terça-feira, 29 de outubro de 2013

O que ficou pelo caminho




Há alguns meses, um amigo dos tempos de jornalismo em São Paulo me fez um excelente convite: escrever um livro. Em parceria com um colega, ele criou uma editora de e-books para publicar obras que, pelo que entendi, pensam o Brasil atual sob um ponto de vista regional e com abordagens das mais diversas. Já estão sendo produzidos trabalhos sobre temas que vão da cena cinematográfica do Recife aos black blocs em São Paulo. Ele queria que eu escrevesse um ensaio sobre a relação paradoxal entre as letras do cancioneiro axé (que exaltam a alegria sem fim de viver em solo baiano) e os índices avassaladores de violência no estado (que hoje possui uma das maiores taxas de homicídios do país).

Agradeci muito a oportunidade, mas declinei do convite. Mal consigo atualizar este blog, que vive à míngua com dois ou três textos a cada mês. Não conseguiria dar conta, dentro de minha rotina atual, de um projeto tão interessante, vasto e exaustivo, além do fato de ser um tema que não domino. Não acompanho – nem me interesso – pela produção artística baiana de massa. De qualquer modo, expliquei a ele que o conceito de felicidade eterna, onipresente nas canções dos artistas de Carnaval dos anos 90, vem dando lugar a algo mais grosseiro e desesperançado. Hoje, sobretudo no meio do pagode, muito enraizado nas classes populares, há um culto à sexualidade exacerbada, com letras preconceituosas e profundamente violentas. É como se a coisa toda tivesse desandado e a música refletisse isso, esse estado de coisas brutalizado.

Mas a verdade é que a proposta me deixou com uma ponta aguda de saudade, e é sobre isso que eu queria falar. Da saudade de duas paixões que aos poucos fui abandonando pelo caminho: a literatura e o jornalismo. O delírio de juventude no qual projetei a mim mesmo como um Scott Fitzgerald da virada do milênio se esvaiu na realidade dos anos e, de certa forma, esbarrou na falta de talento e de profissionalismo para a lida diária com as palavras. Escrever demandaria um sacrifício pessoal que eu não estava, nem estou, disposto a enfrentar. Talvez por isso, o romance que comecei há 11 anos, aproveitando um curto período de solidão e paz financeira num hotel em Fortaleza, permaneça inacabado. Gostaria de retomar as cento e poucas páginas de Puppy, que possui alguns momentos de boa literatura, mas nem sei como o homem de 43 anos dialogaria com o de 32 que deu forma àquelas páginas. De vez em quando releio alguns capítulos, me animo, mudo alguns trechos. Mas em seguida ele volta às profundezas do oblívio digital.

Já o jornalismo foi sendo aos poucos massacrado pelo cotidiano estressante da redação, do mais do mesmo, da labuta diária com seus plantões insuportáveis, pautas desinteressantes e, principalmente, salários aviltantes. Mas sinto uma imensa saudade do ambiente em que me movia como um leão na savana. Era o meu habitat. Como repórter de cultura e crítico de cinema, tive a oportunidade de entrevistar algumas das personalidades mais interessantes da produção artística brasileira e, com bem menos frequência, estrangeira. Gente como Silvio Tendler, Hector Babenco, José Eduardo Agualusa, Juan Gelman, Constantin Costa-Gavras, Fernando Meirelles, Walter Salles, Marcelo Piñeyro, Paulinho da Viola e muito mais. E também pude escrever sobre escritores, cineastas e compositores fundamentais na minha trajetória.

Como os próprios jornais impressos, todos esses nomes parecem pertencer a um mundo em extinção, do qual sou um dos sobreviventes. O jornalismo como o conhecemos caminha para se tornar um fóssil. Se antes formava opiniões, hoje é guiado por elas. Virou uma gigantesca imprensa marrom, com raras e muito honrosas exceções. Como um náufrago que pulou fora antes do navio ir a pique, observo tudo de longe, incapaz de vislumbrar a chegada do resgate. Ficam as reminiscências, a busca quase sagrada da palavra perfeita, o prazer de escrever pequenas obras-primas de três ou quatro laudas encurraladas pelo dead-line. Obras-primas que, na semana seguinte, se reduziam a uma lembrança esmaecida na mente de meia dúzia de impávidos leitores. 

domingo, 27 de outubro de 2013

"Dorothy Hewitt conta que, há pouco tempo, no hospital, quando a incerteza era máxima e não sabia se morreria ou sobreviveria, não era medo o que sentia, mas sim um imenso vazio. Não dormia de noite e esperava com ansiedade a chegada da manhã. Como se a manhã fosse salvá-la. Passava as noites a olhar pela janela, à espera das primeiras luzes. Essa experiência de vazio de Hewitt é um tipo de emoção que surge quando o realismo se rasga e aparece no seu lugar o núcleo duro do essencial, a nebulosa do ser verdadeiro, a bruma da identidade profunda que é sempre estranha e estrangeira. Também a sensação de não ter dado o que tínhamos, nem ter sabido viver intensamente. Seguramente, Dorothy Hewitt esperava a chegada da manhã confiando que esta a ajudaria a cortar amarras com o vazio e lhe permitiria traçar passadiços, talvez mesmo procurar atalhos até ao núcleo incomunicável."

