sexta-feira, 29 de julho de 2011

A doce dama do lixão



Pouca gente sabe quem foi Estamira Gomes de Souza, que morreu ontem no Rio de Janeiro. Eu, por exemplo, só a conheço por ter assistido ao comovente documentário que leva seu nome, dirigido por Marcos Prado em 2005. Quem viu o filme não esquece dela, nem a sensação de desconforto quase físico que a sua tragédia pessoal provoca em nós. Estamira tinha 72 anos. Presto minha homenagem a ela reproduzindo aqui uma crítica que escrevi na época do lançamento do filme.

 *

Vida e pensamento de uma habitante do submundo
são retratados com ternura em ‘Estamira’

Além dos arranha-céus da zona sul carioca, dos conjuntos habitacionais da zona norte, das favelas e casinhas de tijolo aparente da Baixada Fluminense, existe um lugar onde os deserdados se encontram. São milhares deles, homens, mulheres e crianças vindos do nada e indo para lugar nenhum, sobrevivendo das toneladas de restos humanos despejadas diariamente no aterro sanitário de Jardim Gramacho. Entre eles, no ponto mais baixo da escória, vive Estamira. Mulher de pouco mais de 60 anos, mãe, avó, portadora de distúrbios mentais e dona de um olhar singular e surpreendentemente arguto sobre o absurdo da existência, sobretudo da de gente como ela.
O sofrimento, as lembranças e a tortuosa vida de Estamira estariam irremediavelmente fadados ao oblívio caso ela não tivesse topado, no ano 2000, com o cineasta Marcos Prado, que há tempos desenvolvia um trabalho fotográfico no lixão do Jardim Gramacho. Ficaram amigos, e o diretor começou a ser seduzido pelas frases enigmáticas, recheadas de reflexões filosóficas, daquela senhora de olhos esbugalhados, que dava início a um tratamento psiquiátrico no Centro de Assistência Psicossocial José Miller, em Nova Iguaçu. Resolveu imortalizá-la num filme que leva seu nome.

Prado dá plena voz a sua biografada, registrando seus delírios e seus momentos de intensa lucidez, enquanto conduz o espectador para dentro do universo em que ela sobrevive. Lá, entre montanhas de detritos, urubus e lagos imundos que borbulham pela ação dos dejetos orgânicos, Estamira encontrou a afeição e o amparo que lhe faltaram durante quase toda a vida.

Filha de uma mulher com problemas mentais e neta de um indivíduo que a violentou quando criança e a levou para um bordel, ela casou, teve um menino, descasou e encontrou outro homem, um italiano mulherengo, com quem teve uma menina. Já mais velha, foi duas vezes estuprada no local onde vivia e ainda deu à luz outra filha, que acabou sendo criada por uma família. É doloroso perceber, em fotos antigas, que Estamira chegou a ter alguma estabilidade. Andava bem-vestida e criava os filhos – que também dão seus depoimentos – com dignidade. Com uma linha de pensamento muitas vezes enviesada e aparentemente desconexa, ela rememora essa existência que acabou por levá-la ao aterro de Jardim Gramacho.

Há frases lapidares, como “não existe mais inocente no mundo. Tem esperto ao contrário, mas inocente, não” ou “aqui só tem escravo disfarçado de liberto. A Isabel libertou todo mundo mas não deu comida, não deu trabalho. Ficou isso aí”. Estamira nutre uma revolta profunda contra Deus, a ponto de se descontrolar e expulsar de casa seu filho, quando ele tenta lhe passar ensinamentos aprendidos na Igreja Adventista. É quando a senhora dócil e de olhar distante dá lugar a uma mulher violenta e fora de si, que despeja afirmações como “Quem seguiu direitinho tudo que ele (Deus) e a quadrilha dele mandou largou de morrer? Largou de passar fome? Largou da miséria?”.

Marcos Prado foca o mundo de Estamira com câmera ágil, trilha envolvente e fotografia granulada (oscilando entre o colorido e o preto-e-branco), mostrando com fidelidade a vida no aterro, seus personagens e a dignidade (ou a completa ausência dela) que viceja por trás da imundície. Poderia ter sido mais sucinto, reduzindo em pelo menos 20 minutos a narrativa, para deixá-la mais ágil. Mas é um defeito menor em meio a tantas virtudes. Ao mostrar a brutalidade cotidiana da vida no lixão, Estamira transporta para nossa realidade o mundo dos invisíveis. E o que vemos nos sufoca, mas também nos enternece.

