentos. Vão passar os anos. Cem, duzentos, mil anos. E então o século 21 se converterá numa espécie de Mesopotâmia. Distante e desconhecido como o grito de um mudo num deserto de areia.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Somos todos japoneses




Há alguns meses, um homem morreu eletrocutado aqui em Salvador. Foi uma morte lenta. Ele tropeçou e caiu em cima de um fio de alta tensão, que tinha sido lançado ao solo após um caminhão ter derrubado um poste. Ficou longos minutos tostando enquanto perdia aos poucos a consciência. O episódio, fartamente exibido em um jornal por um fotógrafo profissional que coincidentemente passava por ali, gerou uma discussão ética nas redes sociais, com pessoas condenando ou absolvendo o fotógrafo por registrar sem retoques o fim de uma vida. Mas o que me deixou chocado nessa história toda foi outro fato, que passou despercebido nas discussões: uma das fotos mostrava o público que observava o acontecimento. Praticamente todas as pessoas ali filmavam ou fotografavam com seus celulares o homem morrer. O olhar deles era vazio, e havia um profundo fastio naquelas expressões. Eles registravam aquilo como se registrassem, sei lá, um congestionamento numa rua ou um funcionário do almoxarifado fazendo o seu trabalho.

Esse acontecimento me voltou à tona quando li um artigo de Umberto Eco, que tem como tema a maneira excessiva com que as pessoas registram tudo em máquinas fotográficas ou filmadoras, sobretudo após a disseminação dos celulares com câmeras. Na parte final do texto, Eco relembra o impacto que sofreu ao presenciar, quando tinha 11 anos, a morte de uma mulher que acabara de ser atropelada. Era a primeira vez que ele presenciava a morte, a dor e o desespero. “O que teria acontecido se eu tivesse um celular equipado com uma câmera de vídeo, como todo menino tem hoje? Talvez tivesse registrado a cena para mostrar a meus amigos que eu estive lá. E talvez tivesse publicado meu tesouro visual no YouTube, para delícia de outros devotos do ‘schadenfreude’. Depois disso, quem sabe? Se tivesse continuado a registrar esses infortúnios, poderia ter-me tornado totalmente indiferente ao sofrimento dos outros. Em vez disso, preservei tudo em minha memória. Setenta anos depois, a imagem mental daquela mulher continua me assombrando e, de fato, me ensinou a empatizar com o sofrimento dos outros em vez de ser indiferente a ele.

É muito perceptível, na sociedade de hoje, essa indiferença a que o escritor italiano se refere. E não apenas em relação à dor dos outros. Uma espécie de enfado coletivo parece guiar uma civilização que avança no piloto automático, olhando apenas para a frente. Não vou me estender aqui em discussões sobre a insensibilidade social ou o individualismo ferrenho que vemos em qualquer esquina. Falo apenas dessa apatia generalizada, que Eco traduziu perfeitamente na associação que fez com a obsessão contemporânea por registros visuais. Lembro que antigamente sacaneávamos com os turistas japoneses pelo costume que tinham de fotografar e filmar incessantemente os lugares que visitavam, em vez de realmente sentirem a atmosfera do local, suas peculiaridades, seus cheiros, suas cores. Para eles, a viagem começava quando voltavam para casa e conectavam a filmadora na tevê.

De certa forma, estamos virando japoneses, só que infelizmente sem a polidez e o recato característico deles. Cada vez mais filmamos tudo, fotografamos tudo, compartilhamos tudo nas redes sociais. Cada vez mais sentimos um vazio quando, ao invés de apreciarmos a apresentação dos nossos filhos no palco da escola, nos preocupamos em filmar toda a apresentação com nossos smartphones. Vemos o mundo através de uma telinha minúscula, e é com esse filtro que nos conectamos com a vida real e, de certa forma, nos protegemos dela. Ressalto: acho positivo que tenhamos acesso a tecnologias que nos permitem captar tantas coisas em um curto espaço de tempo e compartilhá-las com quem gostamos. Mas há uma perda aí, que ainda não consigo saber exatamente qual é. Apenas tenho a vida alheia cada vez mais próxima da minha retina, e isso turva a minha visão.