terça-feira, 30 de abril de 2013

O mundo é um monstro



Eu hoje acordei meio deprimido sem saber exatamente o motivo, como acontece de vez em quando. Algo se processa em minha mente enquanto durmo e de manhã percebo o estrago. Então lembrei que, pouco antes de dormir, tinha lido a notícia de que a garotinha de cinco anos estuprada e torturada na Índia havia morrido no hospital. Aquilo doeu de uma forma estranha, como se houvesse uma implosão em algum ponto do meu corpo. Devo ter dormido com esse fato provocando pequenas incisões nos meus sentimentos, e acordei com uma desesperança, um desalento e uma constatação óbvia: o mundo é um monstro.

Na semana passada, sonhei que vi da varanda do meu apartamento uma briga de trânsito que culminou numa execução. Foi um pesadelo muito real: dois carros (curiosamente de modelos antigos) fechando-se mutuamente, os xingamentos e por fim um dos carros invadindo a calçada, um dos sujeitos saindo do carro e descarregando o revólver no outro. Lembro com nitidez do corpo já inerte, encostado num muro, enquanto as balas ainda iam em sua direção. Lembro de ter pensado em ligar para a polícia, mas permaneci paralisado pelo pavor. Então acordei, o corpo tremendo, suando, como se acabasse de presenciar um assassinato de verdade.

Para mim ficou claro: minha mente processava naquele momento o estado de torpor, medo e impotência em que vivemos. Um estado latente, que se exacerbou em sonho, mas que nos deixa em permanente alerta quando estamos acordados. Temos motivos para isso, como os animais da savana que ficam o tempo todo de olhos, nariz e ouvidos atentos a qualquer balançar de arbusto ou arrastar de patas no solo. Somos como zebras, tentando proteger a nós mesmos e a nossas crias do ataque iminente, da banalidade do mal. Curioso como é oportuna nos dias atuais essa expressão criada por Hannah Arendt para explicar o que sentiu durante o julgamento do nazista Adolf Eichmann. De acordo com Hannah, os atos de Eichmann não eram desculpáveis, muito menos ele era inocente. Mas não foram atos executados por um ser dotado de imensa capacidade de crueldade, e sim por um funcionário burocrata dentro de um sistema baseado em atos de extermínio. Um sujeito banal, em suma.

O que percebo hoje é que o mal – sistemático, gélido e praticado em escala industrial – serve não a um regime, mas a toda uma civilização. Padecemos de uma enfermidade moral, que ora se expressa no estupro absurdo de uma criança, ora num assalto que termina com a vítima incendiada sem qualquer possibilidade de defesa. Ou também em uma bomba dentro de uma panela de pressão, detonada por rapazes com feições angelicais e, num estágio acima, em um avião não-tripulado que despeja bombas e transforma famílias em escombros. É como se todos os princípios morais e humanistas sedimentados durante séculos tivessem evaporado. O tudo é permitido de que falava Dostoievski finalmente chegou. Vivemos em um mundo pré-iluminista, pré-renascentista. Um mundo à beira da pré-história.

Pergunto a mim mesmo como o ato tão extremo e tão profundo de matar pode ser cometido com tamanha regularidade e das formas mais prosaicas. Que mecanismo se processa em nós e nos transforma em assassinos? Não busco aqui explicações sociológicas, já que a profunda desigualdade social de países como Índia e Brasil é diretamente responsável pela violência urbana, mas não necessariamente por atos gratuitos de crueldade. Gostaria de compreender como é gestado um assassino potencial, até para não me sentir tão vulnerável diante de um, dos tantos que habitam o país onde vivo. Mas a chave está mesmo com Hannah Arendt: o mal é banal, e não comporta compaixão, piedade ou remorso.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

O afeto que se encerrou




Paulo Francis morreu no dia em que completei 27 anos. Eu trabalhava no departamento de pesquisa da Folha de S.Paulo e passei o dia escrevendo e levantando material para a edição especial sobre ele que sairia no dia seguinte, ao tempo em que suprimia a tristeza por sua perda e por meu aniversário passar praticamente em branco. Tinha aprendido a gostar de Francis, estimulado por um colega de faculdade cujas idéias e a bagagem cultural eu respeitava e admirava. Até hoje considero seus livros de memórias – Trinta Anos Esta Noite e O Afeto que se Encerra – duas obras-primas. Sua erudição, mesclada com coloquialismo e boa dose de coragem, produzia textos sedutores, envolventes, mesmo que por vezes suas opiniões se mostrassem extremamente preconceituosas.