* Publicado originalmente no Correio da Bahia.

Odisséia americana



Pouco antes de morrer, Johnny Cash gravou uma série de canções de outros compositores. Há coisas lindas, como a releitura de Hurt, do Nine Inch Nails, que ganhou com ele um tom abissal, quase apocalíptico. E também One (U2), Bridge Over Troubled Water (Simon & Garfunkel) e In My Life (Beatles). Mas, entre todas essas gravações outonais, há uma música do próprio Cash que me comove mais do que qualquer outra: Give my Love to Rose. Ela pertence à linhagem de canções que deram forma à faceta de “storyteller” do cantor, da qual fazem parte pérolas como The Reverend Mr. Black, The Ballad of Ira Hayes e The Last Gunfighter Ballad.

Cash conta a história de um homem que encontra um sujeito agonizando ao lado de uma estrada de ferro. Ele vira seu corpo para ajudá-lo e escutar o que tem a dizer. E o que esse homem tão perto da morte diz é de cortar o coração: após passar 10 anos numa prisão em São Francisco, pagando por algum crime que havia cometido, o desconhecido queria apenas voltar para a Louisiana para rever a esposa, Rose, e conhecer seu filho. Pede ao seu interlocutor que leve até Rose a sacola onde está todo o seu dinheiro, para que ela possa comprar umas roupas, e que diga ao garoto que seu pai está muito orgulhoso dele. E, num lamento desesperado, pede para que leve todo o seu amor para Rose.

Há toda uma concepção de país por trás dessa pequena história de amor e solidariedade. Na sua simplicidade, Cash deu forma a uma odisséia impossível de retorno à Louisiana natal. Está ali toda a vastidão da América, a solidão inabalável dos seus grandes espaços abertos, a porta que abre e fecha em Rastros de Ódio, de John Ford, trazendo desconhecidos e com eles boas ou más notícias. Estão ali o crime e o castigo, e também a confiança no próximo, traduzida no conceito anglo-saxão de “trust”, que permeia as relações entre as pessoas no país. É essa percepção de confiança que permite que um homem à beira da morte transfira a um desconhecido todo o seu dinheiro e a missão de levá-lo à mulher que ama.

Estamos, claro, falando de um mundo ideal, onde a bondade e a honestidade seriam tão rotineiras no cotidiano da América profunda quanto a torta de maçã esfriando na janela ou os ovos com bacon no café da manhã. Mas o fato é que essa relação de respeito e confiança no próximo é parte integrante do imaginário norte-americano. Ela está presente, por exemplo, em A História Real, filme de David Lynch, nas pessoas que ajudam o velho viajante Alvin a continuar sua jornada a bordo de um cortador de grama para reencontrar o irmão e acertar as contas com o próprio passado. Está presente também na forma destemida com que Sal Paradise e Dean Moriarty cruzavam a América de carona, carro, ônibus ou trem em On The Road, de Jack Kerouac, sempre louvando a generosidade pura das pessoas simples e confiando que haveria alguma alma boa para ajudá-los caso houvesse algum problema.

Johnny Cash registra magistralmente essa confiança em sua canção singela, e imprime tamanha sinceridade à sua voz que ninguém duvida de que tenha realmente viajado até a Louisiana para levar a mensagem do homem à beira da morte para a sua família. É impossível não sentir uma pontada de tristeza quando ele canta: “Give my Love to Rose, please won’t you, mister?”, num lamento desesperado de quem não pode mais prosseguir na odisséia rumo à felicidade perdida. Ao ouvi-lo, nós também sentimos na pele a necessidade premente de levar adiante o último desejo de um desconhecido, pelo simples fato de ele acreditar na nossa honestidade.