Enrique Vila-Matas, em Chet Baker Pensa na sua Arte.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Uma espécie de saudade




No rádio do táxi, o locutor falava sobre um ciclone poderoso que se aproximava da costa, provocando o deslocamento de milhares de pessoas. Meio alarmado, perguntei se aquilo era em Portugal e o taxista me tranquilizou: “Não, é lá nas Filipinas. O nosso ciclone é outro”, e sorriu com um travo quase imperceptível de amargor. Perguntei se ele se referia à crise econômica e disse que sim, complementando: “A Europa é um projeto fracassado”. Ele nos deixou no Chiado e saímos caminhando pelas ruas. O tal projeto fracassado era inapreensível para mim. Talvez um empobrecimento momentâneo após alguns anos de bonança, o que não deixa de ser grave. Mas estava definitivamente diante de uma civilização avançada, que evoluiu muito dos tempos do salazarismo para cá.

Volto aos taxistas. É possível arranhar a superfície da alma lisboeta ao conversar com eles, com sua sintaxe peculiar, em geral mais comunicativos que no restante da Europa (ou talvez seja a língua comum que facilite). Conheci sobreviventes de tragédias passadas, como a extrovertida senhora que guiava com surpreendente desenvoltura pelas ruelas fervilhantes do Bairro Alto no início de madrugada. Enquanto nos levava ao hotel, ela resumiu rapidamente a sua história: vivia em Angola quando eclodiu a guerra no país, então fugiu com os filhos para a África do Sul. Lá, precisou fugir novamente, quando o país se destroçou durante os conflitos que marcaram o fim do apartheid. Foi para o Rio de Janeiro, pois precisava proteger suas crianças. Mas era uma época (não muito diferente de hoje) em que até a polícia matava crianças, como ocorreu na chacina da Candelária. Voltou a Lisboa para acompanhar os últimos dias de vida do pai e lá ficou, enfim. Suas crianças, hoje adultas, moram nos Estados Unidos.

Outro sobrevivente que conhecemos nas ruas de Lisboa foi um ex-combatente da guerra de Angola. Ele nos disse que não viaja de avião nem de navio por ter escapado de desastres terríveis nesses dois meios de transporte. “No avião morreram 14 pessoas e eu sobrevivi, talvez porque sou católico. E no navio, durante a guerra, perdi pessoas queridas em um naufrágio”. Comento com ele que a guerra é uma experiência que jamais se esquece, e ele concorda, com certa amargura: “Sem dúvida, amigo, sem dúvida”. É um senhor simpático de 70 anos, que recentemente fez uma viagem a Salamanca a bordo do seu velho Mercedes com 17 anos de uso e mais de 1 milhão de quilômetros rodados.

A melancolia tipicamente portuguesa parece ter se dissipado em parte, ao menos na capital. Lisboa é uma cidade vibrante, embora um pouco ensimesmada, mas de qualquer modo belíssima. Nela, a sensação de pertencimento que senti em Paris voltou a se manifestar. Uma espécie de saudade. Como se algo em mim dissesse: sou daqui. Minha relação com o país, que transcende o idioma comum e é fruto de uma árvore genealógica da qual infelizmente pouco conheço os frutos mais antigos, se intensificou com os versos de Pessoa, o pensamento de Saramago e a voz de Teresa Salgueiro. Mas estar lá é outra coisa. Ao ver de perto tudo aquilo, uma emoção profunda me arrebatou. E pensei com alegria numa remota possibilidade de viver em Cascais. Sim, queria envelhecer ali, vendo a vida passar naquelas ruelas, tão perto do mar salgado feito de lágrimas de Portugal. 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Admirável mundo velho



Outro dia me deparei com imagens fascinantes. Eram fotos de integrantes das tribos Surma e Mursi, que vivem ao Sul da Etiópia e mantêm costumes semelhantes aos da pré-história. Eles correm risco de extinção. Ou pior: de aculturação, fruto do contato cada vez mais frequente com a civilização como a conhecemos. Ao observar a maneira singela com que se adornam e se embelezam, utilizando materiais retirados da natureza, penso comigo: desgraçada é a civilização – a nossa, branca, ocidental, fruto das revoluções industrial e tecnológica – que permite o fim de uma cultura tão poderosa. Encaro aqueles rostos e eles me devolvem um mundo, encerram uma complexidade inacessível. E me pergunto: por que sociedades avançadas não são capazes de preservar sociedades ancestrais? Talvez porque não sejamos, na essência, avançados. Matamos incas, astecas, maias, aborígenes e ianomamis e o que ganhamos com isso?  

Não estou, aqui, fazendo a defesa de um paraíso idílico não corrompido. Afinal, algumas dessas sociedades guardam costumes terríveis. Apenas defendo inutilmente que a Terra deva comportar a permanência de culturas aparentemente primitivas sem a interferência das sociedades ditas evoluídas. Um pensamento que não é meu, mas que reproduzo de uma grande amiga dos tempos de São Paulo, antropóloga brilhante, quando lhe perguntei qual seria o caminho viável para as tribos africanas. Na época, eu defendia a integração entre os povos. Hoje, não tenho dúvida de que ela está certa. De que a interferência das potências ocidentais, primeiro na era das colonizações, depois no período pós-ONU, é responsável pelo colapso de um mundo que vivia em certa harmonia. Ou alguém acredita que a vida das tribos Surma e Mursi, em seu coletivismo primário, é pior do que a das populações urbanas miseráveis de países como Serra Leoa, Libéria ou Sudão?

De tudo isso, o que mais me entristece é perceber como o mundo é vasto, rico e diferente. E que não conhecerei (não conheceremos) nem uma décima parte dele. Essas imagens que me fascinaram, assim como alguns registros que Sebastião Salgado fez dos confins do globo, escancaram o nosso desconhecimento, a nossa ignorância. Temo pela extinção, nas próximas décadas, de milhares de idiomas, etnias, costumes e culturas. É um genocídio silencioso, sem protestos nas ruas ou desaprovação das comunidades internacionais. Apenas o grito mudo e inútil de um admirável mundo velho que se despede.