Grande parte dessa reverência se esvaiu com o passar dos anos. E isso ficou muito claro para mim outro dia, quando vi no Twitter um link para uma página que reunia 30 aforismos de Francis. Eu planejava compartilhar essas citações nas minhas redes sociais, até que fui lendo as frases. Havia reflexões interessantíssimas, como Todo otimista é um mal-informado”, e insultos hilários, como “Dizem que escrever é um processo torturante para Sarney. Sem dúvida, mas quem grita de dor é a língua portuguesa”. Outras, no entanto, eram de uma imbecilidade exemplar, como “A descoberta do clarinete por Mozart foi uma contribuição maior do que toda a África nos deu até hoje” ou “A função da universidade é criar elites e não dar diplomas a pés-rapados”.

Sei que posso ser acusado, aqui, de querer pregar o politicamente correto, quando na verdade estou tentando pregar apenas o que considero correto. As duas frases que citei por último deixam entrever a característica mais deplorável de Francis: o seu racismo. Sim, a função da universidade é criar elites, mas desde quando pés-rapados não podem ou não devem fazer parte dessa elite? A que elite ele se refere? Uma elite intelectual ou uma elite financeira? Quanto à África, deixando de lado toda a trajetória miserável que não permitiu ao continente produzir Mozarts em série, será que é tão difícil enxergar as contribuições musicais relevantes que ela nos legou? Eu mesmo poderia citar aqui, de cabeça, uns 10 artistas africanos excepcionais. A obtusidade de Francis neste caso é ainda mais clara.

Essa desconstrução de alguém que já admirei muito se intensificou hoje, quando assisti ao documentário Caro Francis, dirigido por Nelson Hoineff. Um filme interessante, embora claramente afetivo. Ali estava o Francis amigo, capaz de gestos profundamente generosos, e também o Francis hilário, com sua voz empostada de bêbado e seus olhos de louco. Os momentos derradeiros (do filme e da vida dele) são comoventes. Mas mesmo nesses trechos fica claro como as atitudes do jornalista eram nocivas, inclusive para ele mesmo.

Pouco antes de morrer, Francis acusou, no programa Manhattan Connection, os diretores da estatal Petrobras de enriquecerem de forma ilícita, depositando milhões em paraísos fiscais. Mesmo alertado pelos colegas de bancada da gravidade do que disse, preferiu sustentar a informação, que obviamente não poderia ser provada. A Petrobras entrou com um processo na justiça norte-americana que o levaria à falência, o que o deixou em desespero e provavelmente contribuiu para o infarto fulminante que o matou. Mas em nenhum momento os entrevistados dizem que Francis foi leviano ou que sua atitude era incompatível com o exercício do jornalismo. Limitam-se a culpar o médico e a Petrobras por sua morte. É claro que houve um erro grosseiro do médico (que tratou um infarto como uma bursite), mas por que Francis não buscou outro médico mesmo quando as dores aumentaram sensivelmente?

Quando o filme relembra a briga entre Francis e Caio Túlio Costa (então ombudsman da Folha), que culminou com a saída do colunista do jornal, Diogo Mainardi prefere ofender Caio Túlio, chamando-o de medíocre, a analisar o caso de maneira imparcial. Muitos outros entrevistados agem de forma parecida, tratando Paulo Francis como um arauto da inteligência e do refinamento numa cruzada contra a estupidez generalizada do brasileiro. O problema é que mesmo com um recorte tão favorável ao biografado, o que fica – ao menos para mim – é o retrato de um sujeito muitas vezes egocêntrico, arrogante e irresponsável.

Caetano Veloso cita em Verdade Tropical, que estou relendo, outro episódio envolvendo Francis: “No final dos anos 80, o jornalista carioca Paulo Francis escreveu de Nova Iorque para um jornal de São Paulo que, ao ver Bethânia cantando o ‘Carcará’ em substituição a Nara Leão em 64, percebera que o Rio mudara e ele passara desde então a considerar aquele momento como o marco da vinda ‘dessa gente’ (que ele despreza) para o Rio”. Esse episódio relembrado por Caetano (outro que já brigou feio com o jornalista) desvela o pensamento de Francis em todo o seu tenebroso esplendor: o elitismo sem sentido, o permanente saco cheio do mundo, a revolta contra as “impurezas” que tomavam conta do Brasil. São elementos que sem dúvida enriquecem o personagem, mas evidenciam a pobreza de espírito do criador. Como Pound ou como Céline, sendo que Francis nem de longe chegou perto da estatura desses dois.