*

Give my Love to Rose

I found him by the railroad track this morning
I could see that he was nearly dead
I knelt down beside him and I listened
Just to hear the words the dying fellow said

He said they let me out of prison down in Frisco
For ten long years I've paid for what I've done
I was trying to get back to Louisiana
To see my Rose and get to know my son

Give my love to Rose please won't you mister
Take her all my money, tell her to buy some pretty clothes
Tell my boy his daddy's so proud of him
And don't forget to give my love to Rose

Tell them I said thanks for waiting for me
Tell my boy to help his mom at home
Tell my Rose to try to find another
For it ain't right that she should live alone

Mister here's a bag with all my money
It won't last them long the way it goes
God bless you for finding me this morning
And don't forget to give my love to Rose

Give my love to Rose please won't you mister
Take her all my money, tell her to buy some pretty clothes
Tell my boy his daddy's so proud of him
And don't forget to give my love to Rose

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Cinzas do paraíso



A morte de Amy Winehouse não aconteceu ontem: há dois ou três anos ela agonizava à vista de todos, com a conivência obsessiva dos tablóides e sites de internet sempre à cata de fotos escandalosas, e era motivo de chacota entre as platéias que se deslocavam até seus shows para vê-la cambalear e esquecer as letras. Enquanto sucumbia, Winehouse alimentava fartamente o universo de frivolidades e mitos forjados que leva a alcunha de cultura pop. O mesmo universo que agora vai incluí-la no patético panteão dos ídolos mortos aos 27 anos, e diluí-la em pequenas porções até que se esgote o seu parco legado. Seu fim, tão óbvio, me chocou e me entristeceu, até porque vislumbrava algo de vibrante e genuíno em sua música. Mas estes dias nos reservaram uma morte ainda mais trágica, e é dela que gostaria de falar.

Estou me referindo à morte da inocência, ou do que restava dela. Com o assassinato de uma centena de pessoas na Noruega, caiu por terra a última fronteira ainda imune à barbárie. Ela enfim chegou a um país onde as políticas de bem-estar social implantadas no pós-guerra deram forma a uma das civilizações mais avançadas do mundo. Ao lado de seus vizinhos escandinavos, a Noruega é um exemplo sem igual de como a social democracia é o melhor (o único, talvez) caminho a ser seguido para se criar uma sociedade homogênea, consolidada a partir de investimentos maciços em políticas públicas e na presença do estado onde ele é estritamente necessário. Enfim, a Noruega é o mais próximo que o homem chegou do paraíso, mas agora se vê tomada por cidadãos perplexos e incapazes de entender as motivações para tamanho sofrimento.

É o século 21 se mostrando por inteiro. Não, desta vez não há nenhum radical de origem árabe e pertencente a alguma organização islâmica para ser responsabilizado. A doença, neste caso, vem de dentro, como um câncer. A princípio, lembra muito aquele atentado de Oklahoma, cometido por Timothy McVeigh. Pelo pouco que li - e quero ler cada vez menos sobre tragédias como essas - o sujeito era um desses fanáticos de extrema direita com idéias difusas e absolutamente tolas, que para azar de todos nós (sim, essa tragédia também nos atinge) estava armado até a raiz dos cabelos. Panacas como esse surgem de vez em quando, como anomalias numa ninhada sadia, e costumam fazer um estrago danado. Mas é sintomático que o novo século esteja sendo cada vez mais povoado por eles.

Há algo de errado em nós, na forma como vemos e agimos no mundo, e nesse sentido vale ler O Mal Ronda a Terra, do historiador Tony Judt, que explica de forma lúcida como deixamos de exportar Noruegas em série para nos tornarmos reféns do individualismo e do culto ao consumo em nações abarrotadas de miseráveis. Uma coisa, é claro, não tem nada a ver com a outra. Mas ambas fazem parte de um mesmo cenário desolador, no qual o que mais se destaca é a banalização (e o recrudescimento) da violência. Seja na forma de armas de destruição em massa, bombardeios "cirúrgicos" ou mesmo de um .38 de numeração raspada que um sujeito numa moto usa para atirar em nós e nos roubar o celular. É a grande marcha da história e as pequenas tragédias individuais se unindo para tragar o máximo de vidas possível. E nós, sobreviventes vulneráveis e desnorteados, seja no Brasil, na Líbia ou na Noruega, apenas lamentamos o azar alheio e louvamos a nossa sorte.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O preço da nostalgia



Ao longo de décadas de leitura conheci alguns personagens com os quais me identifiquei profundamente. Havia muito de mim em Mathieu Delarue, o anti-herói existencialista que clama intimamente por liberdade em A Idade da Razão, de Sartre. Ou em Sal Paradise, o aventureiro que cruzava as estradas da América em busca da própria essência no clássico beat On the Road, de Jack Kerouac. Ou ainda em Jake Barnes, o beberrão atormentado e hedonista de O Sol Também se Levanta, meu Hemingway preferido. Mais recentemente, ao ler Conversa na Catedral, de Vargas Llosa (sobre o qual comentei aqui recentemente), vi a mim mesmo na pele de Santiago Zavala, um dos personagens mais palpáveis com que me deparei nessas andanças imaginárias por milhas e milhas de palavras e entrelinhas. Todos eles fazem parte do que sou, assim como alguns personagens dos contos e romances de Fitzgerald ou tipos momentaneamente esquecidos por minha mente cansada.

Mas nenhum deles se parece tanto comigo – seja pela forma de pensar, pelos ídolos literários ou pela propensão à nostalgia – quanto um sujeito que encontrei no cinema domingo passado: Gil Pender, o frustrado escritor e roteirista de Meia-Noite em Paris, novo filme de Woody Allen. Um filme delicioso, diga-se de passagem, que marca o retorno do cineasta ao auge (por menos pretensiosa que seja esta comédia de acento fabular). Sim, eu me vi espelhado nos cabelos loiros e no nariz torto de Owen Wilson, que empresta sua estampa ligeiramente desajeitada e melancólica a um indivíduo fascinante. É claro que um personagem de cinema dificilmente alcançará a profundidade de um congênere literário, ainda mais em se tratando de um personagem alegórico, que habita uma trama amparada em clichês bem definidos – e magistralmente subvertidos. Gil está longe de ostentar, por exemplo, a complexidade de um Raskolnikov.

O fato, porém, é que meus pequenos sonhos românticos estão lá no filme, verbalizados por ele: morar em Paris, trabalhar com literatura e, principalmente, ser capaz de viver em um período histórico que me fascina acima de todos os outros. Gil cultiva a nostalgia de um tempo não vivido – no caso, a década de 1920, quando a capital francesa foi invadida por hordas de escritores e artistas, em grande parte americanos expatriados, imortalizados com a alcunha de Geração Perdida. Tanto eu quanto ele consideramos esse hiato que separa a humanidade de duas guerras absurdamente brutais o ápice da civilização. Tanto eu quanto ele lamentamos a nossa inadequação ao mundo atual e alimentamos o desejo de ter nascido e vivido em uma outra era (já falei sobre isso aqui no blog).

Meia-Noite em Paris trata desses assuntos com leveza, doçura e humor, mas sua conclusão é de certa forma amarga. Ao voltar ao passado e reencontrar Hemingway, Scott e Zelda Fitzgerald, Salvador Dalí, Cole Porter, Luis Buñuel e Gertrude Stein, entre tantos outros ícones dos anos loucos, Gil se depara com o fato de que, para quem vivia aquele presente, a Era de Ouro já havia passado. Ao voltar ainda mais no tempo e encontrar Toulouse-Lautrec, Edgar Degas e Paul Gauguin no final do século 19, eles se queixam que a verdadeira Belle Époque foi a Renascença. E assim por diante – ou melhor, para trás. Não existe, portanto, um lugar ideal no espaço-tempo, um útero imaginário para onde podemos voltar sempre que o sentimento de inadequação nos toma de assalto. Passado, presente e futuro são apenas monótonas variações sobre um mesmo tema.

Quanto à nostalgia, até que ponto ela é salutar e até que ponto revela um aspecto negativo da nossa personalidade? Ansiar pelo passado não seria uma forma de negar o futuro, ou mesmo o presente? E, ao negar o presente, não corremos o risco de nos abrigarmos numa bolha, refratária a uma existência mais tranqüila e menos desconfortável? Provavelmente sim. Embrenhar-se na nostalgia é como fazer pesca submarina no oceano sem o auxílio de tubos de oxigênio. Imergimos até certo ponto, mas é preciso guardar um pouco de ar para o retorno à superfície, caso contrário permaneceremos num limbo. Ao final, Gil irá descobrir que o presente tem lá seus atrativos – desde, é claro, que tome decisões cruciais, que o aproximem do homem que quer ser. Isso vale para ele, para mim e para qualquer um de nós.

sábado, 9 de julho de 2011

Impedimento



Acompanho futebol desde muito criança. Talvez por isso tenha uma memória prodigiosa para recordar jogos e times que me marcaram. Lembro, por exemplo, da decisão por pênaltis do Campeonato Brasileiro de 1977, entre São Paulo e Atlético-MG, quando tinha apenas sete anos. Ou do timaço que o Guarani montou no ano seguinte para ser campeão, com Renato, Zenon e Careca. Ou do primeiro título do Flamengo, em 1980, numa final emocionante de 3 a 2 contra o Atlético-MG, que abriu caminho para os títulos que o Mengão conquistaria em seguida na Libertadores e no Mundial. São imagens que permanecem vívidas, guardadas com carinho como se fossem pequenos troféus que contam a história de um clube.

Ainda hoje gosto de assistir partidas de futebol. Continuo torcendo feito criança pelo Flamengo e, como quase todo mundo, me encanto com a forma de jogar do Barcelona. Mas está cada vez mais difícil dissociar o que vejo nos gramados do que leio e ouço sobre o mundo do futebol fora do campo. Até porque, a partir de agora, a corrupção generalizada que sustenta esse meio começa a me afetar diretamente - e também a você que lê este texto agora. Pagamos compulsoriamente impostos de todo tipo. Somos reféns de uma carga tributária obscena, além de sermos forçados a honrar compromissos com IPVA, IPTU, IR e muitos outros Is. É um dinheiro alto, que nos faz falta e sai dos nossos bolsos para prover uma estrutura que não criamos, mas que temos imensa dificuldade em mudar. Uma opção é o voto, outra é a desobediência civil nos moldes da pregada por Thoreau, mas essa pode nos sair caro num país tão emperrado pela burocracia como o Brasil.

O que fazer, então, quando nos damos conta de que nosso dinheiro está sendo usado para bancar um evento absolutamente desnecessário e economicamente inviável como a Copa do Mundo de 2014? Seria em nome da paixão que todos nós, brasileiros, cultivamos pelo futebol? Balela. A aprovação, na Câmara dos Deputados, da Medida Provisória que prevê sigilo nos gastos da Copa institucionaliza de vez a canalhice. Em nome do quê devemos ficar reféns de gente sem caráter e sem escrúpulos? É curioso como ainda nos surpreendemos ao saber de coisas como as reveladas na entrevista do presidente da CBF, Ricardo Teixeira, à revista Piauí. O que há de novo ali? Todo mundo com um mínimo de informação sabe há muito tempo que Teixeira é um tipo vil, safado e incapaz, que se mantém no poder por meio de ameaças e acordos com gente graúda, como ele mesmo deixou claro. Sua relação com a Rede Globo é um escândalo, devidamente escamoteado pelo ufanismo tolo das narrações esportivas comandadas pelo locutor e porta-voz da emissora, Galvão Bueno - um ufanismo que, mais do que tolo, é abjeto.

Não existe novidade nessas revelações nem na postura do Legislativo. Mas me pergunto o que eu poderia ter feito para evitar que o Brasil fosse escolhido para sediar a Copa de 2014. Não acredito em violência, portanto não gostaria de sair por aí arremessando pedras nessa gente. Meus votos não deram em nada e meu ingênuo protesto aqui neste espaço não vai servir para muita coisa. Mas nem por isso devo aceitar que, em um país com uma desigualdade social gravíssima e com um déficit educacional insustentável, sejam gastos cerca de R$ 10 bilhões na construção ou reforma de estádios que serão usados em duas ou três partidas - assistidas apenas por quem conseguir pagar uma fortuna para ver duas horas de pelada entre, digamos, Japão e Costa do Marfim. Fico imaginando de que maneira esse dinheiro poderia ser usado em treinamento de professores ou no aparelhamento de escolas, para ficar nos itens mais básicos da nossa cesta de necessidades.

Esse é um discurso ingênuo e inútil, eu sei. Uma cantilena que já não comove nem estimula, muito menos resolve alguma coisa. Mas mesmo assim me pergunto: não parece óbvio a quem comanda o país o absurdo que significa essa inversão de prioridades? Não há melhoria de infra-estrutura nas cidades-sedes que justifique esse descalabro. Assistimos calados a um dos maiores assaltos já realizados no Brasil, e provavelmente do mundo. Só que, neste caso, conhecemos de antemão os integrantes da quadrilha e sabemos previamente qual será o plano. Não há elemento-surpresa, tocaia ou sequer a engenhosidade dos crimes perfeitos. É apenas um assalto banal, a céu aberto e à luz do dia, na frente de todo mundo, sem a necessidade de máscaras ou de armamento pesado - apenas o cinismo e o despudor, que, pensando bem, são armas bastante eficientes. Fazer o quê? É a nossa sina histórica, o nosso moto-perpétuo.
 
 
Charge retirada do site http://conspirar.wordpress.com

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Um país outonal


Não conhecia o Uruguai quando li Gracias por el Fuego, de Mario Benedetti. Descrito por sua pena impiedosa, o "amorfo país de andrajosos" me fazia pensar em mais uma republiqueta sul-americana de passado melancólico e futuro incerto, como Bolívia ou Venezuela. Não tinha idéia de como eram as ramblas que perpassam toda a cidade de Montevidéu, o bairro de Pocitos e muitas outras partes da capital retratadas por ele também no clássico A Trégua e em alguns contos de Correio do Tempo. Mas o fato é que, em apenas cinco dias por lá, o Uruguai me surpreendeu, e a imagem que Benedetti legou à minha imaginação de leitor acabou ofuscada pela realidade. Uma realidade positiva, acima de tudo, mesmo tendo passado por lá uma das piores experiências que podem ocorrer a um viajante: ser roubado.

De carro, a caminho de Punta Del Este, parei para uma visita à Casapueblo, em Punta Ballena, um inusitado hotel-museu concebido pelo artista Carlos Páez Vilaró. Estacionei o carro, cheio de bagagens, e entramos. Quando voltei, o vidro do carona estava quebrado e tinham sido levadas sacolas e pastas contendo os nossos passaportes, o meu tablet, livros, DVDs, chaves, jóias, dinheiro e muitas, mas muitas outras coisas, incluindo um pequeno volume de poemas do próprio Benedetti, comprado com todo carinho na livraria El Ateneo, em Buenos Aires. Isso doeu fundo, e a partir daí o resto da viagem foi apenas um tormento que, passados apenas cinco dias e já confortavelmente instalado em minha casa, obviamente não apaguei da memória. Por mais que não parecesse, estava sim em um país sul-americano, inseguro e desigual.

Mas seria injusto guardar uma recordação tão amarga de um país (ou melhor: de uma cidade) do qual gostei tanto. Montevidéu é desses lugares que nos provocam um sentimento de afeto, um desejo de ficar mais, indefinidamente, ou quem sabe até definitivamente. Ao passear por suas ramblas, pensei em uma velhice feliz numa daquelas varandas dos prédios de Pocitos ou Punta Carretas, contemplando sem pressa o Rio da Prata, levando um cão para passear e sentindo o vento gelado me tomar sem trégua. Lá, até os cachorros contemplam o horizonte. Uma cidade outonal, poderia dizer, que caminha sem alarde para um ocaso indefinido. Se Buenos Aires, na outra margem do rio, sintetiza uma aspiração malograda de grandeza e glamour de inspiração européia, Montevidéu se resguarda na própria timidez, e talvez num desencanto crônico de quem não espera mais uma grande reviravolta da história.

Já Punta Del Este me pareceu uma filial da Collins Avenue fincada abaixo do Trópico de Capricórnio. Suas casas e prédios ostensivamente luxuosos e ainda mais ostensivamente vazios num inverno gelado celebram o excesso, e até uma certa breguice. No principal hotel-cassino da cidade, um cartaz informava que dali a alguns dias o filho de Frank Sinatra se apresentaria cantando as músicas do pai, numas dessas apropriações indébitas só legitimadas pela genética. Mas Punta não é o Uruguai, embora, pelo curto tempo passado por lá, eu também não seja capaz de dizer o que realmente é o Uruguai, qual a matéria-prima desse território diminuto, oprimido por dois vizinhos gigantes. Há o litoral, os pampas que se estendem até o Rio Grande, os pequenos balneários banhados pelo Prata e mais o quê? Onde ficam as fronteiras que delimitam a sua essência de país?

Os uruguaios são simpáticos, educados e muito solícitos, e no geral ligeiramente tímidos. Parecem conscientes da própria desimportância. Queixam-se do custo de vida altíssimo e da violência crescente nas áreas mais afastadas, mas em geral parecem viver com dignidade, sem a desigualdade abissal e a brutalidade cotidiana que encontramos pelas bandas de cá. Também não padecem, como nós, de uma mania de grandeza gratuita e sem motivo, nem se consideram o país do futuro ou o melhor povo do mundo. Apenas observam, caminhando com chimarrão e garrafas térmicas nas mãos, a vida se esvair em silêncio e frio.